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Sertanistas, uma minoria romântica à beira da extinção

OESP, Nacional, p. A15
17 de Out de 2004

Sertanistas, uma minoria romântica à beira da extinção
Com a morte de Apoena, restaram apenas quatro profissionais capacitados a comandar expedições na floresta amazônica
Índios

Leonencio Nossa
Brasília

Toda vez que preenche um cadastro num hotel ou loja, o sertanista Sydney Possuelo, de 64 anos, tem de explicar que não é um profissional especializado em sertão, como o semi-árido nordestino. "E quem disse que sertão é só a terra da seca?", pergunta o mais destacado defensor dos índios em atividade. O trabalho de Possuelo é se embrenhar na úmida Amazônia durante meses, chefiar expedições ao coração da floresta e defender e provar a existência de povos com línguas e costumes que nem ele conhece.
Barbudos, desprendidos e românticos, os sertanistas correm tanto risco de extinção quanto os índios isolados que defendem. Com o assassinato de Apoena Meirelles, dia 9, em Porto Velho, restaram apenas quatro no Brasil: Possuelo, José Carlos Meirelles Júnior, Wellington Figueiredo e Afonso Alves da Cruz. "Nunca fomos muitos", conta Possuelo. "Sempre uma minoria fez a defesa dos direitos humanos no País."
O departamento que ele chefia controla uma área de 11,5 milhões de hectares, incluindo reservas no Acre, Amazonas, Pará e Rondônia. Sertanistas também atuam em lugares remotos de Maranhão, Roraima, Mato Grosso e Amapá, onde há povos isolados. Não se sabe quantos são os isolados. Há registros não confirmados de sua existência em 42 pontos na Amazônia. A ameaça à sua cultura vem de madeireiros, garimpeiros, caçadores, plantadores de soja, organizações não-governamentais e religiosos.
Os sertanistas levam a sério o lema "morrer se for preciso, matar nunca", atribuído ao marechal Cândido Mariano Rondon, mais famoso dos indigenistas. Estima-se que mais de cem funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) morreram em ações com povos isolados nos últimos anos. "Na vida, a gente tem de ser um pouco louco, tem de ir além dos limites estabelecidos, não pode ficar dentro de cercas", diz Possuelo, que já perdeu dentes em brigas com posseiros e sofreu acidentes de canoa e avião.
FUSQUINHA
Os quatro sertanistas que restaram estão aposentados, mas continuam na ativa por meio de contratos. Hoje só ganha o título de sertanista quem tiver curso técnico em indigenismo, dez anos de trabalho na Amazônia Legal e três na chefia de uma frente de proteção de povos isolados. O salário inicial, de R$ 450, com gratificações pode ultrapassar R$ 4 mil. "Quando comecei, nos anos 70, com três meses no mato dava para comprar um Fusquinha", lembra Figueiredo. "Hoje, não há atrativo para a pessoa ingressar na carreira, a não ser a aventura."
Figueiredo acha seu trabalho é semelhante ao de um bombeiro. "É um trabalho de salvação", diz.
Até 1987, a Funai defendia o contato com isolados. Nesse ano, Possuelo criou um departamento de índios isolados e, numa decisão polêmica, proibiu os contatos, à exceção de casos em que os índios corram riscos. A nova política teve origem ainda com Rondon, que ao final da vida avaliava que não havia sido bom transformar os índios em caboclos.
Em 1973, os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas deixavam a atividade convencidos de que cada vez que faziam contato com uma tribo contribuíam para a destruição de uma cultura. Apoena Meirelles defendia a integração mais rápida com os isolados. Já Possuelo avalia que esse contato deve ser adiado ao máximo. Hoje, os sertanistas vêem os produtores de soja como os grandes vilões. "Eles têm posição muito firme", reconhece o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, produtor de soja. Maggi diz que não tem encrencas com eles em seu Estado, mas reclama de sua defesa da ampliação das reservas.
SOLIDÃO
Um sertanista tem de passar meses longe de casa. Alguns tiveram dificuldades de formar família. Foi caso de Cláudio Villas-Bôas, que morreu solteiro e deprimido, aos 82 anos, em São Paulo.
Meirelles Júnior, de 56 anos, se considera o "único sertanista do mundo" que não deixou ou foi largado pela primeira mulher. Está casado há 30 anos com Terezinha, com quem vive na cidade acreana de Feijó. Meirelles leva oito dias de barco para chegar ao local de trabalho, uma casa de madeira em plena selva. Em junho, ele foi flechado na cabeça por um índio isolado. Um helicóptero da Força Aérea Brasileira o resgatou. "O ataque é conseqüência da pressão que eles sofrem", diz.
Meirelles tem a ajuda de sete funcionários para tomar conta de uma área de mais de 1 milhão de hectares, onde vivem três povos distintos. "Nossa relação com os isolados é um diálogo de mudos", conta. Ele afirma que não se sente solitário. "Quatro pessoas para mim é multidão."

OESP, 17/10/2004, Nacional, p. A15

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