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Sede de cidadania

A Crítica, Política, p. A17-A18
23 de Nov de 2003

A conquista da cidadania
A segunda etnia mais isolada de Roraima, a ingaricó, que vive na fronteira do Brasil com a República Cooperativista da Guiana, está se preparando para votar pela primeira vez no próximo ano. Exímios artesãos, os índios que há pouco tempo receberam carteira de identidade agora estão sendo cadastrados pela justiça Móvel de Roraima para receber o título de eleitor e escolher o governante do município onde vivem.
Páginas A1, A17-A18, B8

Sede de cidadania
Em 2004, eles vão votar pela primeira vez
Loredana Kotinski
Da equipe de A Crítica

No extremo Norte do País, na fronteira do Brasil com a República Cooperativista da Guiana, a segunda etnia mais isolada do Estado de Roraima, a ingaricó, está se preparando para a festa da democracia. Pela primeira vez na história esses índios irão votar e escolher, nas próximas eleições, o governante do município onde vivem. 0 sentimento é de animação nesse lugar que, de tão inóspito, só se chega de helicóptero ou em aviões de pequeno porte. Não há estradas, comunicação e a comunidade mais próxima fica a um dia de caminhada pela mata. Mas entre eles, sobra sede de cidadania.

Dos 1.095 índios ingaricós distribuídos em sete comunidades, menos de 10% falam português. Quase o mesmo percentual nunca saiu da aldeia, mas todos querem votar e decidir os rumos de suas vidas. Na semana passada eles deixaram de lado a caça, a pesca e se dedicaram a paciente espera de um helicóptero que trazia a equipe da Justiça Móvel de Roraima até a aldeia Manalai, localizada no Município de Uiramutã (RR). Era sábado, passava do meio-dia, o sol estava a pino, mas eles permaneciam lá, enfileirados à espera da cidadania.
As hélices do helicóptero do Exército Brasileiro mal pararam de girar e um canto começou a ecoar. Vinha dos ingaricó e trazia uma mensagem de boas-vidas. Uma grande roda se formou bem no centro da aldeia e todos, índios e visitantes, dançaram juntos o "Aleluia". Nos olhos dos indígenas a alegria de estarem começando a realizar um antigo sonho: o de ser reconhecidos como cidadãos brasileiros. "Somos índios e somos brasileiros. Queremos votar para que assim as autoridades olhem para a gente", resumiu a mulher do tuxaua do Manalai, Gelita Sales Ingaricó.
A pessoa certa
Ela avisava que a festa ali é para matar a sede de cidadania, para buscar independência. E deixou claro que o isolamento do seu povo não pode significar abandono e que sua gente precisa de ajuda. "A gente quer escolher uma pessoa que faça alguma coisa pela gente. Não vamos abrir nossa tribo para qualquer um. Aqui ninguém vota em foto ou em pedidos, só em quem a gente conhece."
Num mesa de madeira, improvisada, a juíza Tânia Vasconcelos Dias e o promotor de justiça Valdir Oliveira recebiam as carteiras de identidade dos ingaricó. Todas com data de expedição de 2002 e 2003. É que somente do ano passado para cá eles deixaram de ser mais um número nos registros da Fundação Nacional do Indio (Funai) para se tornar brasileiros, de direito. Ao todo, mais de 400 títulos foram cadastrados e deverão ser expedidos para as aldeias Manalai e Mapaé, segundo a juíza.
Na fila de espera, gente que nem sabe a idade, mas tem certeza do que quer. "Quero votar no outro ano. Quero saber quem vai me ajudar e ajudar meus parentes", dizia a índia ingaricó Luizina Luiz Ingaricó. Aos 84 anos, ela não sabe ao certo a própria data de nascimento, que só consta na carteira de identidade graças a uma estimativa do marido dela. "Só tirei documento este ano e acho que tenho uns 80 anos." Para ela pouco importa o tempo passado, vale o presente e o futuro onde poderá apertar as teclas da urna eletrônica e, quem sabe, garantir uma vida melhor.
Orgulho está na cara
Perto dela, Celestina Sales Ingaricó, 69, tira do bolso a carteira de identidade ainda cheirando a nova e exibe com orgulho. Não fala uma palavra em português, mas faz gestos e abre um sorriso largo para demonstrar que está feliz. Sabe que aquele pedaço de papel ainda não é o título de eleitor, ma reconhece que está a apenas alguns passos dele. Para o tradutor, Dilson Ingaricó, 22 - o filho do tuxaua que fala português- ela diz que quer votar porque é brasileira e tem o direito de escolher quem vai ajudar seu povo. "Quero mostrar que sou brasileira também."
Samuel Ingaricó, 20, é professor da sua tribo no Manalai. No dia da visita da justiça Móvel ficou sem almoçar. 0 prato do dia seria apenas beiju e caxiri. Ele deixou de caçar para garantir o título de eleitor. "A fome passa e amanhã saio para caçar, hoje quero ser cidadão." (LK)

Ex-nômades
Escola é caminho para independência
Eles já foram nômades, mas deixaram de perambular depois que passaram a estudar e ter assistência médica. E se. por um lado se sentem mais assistidos, por outro sofrem com a escassez de alimentos e a falta de condições e preparado para práticas agropecuárias. Além da mandioca e da banana, os ingaricó não plantam mais nada. Nas suas terras o gado cresce solto, mas é pouco para uma população que de 98 para cá quase dobrou, conforme estimativa do tuxaua da tribo Martins Jan Edman. Novos na prática de permanência numa só região, eles enfrentam a falta de organização. No Manalai - onde está a maior tribo dos ingaricó, 350 deles - só existe escola há dois anos, construída de barro e palha com recursos da Prefeitura de Uiramutà. E somente este ano eles completarão mais de 100 índios adultos alfabetizados. "A gente acredita que com a educação vamos trazer consciência para nossa tribo e capacidade para eles aprenderem a plantar roças, criar gado e a se organizar. Hoje tem comida, mas é difícil conseguir, tem que ir para longe caçar. Com a educação acho que vamos mudar isso", comenta Dilson Ingaricó, que estuda Pedagogia nas férias na Universidade Federal de Roraima. É dele hoje o posto de representante da tribo, ainda que seja o seu pai o tuxaua. "Estudei e por isso hoje tenho condições de ajudar me povo. " (LK)

Um dia de caminhada para se tornar eleitor

A determinação do povo ingaricó em conquistar a cidadania plena está longe de ser medida apenas pela sua paciência. Dispostos, a qualquer custo, a ter o direito de votar alguns deles andaram quilômetros noite à dentro. Carregaram suas panelas de comida, suas famílias e bichos para chegar até o Manalai e fazer o cadastro do título de eleitor. Subiram e desceram serras, numa região do Brasil que está assentada no Planalto das Guianas, onde os dias têm temperatura média de 30 graus centígrados e as noites de 15 a 20 graus.
Uma tribo inteira vinda da comunidade Mapaé - a um dia de caminhada de distância - chegou ao Manalai já no final do atendimento da justiça Móvel. As mulheres, com os filhos no colo, corriam para não perder a chance de se cadastrar. Os homens, alguns com espingardas e outros com arco e flecha, pediam um pouco mais de tempo para que também pudessem fazer o cadastro do título eleitoral.
Dilson Ingaricó explica que o Conselho do Povo Ingaricó, em fase de legalização, será a entidade controladora da entrada de políticos nas aldeias. "0 político que quer só o título não tem vez com nosso povo."
Urna eletrônica
0 filho do tuxaua fala que seu povo está ansioso com a idéia de voto. Eles, que nunca viram uma urna eletrônica, terão pela frente, no entanto, outro desafio: o de aprender usar urnas eletrônicas. Apesar de o primeiro contato com a civilização não índia ter ocorrido na década de 70, os ingaricós ainda preservam sua cultura.
Suas casas são malocas de barro e palha. A língua ingaricó é dominante. Não há sinais de práticas religiosas "brancas" - de não índios - e os ritos se resumem às festas aos deuses indígenas. Na busca pelo direito de cidadania plena querem apenas a melhoria de vida, mas não pensam em abandonar sua cultura. (LK)

Justiça vai aonde o povo está
Mais de 38 mil pessoas foram atendidas pelo programa itinerante. Funcionários trabalham doze horas seguidas e não perdem o bom humor

Loredana Kotinski
Da equipe de A Crítica

Eram 20h30 de sábado. Depois de um dia inteiro de trabalho na aldeia Manalai, sem almoço, e mais de mil atendimentos na sede do Município de Uiramutã, a juíza Tânia Vasconcelos Dias e sua equipe se preparam para realizar o último ato daquela exaustiva rotina: um casamento. Os noivos Joberson e Lourdes - esperaram mais de um mês pela ocasião estão vestidos à caráter para a solenidade. Escutam tudo o que diz a lei após ouvir a celebre frase: "eu vos declaro marido mulher" - eles se beijaram e entraram para a história da justiça Móvel de Roraima como o quinto casal a ter a união oficializada por um programa itinerante.
Para eles nada de tão especial fazer parte dessa estatística. Mas para a juíza Tânia foi mais uma conquista do programa que ela coordena e que há três anos, como ela própria define, "vai levando a justiça onde ela precisa estar: junto do povo". A consciência do dever supera o cansaço e a juíza - que a cada viagem pelo interior de Roraima troca as salas de audiência por pátios de escolas e a toga pela camiseta e o tênis - conta das aventuras que viveu. E, principalmente, até onde a justiça Móvel já chegou.
Nos cálculos dela, já se vão 38 mil pessoas atendidas, todos os 15 municípios de Roraima visitados e 3,5 mil ações resolvidas e que, portanto, deixaram de ir para a justiça comum. Somente no Uiramutã - e essa é a segunda vez que eles visitam o lugar - foram mais de dois mil atendimentos em uma semana. Instalados na escola da sede do município, eles trabalharam 12 horas por dia e conseguiram lotar as dependências do local com gente para retirar documentos, resolver pequenas questões judiciais e casar, é claro.
Obstáculos
Nem o acidente que virou um carro da sua equipe, mergulhando dois computadores e máquinas fotográficas num igarapé, fez Tânia Vasconcelos perder o bom humor. Disposta, ela conta que já viveu dias piores e que o mais difícil não são os empecilhos do caminho, mas a tarefa diária de manter a equipe de 30 pessoas e de diferentes órgãos unida. E, ainda, a de continuar com o Programa Justiça Móvel.
"lá, fui para a cozinha de um barco fazer jantar e já precisei brigar para continuar com o justiça Móvel. E mesmo com as dificuldades, quando vejo no final de tudo quanta coisa conseguimos resolver e quanta gente conseguimos atender percebo que vale a pena, sempre." Para ela, o programa que coordena muda a idéia da população de que a justiça é apenas para os ricos. E atende a finalidade real do Poder judiciário, que é a de levar a justiça para todos, sem discriminação.
Sem cargos
Quando vai para o interior - uma vez por mês - a justiça Móvel segue equipada de máquinas de xerox, de fotografia, computadores, impressoras, papéis e até grampeadores. Não há nada em alguns lugares e em outros o apoio é somente logístico. A carência é tamanha que, muitas vezes, até o rancho da equipe é compartilhado com os moradores que ficam horas nas filas. "A gente tem que ter uma aparato enorme e uma equipe disposta a fazer de tudo um pouco. Não tem cargo aqui, só quando é para julgar ou ouvir alguém, de resto todo mundo faz de tudo um pouco", diz Tânia, carregando uma mochila nas costas e já se preparando para trabalhar em outra comunidade.
Em tantas andanças, a juíza confessa que tem se emocionado, e muito. "Acho que a mais forte foi no Manalai, quando ouvi uma índia dizer que 'só votando ela iria fazer com que as autoridades tivessem olhos para ela'. E quase chorei quando ouvi eles cantarem a música que na tradução diz que o 'céu não é só para os passarinhos. Nos precisamos nos preparar para um dia irmos para lá.'"

Aventura
Equipe tem mil histórias para contar

Estar na equipe da justiça Móvel é mesmo viver uma aventura. E só quem está disposto a levar Justiça onde poucos ou nenhum estiveram é capaz de enfrentar as dificuldades. O promotor público Valdir Oliveira é um desses. Levou bicicleta, máquina fotográfica e equipamentos para correr, além de trabalhar. No meio do caminho, o carro onde ele estava virou e quase perdeu a vida e a bicicleta. Saiu ileso e, de quebra, ganhou uma história para contar.
Mas para ele, o melhor relato da sua primeira participação no Programa Justiça Móvel será a experiência vivida com os ingaricó. "Nunca vigente tão simpática, tão receptiva e com tanta necessidade de cidadania. Me comoveu ver como eles, apesar de estarem tão distantes, querem votar porque sabem que podem melhorar suas vidas com isso. E o melhor é saber que estamos ajudando-os" comentou. .Junto com ele, a defensora pública, Alessandra Mighoranza. Sentada numa cadeira no meio do pátio da escola, ela escuta queixas, encaminha processos e resolve os problemas de gente que nunca sequer ouviu falar em Defensoria Pública. Mas, que mesmo longe de tudo, tem necessidade de justiça. "Isso me gratifica. Gosto de saber que estou ajudando de verdade e aqui eu sinto isso"; conta. (LK)

Verdadeiras obras de arte
Peças feitas por índios Ingaricós são valorizadas no Brasil e no exterior

Loredana Kotinski
Da equipe de A Crítica

Esta época do ano o cipó d'água ainda está verde e na aldeia dos ingaricós, a segunda etnia mais primitiva do Estado de Roraima, a produção de artesanato está em baixa estação. Afinal, essa é a principal matéria-prima utilizada por eles. Mas como não é a quantidade que buscamos, batemos de maloca em maloca e encontramos peças de trançado delicado e acabamento perfeito, fruto de um conhecimento milenar que os jovens índios aprenderam com seus avós. Um passeio demorado, mesmo numa visita ocasional, e descobrimos o potencial que a arte indígena possui e a surpresa que nos reserva.
Deparamos com um vai e vem de palhas que aos poucos vai formando bolsas, cestas e armadilhas para peixes. Peças que servem como utensílios de caça, pesca e de uso doméstico para os indígenas, mas que no mercado brasileiro e internacional alcançam preços de objetos de arte. Alguns podem ser encontrados em lojas fora do Brasil ao preço de US$ 80.
E não é para menos. As mãos que tecem esse artesanato são de índios que vivem na aldeia do Manalai, no Município do Uiramutã (RR), na fronteira do Brasil com a República Cooperativista da Guiana. E que de tão isolados não falam português apenas 10% conhece e conversa em português e nunca deixaram a aldeia. Nunca assistiram televisão e a única técnica que conhecem de artesanato foi a passada de pai para filho com o objetivo de produzir objetos para garantir a sobrevivência de um povo. Um produto raro e único.
0 professor da tribo, Samuel Ingaricó, 20, conta que as técnicas de trançado e acabamento foram inventadas pelos índios. As cores e formas também são fruto da sabedoria de seu povo, o que garante um artesanato original e sem interferência de não índios. Raro, eles produzem pouco mais de 50 peças por ano e alguns objetos são exclusivos, o artesanato ingaricó esbanja criatividade.
0 "jiqui", por exemplo, é uma armadilha para apanhar peixes deixada nos lagos igarapé em época de seca, quando as águas estão mais baixas. Leva quase um mês para ser fabricado em cipó d'água e dura muito mais que cinco anos. Ajuda a matar e garantir a alimentação dos ingaricó. Entretanto, no mercado de decoração o objeto é utilizado como luminária. Pendurado ou colocado no chão, sobre lâmpada, ele ganha charme e deixa qualquer ambiente com ar intimista.

As cestas taimé são as mais procuradas pelos compradores
Segunda etnia mais primitiva de Roraima, os Ingaricós produzem objetos artesanais que garantem a sua sobrevivência
As cestas ingaricó têm formas diferentes. Algumas são retangulares em palha e pés de madeira, mas o acabamento com a casca de um cipó marrom, mais parece trabalho de uma indústria com alto controle de qualidade. Aliás, qualidade não falta ao trabalho dos ingaricós. Feitas para durar e suportar o peso de caças e frutas, as cestas são resistentes à água e duráveis, com amarrações impecáveis e embutidas. "Isso é para a gente usar todo o dia e por muito tempo, porque não dá para fazer e jogar. E trabalhoso e então tem que durar", explica Samuel.
Segundo ele, que já esteve em Boa Vista capital de Roraima comercializando artesanato, as cestas "taimé" são as mais procuradas pelos compradores de artesanato. Feitas para guardar os peixes, todas em cipó d'água, são redondas, possuem alça e tampa com fecho de madeira, e são vendidas, no mínimo, por R$ 40.
As cestas "taimé" foram as vedetes do lucro que os ingaricós tiveram no ano passado com venda de artesanato e que alcançou R$ 3 mil. Um valor que, como explica Samuel, nem de longe será alcançado este ano. Todo o material comercializado em 2003 não chega a R$ 500. Isso porque até 2002 um programa do Governo do Estado de incentivo ao artesanato indígena promovia o escoamento e a comercialização desses produtos, incentivando a produção e colaborando para a melhoria da renda das comunidades indígenas de Roraima. "Este ano está desativado e aí, como moramos num lugar isolado, onde só chega de avião, a gente não tem como vender mais artesanato", lamenta Samuel. Otimista, ele diz que seu povo tem esperanças que o programa volte e diz que significa uma forte opção de geração de renda.

A Crítica, 23/11/2003, p. A1, A17-A18, B8.

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