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Sebastião Salgado: 'Indígenas estão vivendo momento dramático e Judiciário é a última esperança'

O Globo - https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post
Autor: SALGADO, Sebastião; LEITÃO, Míriam
06 de Jul de 2021

Sebastião Salgado: 'Indígenas estão vivendo momento dramático e Judiciário é a última esperança'

Por Míriam Leitão
06/07/2021

"Este governo talvez seja, na história do nosso país, o maior predador que já existiu contra o bioma amazônico", a afirmação é do economista e fotógrafo Sebastião Salgado. Ele disse que os "indígenas brasileiros estão vivendo um momento dramático e o Judiciário é a última esperança". Em entrevista que ee concedeu, e que foi ao ar na Globonews, Salgado afirmou que os riscos econômicos para o Brasil dessa destruição e da ameaça aos indígenas são enormes. Dos perigos da falta de chuva no país até o boicote aos produtos exportados.
Salgado este ano está lançando um novo livro, "Amazônia", resultado de quase dez anos de trabalho na região, fotografando diversos povos indígenas, e a exuberância da floresta. Acaba de ser escolhido pela Universidade de Harvard Doutor Honoris Causa. Ele falou comigo diretamente do seu estúdio em Paris.
Abaixo a entrevista.
- Na semana passada, lideranças indígenas enfrentaram bombas no Congresso, em protesto contra a aprovação deste projeto. Qual o risco para o Brasil como um todo permanecendo nesse projeto?
Os indígenas da floresta Amazônica brasileira estão vivendo um momento dramático. Todos eles estão vivendo uma instabilização da forma tradicional de vida deles pela grande ameaça provocada pelo atual governo brasileiro. Ou melhor, pelo atual Executivo. O governo é formado por três partes mais ou menos proporcionais. O Executivo que é o inferno na destruição do bioma amazônico, da desestabilização das comunidades indígenas através da invasão dos seus territórios. Temos um Legislativo totalmente confuso, que a gente não sabe para que lado vai e como definir as lei brasileiras. E um Judiciário que passou a ser a última instância, a última esperança, e um grande aliado nesta luta contra a destruição do bioma amazônico e desestabilização das comunidades indígenas.
- Fale sobre o projeto Amazônia. Você passou dez anos visitando diversas comunidades indígenas como os Marubos, Ianomami, Awá Guajá, Zoé, Ashaninka, Yawanawá, várias outras, e mergulhou nessas comunidades. O que você sentiu vivendo e fazendo esta imersão nos indígenas da Amazônia?
Para mim foi um prazer imenso eu ter contato com essas comunidades indígenas. É um povo bom, razoável, não existe praticamente agressividade. Estão hoje totalmente organizadas, pois tiveram que enfrentar a ameaça brutal sobre seu território. Tiveram que se organizar para ter um contrapoder contra esse megapoder de destruição do governo Bolsonaro. Viajei muito com o Exército brasileiro em missões, fiz muitas missões aéreas e uma cobertura bastante significativa da parte física. O Brasil tem uma cadeia de montanhas dentro da Amazônia e ninguém sabe disso. É onde está o mais alto do Brasil, o pico da Neblina. Pude fotografar os rios aéreos, a grande umidade que sai projetada das árvores. Os cientistas dizem que cada árvore da Amazônia evapora em torno de 1000 a 1.200 litros de água por dia. Esta água vai para atmosfera e parte se transforma em cumulus nimbus e abandona a Amazônia. Hoje o volume de água que abandona por via aérea é maior do que o Rio Amazonas despeja no Oceano Atlântico. Estes rios aéreos são extremamente importantes para garantir a chuva no Centro-Oeste e no Sul. A agricultura é garantida pelas chuvas da Amazônia. A Amazônia é extremamente importante para o Brasil e para o planeta. E essas comunidades indígenas talvez representem a maior concentração cultural do mundo. São quase 200 tribos. São 150 línguas diferentes e só no Brasil 100 grupos que nunca foram contactados. Eles são a pré-história da humanidade. Em todos os níveis, a Amazônia é importante. Mas o governo atual não vê assim. O governo atual transformou as organizações que deveriam proteger em organizações predadoras da Amazônia. A função da Funai era demarcar os territórios indígenas, para preservar para as gerações futuras. Era uma atuação fantástica. Hoje, a Funai é dirigida por um delegado. Nada contra, mas são especializados em casos policiais e não para dirigir a maior instituição humana, social do Brasil. Ele não tem esta especialidade. Os grandes antropólogos, indianistas, sociólogos da Funai foram todos colocados de lado. Atualmente, a Funai é um colaborador do agronegócio predador. Há um agronegócio correto que trabalha direito, no território feito para agricultura. Mas este predador é auxiliado pela Funai e pelo Ibama. Este governo brasileiro talvez seja, na história do nosso país, o maior predador que já existiu contra o bioma amazônico.
- Estamos vivendo neste momento uma crise hídrica e sua foto dos rios aéreos mostra exatamente esta evaporação na Amazônia.
Uma parte da crise hídrica vem como parte da destruição da Amazônia. A Amazônia aqueceu 1,5oC em relação a temperatura de 40 anos atrás, perdemos 18% da floresta e isso afeta imensamente o sistema de chuvas criado pela evaporação. Estão perdendo precipitação no Sul do Brasil. A única maneira que eu posso compreender essa política predatória em relação a Amazônia é uma política eleitoreira do presidente da república. Dando satisfação a invasores da Amazônia, incentivando a população do Sul a subir em direção ao norte, com garantia a um título ilegal de terras. Estamos destruindo a agricultura brasileira. Estamos destruindo todo o prestígio que o Brasil teve até aqui como uma grande nação respeitada internacionalmente. Estamos perdendo em função da política agressiva em direção ao meio ambiente provocada pelo governo brasileiro.
- Você vê alguma razão para isto, para a postura do governo?
Tem uma razão única para a invasão dos territórios indígenas e da tentativa de destruir os parques nacionais da Amazônia. O governo brasileiro sempre foi extremamente responsável. O Ministério da Justiça, através da Funai, conseguiu que 25% das terras amazônicas fossem transformadas em reservas indígenas, protegidas pela Constituição. Outra parte, em torno também de 25%, também é território protegido por lei, são os grandes parques nacionais, que eram protegidos tradicionalmente pelo Ibama, Ministério do Meio Ambiente e Instituto Chico Mendes. Os outros 49% da floresta amazônica são as terras do estado devolutas, aí que houve a grande destruição. Em torno de 18% dessas terras foram destruídas e a outra parte nunca poderá ser destruída porque são florestas de igapó, inundáveis. Acabaram praticamente as terras públicas. Então as que são aptas para a agricultura estão nos parques nacionais e em todo o território indígena. Hoje, essa política predatória em direção aos parques nacionais e às terras indígenas é a busca por território apto para agricultura porque não há mais terras públicas. A minha luta junto ao Judiciário é que execute a lei. E a função do judiciário é aplicar a Constituição e proteger esses territórios. Qualquer tentativa de invasão destes territórios é inconstitucional.
- Além de artista, você é economista. Queria que você falasse sobre como esta perda de prestígio do Brasil pode significar sanções econômicas e perda de investimento. Este caminho de destruição da floresta não é mais aceitável no mundo dos negócios.
A grande pressão que vai exercer sobre o Brasil será o boicote dos produtos brasileiros. O que já começou. Vai sofrer a pressão sobre os grandes grupos financeiros que não aceitem investir em nenhum projeto que enquadre a destruição da floresta. E nenhuma negociação deverá ser feita se não colocarem filtros de proteção. Haveria outra possibilidade econômica para a Amazônia, mas isto significa ter um prestígio internacional e um projeto responsável. Se tivesse um projeto responsável, o Brasil teria um fluxo financeiro que jamais teve.
- Você tem contato com diversos líderes indígenas. Como os povos têm lidado com a pandemia, ainda mais com o risco frequente de invasão dos garimpeiros?
No ano passado, minha esposa Lélia e eu conseguimos criar um manifesto na tentativa de criar um cordão sanitário de proteção da comunidade indígena. É sabido por todos que a população não tem anticorpos para as doenças que vem de fora da floresta. E dada a agressividade da Covid, isto seria necessário. Compramos espaço na mídia assinado por 67 personalidades mais significativas do planeta, solicitando aos três poderes a proteção aos povos indígenas, de forma razoável e sem agressividade. A resposta que tivemos do Executivo foi extremamente agressiva. Eu tinha doado uma coleção de fotografias para a Funai e eles mandaram devolver. Não pude aceitar porque não eram mais minhas, pertenciam ao meu país. As fotografias foram transferidas para a Procuradoria-Geral da República. Tivemos que retirar da Funai e levar para outra instituição brasileira. No Legislativo, foi difícil ter uma resposta. Não sabíamos nem como entrar, dada as indecisões e confusões. Mas tivemos uma resposta incrível do Judiciário. Na época, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, criou um grupo de procuradores e juízes, e eles conseguiram uma evolução incrível na proteção das comunidades indígenas. Graças a ação do Judiciário, conseguimos que os indígenas fossem os primeiros a serem vacinados.
- Como está o projeto Refloresta, que reconstruiu a Mata Atlântica a partir da Fazenda Bulcão, com mais de um milhão de mudas por ano?
A grande questão hoje no planeta são duas frentes. Uma é proteger o que resta: os biomas da Amazônia, as florestas da Indonésia, da Nova Guiné. E, segundo, temos que refazer as florestas que foram destruídas. Essa é a função do Instituto Terra. Plantamos no nosso espaço mais de três milhões de árvores e hoje trabalhamos com quatro a cinco mil proprietários rurais e conseguimos financiamentos internacionais para plantio de microflorestas - de 400 a 450 árvores - para reconstituição das fontes de água do Vale do Rio Doce. A área tem mais de 90 mil quilômetros quadrados, mais ou menos do tamanho de Portugal. Temos em torno de 370 mil fontes de água, que compõem o sistema de água. O rio hoje não é mais navegável, está assoreado, mas podemos reconstituir esse rio. É nisso que o Instituto Terra tem trabalhado forte. Sobre a crise hídrica, as notícias mostram que as barragens, açudes e represas diminuíram o nível de água porque a chuva não foi suficiente. Não deveria ser só por água de chuva, mas deveria ser preenchido pelos rios e córregos para fazer a manutenção desta reserva. Mas este sistema hídrico não existe mais. Destruindo a floresta, destruíram todas as árvores que fazem a retenção da umidade do solo que garantem o sistema de água. Vai ser necessário fazer no Brasil o que fazemos no Vale do Rio Doce. Vamos ter que reconstruir as nascentes se quisermos água. A terra não tem água, montanha não tem água. A água vem dos rios aéreos e, no momento da precipitação, se não tiver árvores para reter, perdemos a água e criamos erosão nas terras mais inclinadas. A solução é plantar pequenas florestas com espécies nativas, assim vamos criar um trânsito de biodiversidade local. Se não reconstituirmos a biodiversidade, vai ser complicado sobrevivermos no nosso próprio planeta.
- Você e Lélia replantam árvores para refazer o Vale do Rio Doce, tentam proteger as terras indígenas. Está sempre nadando contra a corrente. Você permanece otimista com o Brasil?
Não estou contra a corrente, mas em direção à corrente planetária. Essa é a maior preocupação da juventude. A preocupação deles é a sobrevivência do planeta. Estamos na boa direção. A conscientização das pessoas hoje é mil vezes maior do que era há 20, 30 e 40 anos. Existe uma preocupação com a ecologia, com a manutenção das florestas, a reconstituição de floresta. Outra corrente é o governo brasileiro que está numa política predatória total. Isto é contra a corrente, é retrógrado. Temos que mudar o nosso país e ir numa direção melhor.

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