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São Sebastião libera casas 'pé na areia'

OESP, Metrópole, p. C7
26 de Ago de 2007

São Sebastião libera casas 'pé na areia'
Imóveis erguidos cada vez mais perto do mar, à margem da lei, valem milhões: União cobra ação da prefeitura

Alexssander Soares

Há quase um ano, o governo federal cobra, sem sucesso, a suspensão de obras de imóveis milionários muito próximos do mar em São Sebastião, litoral norte - chamados no mercado de "pé na areia". A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) também proibiu a prefeitura de continuar aprovando empreendimentos com base num estudo dos anos 70, sem validade legal, que recuou a chamada linha de maré em 20 metros. É com base nessa linha que se calcula o limite da faixa de marinha, de propriedade exclusiva da União, onde são proibidas edificações.

Com o recuo, imóveis podem ficar mais próximos do mar, avançando sobre a areia. Além de irregular, a medida vai na contramão da tendência do aumento do nível dos oceanos, reflexo do aquecimento global. O Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, por exemplo, usa como base dados internacionais segundo os quais o nível do mar avançou, em média, 41 centímetros em cem anos. A prefeitura tem ignorado as determinações da SPU, feitas em outubro.

"O que está acontecendo em Juqueí pode se espalhar para todo o litoral paulista", diz a ambientalista Regina de Paiva Ramos, primeira-secretária da Associação Comunitária Amigos do Juqueí (Samju). Integrantes da Samju e de associações de praias de São Sebastião têm monitorado informalmente novas construções à beira-mar. Fotografaram os efeitos de uma ressaca ocorrida no fim de julho em várias praias. As imagens de muros e decks destruídos pelas ondas, que evidenciariam construções muito próximas do mar, farão parte de um estudo a ser encaminhado à Promotoria de Habitação e Urbanismo da cidade.

O ofício da SPU menciona diretamente a construção de um condomínio com quatro casas na Praia de Juqueí, considerado irregular com base nas duas referências usadas atualmente - a linha da maré e a faixa de vegetação que margeia as praias.

Segundo a secretaria, o dono da área, Airton Armando Di Santoro, cometeu outra irregularidade. Praticamente duplicou seu terreno, acrescentando 1.070 metros quadrados aos 1.020 m² originais, sem comprovação de posse. Para isso, usou outros documentos sem validade legal - mapas da própria SPU que não foram homologados porque tinham erros.

Apesar disso, as obras do condomínio estão em fase de acabamento. Ele será lançado em outubro e o preço inicial de cada casa - adquirida diretamente com o construtor - está avaliado em R$ 2,4 milhões.

Os imóveis à beira-mar nas Praias de Juqueí e da Baleia, também em São Sebastião, são os mais caros do litoral norte. O m² construído vale de R$ 7 mil a R$ 8 mil. Em Santos, o m² de imóveis à beira-mar vale R$ 2 mil.

Uma das questões que prejudicam a fiscalização no litoral do País é o fato de a linha da maré ter sido traçada nos tempos do Império - está em vigor desde 1831. Ela foi definida pela média entre as marés alta e baixa da época. Numa faixa de 33 metros contada a partir dessa linha são proibidas edificações.

No ofício enviado ao prefeito Juan Pons Garcia (PPS), o gerente substituto da SPU na Baixada Santista, Esmeraldo Tarquinio Neto, afirma que não existe uma linha da maré homologada especificamente para São Sebastião. "A demarcação é presumida de acordo com a linha de 1831."

Como não existe um estudo atualizado sobre o nível médio das marés nos dias de hoje, os órgãos de fiscalização costumam aceitar construções à beira-mar até o limite do jundu - vegetação rasteira das áreas litorâneas. "Sem a referência do SPU, os engenheiros acabam usando o jundu para demarcar a faixa de marinha", diz o professor Afrânio Rubens de Mesquita, do Instituto Oceanográfico. Quando se leva em conta o critério da vegetação, o condomínio de Juqueí tem um avanço irregular de 18 metros.

Não bastassem as normas federais, a Lei Orgânica de São Sebastião tem um capítulo proibindo qualquer nova edificação particular nas praias e costões rochosos. A lei prevê apenas uma brecha: o proprietário que comprovar a posse do terreno pode avançar 13 metros dentro da faixa de marinha para construir piscinas ou quiosques, desde que não erga muros ou estruturas como churrasqueiras. Nesse aspecto, Di Santoro cometeu duas irregularidades. Não comprovou a posse de parte do terreno e ergueu muros na face do condomínio voltada para a praia.

No ofício, Tarquinio Neto ressalta que a suspensão da aprovação de empreendimentos serve para "resguardar o interesse da União e do patrimônio público, que jamais ficará subordinado a interesses particulares incertos". A Samju acionou o promotor de Habitação local, Bruno de Azevedo. "Constatamos que o imóvel invadia a faixa exclusiva da União e enviamos o processo para o Ministério Público Federal (MPF), que tem a competência para tratar do assunto", disse. O MPF limitou-se a informar que está investigando o caso.

Prefeitura diz esperar orientação
A prefeitura de São Sebastião responde a questionamento do Ministério Público Federal a respeito dos critérios adotados para aprovar a construção de imóveis na faixa de marinha. Procurada sexta-feira pelo Estado, a Assessoria de Imprensa da administração divulgou nota informando que aguarda uma resposta da Gerência Regional da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para saber quais medidas adotar em relação à linha da maré. Isto apesar de a SPU já ter pedido a suspensão de obras que avançam sobre as praias, área da União.

A prefeitura afirma que o condomínio em Juqueí segue a legislação municipal e nenhuma edificação foi autorizada em faixa de marinha. "A edificação em questão ocorreu somente em área de título", diz a nota, alegando que o proprietário comprovou a posse do terreno - o que também é negado pela SPU.

A prefeitura ressalta que já embargou "algumas" obras na cidade. E afirmou que assinou, em 2004, convênio com os Ministérios do Meio Ambiente e do Planejamento para fiscalizar áreas no limite da faixa de marinha.

investigação
Procurado pela reportagem, dono não se manifestou sobre polêmica
O condomínio milionário na Praia de Juqueí está quase pronto, apesar das recomendações de embargo da obra feitas pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e da investigação aberta pelo Ministério Público Federal. Com as casas em fase de acabamento, operários trabalham agora na construção de duas piscinas no trecho do terreno mais próximo da praia.

A reportagem esteve no local e foi orientada a telefonar para o proprietário Airton Armando Di Santoro, que tem escritório em São Paulo. A secretária de Di Santoro informou, na sexta-feira, que ele retornaria as ligações, o que não ocorreu até ontem à noite.

Representante da Associação Comunitária Amigos do Juqueí (Samju), a ambientalista Regina Paiva Ramos critica os novos condomínios lançados à beira-mar, com casas muito próximas uma da outra. "São favelas de rico", afirma. "Era sagrado em Juqueí respeitar a natureza e as leis para se construir de frente para o mar. Os primeiros proprietários até plantavam vegetação e faziam questão de evitar qualquer devastação. Agora, os novos condomínios são manchas de concreto na nossa paisagem."

O Estado também encontrou um terreno à beira-mar na Praia de Juqueí coberto com tapumes, localizado na Avenida Mãe Bernarda. O local tinha material de construção, mas ofícios rasgados nos tapumes indicavam que a obra estava irregular. No trecho legível do documento era possível ver que a SPU tinha interditado a construção.

A reportagem não conseguiu identificar o proprietário do terreno. Funcionários de condomínios vizinhos confirmaram que, no fim de julho, agentes federais estiveram no local. A SPU não soube informar por que interditou essa obra, mas não o condomínio de Di Santoro.

PLANO DIRETOR

Além da questão dos imóveis "pé na areia", São Sebastião teve no ano passado uma polêmica discussão do novo Plano Diretor da cidade, apresentada pelo prefeito Juan Pons Garcia (PPS). O conjunto de normas para orientar o crescimento urbano foi apresentado com uma nova lei de Uso e Ocupação do Solo.

O pacote de mudanças virou alvo de denúncias, pela suspeita de beneficiar o Riviera Group, interessado em construir prédios na região. Questionado na Justiça, ele acabou sendo tirado da pauta de votação da Câmara Municipal no fim do ano. A prefeitura reformulou o projeto, retirando do pacote as mudanças na Lei de Uso e Ocupação do Solo. O projeto do novo Plano Diretor deve ser reapresentado no próximo mês para ser discutido pelos vereadores.

O Riviera comprou terrenos e imóveis na costa norte da cidade, área cogitada pela Petrobrás para receber uma base para exploração de reservas de gás descobertas na Bacia de Santos. Garcia negou favorecimento ao grupo português. Os empresários também negaram ter feito qualquer acordo com o prefeito. As denúncias são investigadas pela Justiça.

CRÍTICA

Regina de Paiva Ramos, ambientalista da Associação Comunitária Amigos de Juqueí

"Era sagrado em Juqueí respeitar a natureza e as leis para se construir de frente para o mar. Os primeiros proprietários até plantavam vegetação e faziam questão de evitar qualquer devastação. Agora, os novos condomínios são manchas de concreto na nossa paisagem. São verdadeiras favelas de rico."

Linha de maré foi demarcada há 176 anos
Estudo recente da USP indica que o nível do mar avançou 10 metros desde então
O ponto oficial da linha da maré foi demarcado no Porto do Rio, em um trabalho feito por funcionários do Observatório Nacional, em 1831. Foi traçado para orientar a cobrança de impostos pela Coroa. "O objetivo era descobrir o ponto em que começaria o País legal", diz o professor Afrânio Rubens de Mesquita, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP).

A demarcação da linha durou até uma reforma do Porto do Rio. O marco desapareceu e, pior, não há registros de quando isso aconteceu. "Os registros históricos do Instituto de Pesquisas Hidroviárias (INPH) só revelam que o ponto da linha da maré desapareceu durante uma reforma. Desde então também passou a ser utilizada como referência a linha da faixa de vegetação nas praias", revela Mesquita.

Em setembro de 1946, a União publicou um decreto determinando que os terrenos de marinha estavam incluídos nos seus bens imóveis. O problema, então, foi definir onde, fisicamente, passaria a linha da maré em cada região do País. Mas ainda restaram algumas referências da linha média de 1831. Uma delas é uma medição feita em Cananéia, no litoral sul paulista.

CRÍTICA AO DECRETO

O estudo do Instituto Oceanográfico alerta que o legislador de 1946 desconsiderou o conhecimento da ciência acumulado durante o período, principalmente em relação ao fenômenos glaciais e de aquecimento global.

"Os funcionários do Observatório Nacional trabalhavam com o nível do mar histórico e constante de 4 mil anos. O decreto de 1946 poderia ter levado em consideração os fenômenos causados pelo homem no período, e não só seguir a linha preamar (média entre as marés alta e baixa) de 1831", critica o professor.

Em um trabalho concluído em 2004, o instituto foi contratado por donos de imóveis da Praia do Pulso, em Ubatuba, no litoral norte, para fazer uma atualização da linha da maré. Apurou que o mar avançou 10 metros em relação ao nível de 1831.

Para chegar a esse resultado, técnicos da USP acompanharam o nível médio na Praia do Pulso durante cinco dias, das 6 às 18 horas. A preamar, definida com a ajuda de réguas de medição, foi comparada com a série histórica anual feita na cidade francesa de Brest, no Canal da Mancha, e com a linha média de Cananéia.

AVANÇO DO MAR

"Nosso estudo levou em conta os novos fenômenos globais. O nível do mar é uma coisa móvel", diz Mesquita. Um dado aceito internacionalmente é o de que o mar tem avançado em média 41 centímetros a cada cem anos.

O professor diz que o estudo está disponível para consulta da comunidade. "O objetivo foi fazer as correções adequadas para não prejudicar a preservação das praias e, ao mesmo tempo, fornecer instrumentos para regularizar os imóveis."

OESP, 26/08/2007, Metrópole, p. C7

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