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Salvemos o velho rio

JB, Outras Opinioes, p.A9
Autor: ORNELAS, Waldeck
03 de Jan de 2004

Salvemos o velho rio
Waldeck Ornélas
Consultor em Planejamento
Ao dobrarmos os 500 anos do descobrimento do São Francisco, chama a atenção a necessidade de um amplo debate nacional, que não está existindo, sobre as decisões que precisam ser tomadas em torno do futuro e do papel desse rio.
São fundamentalmente duas as questões que carecem de atenção: uma diz respeito à validade da transposição de suas águas como instrumento de combate à seca do Nordeste; a outra, a nosso ver mais grave e urgente, refere-se à criminosa omissão nacional com que se assiste ao comprometimento progressivo e contínuo da vida desse curso d'água a que, paradoxalmente, se atribui uma importância tão estratégica.
O desenvolvimento do vale do São Francisco constitui uma antiga aspiração nacional, pela importância que o rio tem tido para o país. Já na Constituição de 1946 foi incluída a vinculação de recursos que deu lugar a uma serie de obras e serviços que melhoraram as condições de vida na área da bacia. Mas só recentemente, com a fruticultura irrigada no pólo Juazeiro/Petrolina e a lavoura de grãos nos cerrados da sua margem esquerda, o vale veio a ganhar destaque na economia nacional, embora no passado tivesse tido importância estratégica na ocupação do território, donde suas denominações de ''rio dos currais'' e ''rio da unidade nacional''.
É verdade que o planejamento no Brasil perdeu de vista os programas integrados, de natureza multissetorial, com o que se esvaiu a capacidade de coordenação governamental sobre suas próprias ações. Também os programas de base territorial, como é o caso das políticas regionais de desenvolvimento, foram vítimas do mesmo mal.
Mas o que se vê hoje é a adoção de decisões desconexas e conflitantes. O caso do São Francisco é, a esse respeito, exemplar, na medida em que parece haver uma forte disposição de promover a transposição de suas águas, sem que se observe o estado de degradação ambiental do rio e o risco que envolve sua sobrevivência.
Programas de longo prazo de maturação costumam enfrentar dificuldades ainda maiores, sujeitos a perniciosas descontinuidades. O desmonte ocorrido com a política de desenvolvimento do Nordeste é um exemplo evidente. Nem por isso a tese da transposição deixa de estar no imaginário político do país como uma solução milagrosa, que não pode se transformar em versão moderna e ambiciosa da condenada e malfadada ''indústria da seca''.
O fato de que exista como proposta há mais de 150 anos e até hoje não haja consenso quanto a sua concepção técnica é bem um indicador evidente da sua duvidosa viabilidade ambiental, social e econômica. Mas parece haver a convicção de que a decisão política de implementá-la já foi tomada. O que estranha e choca é a clara percepção de que não há igual firmeza de propósitos em promover a revitalização da bacia hidrográfica do Rio São Francisco, cuja existência e cuja perenidade constituem pressuposto fundamental da proposta.
Essa é, aliás, uma discussão que envolve, diretamente, o processo de licenciamento ambiental da obra, e não pode - sob pena de crime - deixar de ser considerada. O Ministério Público, cioso de suas responsabilidades, há de estar vigilante para que essa providência - a revitalização do Rio São Francisco - não deixe de ser estabelecida como uma condição prévia e inadiável.
Nesse contexto, são também da maior importância o papel e a responsabilidade do recém-instalado Comitê de Bacia: a ele cabe, a partir de agora, zelar pela vida do rio, elaborando o plano diretor dos seus recursos hídricos, decidindo quanto à destinação do uso de suas águas e, inclusive, sobre a cobrança da água consumida para os diversos usos.
Se no futuro não tivermos o Velho Chico, para que servirá a transposição? Essa é a pergunta fundamental que precisa ser respondida.
As universidades, as associações profissionais, os empresários, os partidos políticos, a imprensa, todos precisam voltar-se para esse tema e discutir essa questão, para evitar a insensatez que se vem consolidando no Brasil de ter como milagreira uma proposta que se apóia na existência de um rio - o São Francisco - cuja perenidade está comprometida, sem que se adotem as medidas necessárias e indispensáveis para garantir a sua preservação.
Quaisquer que sejam as decisões que venham a ser tomadas, uma providência impõe-se de imediato: salvemos o Velho Chico!

JB, 03/01/2004, p. A9

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