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Rodovia e expansão urbana ameaçam a comunidade quilombola Abacatal, no Pará

Amazônia Real amazoniareal.com.br
Autor: Moisés Sarraf
29 de Jan de 2018

Ananindeua (PA) - No século 18, um caminho formado por pequenas pedras sobre a terra impedia que o Conde Coma de Melo sujasse os pés ao ir do igarapé Uriboquinha à residência de sua propriedade, hoje situada na zona rural do município de Ananindeua, região metropolitana de Belém (PA). As terras do nobre português, contudo, não foram transmitidas aos seus descendentes. Conde Coma teve três filhas, todas com Olímpia, uma de suas escravas. E os descendentes delas é que herdaram as terras da hoje Comunidade Remanescente de Quilombo do Abacatal. Composta por 121 famílias, a comunidade agora trava uma batalha para retirar as pedras de seu próprio caminho: escapar ao cerco do crescimento urbano e de projetos de desenvolvimento, como rodovias e conjuntos habitacionais, que podem impactar diretamente a vida dos moradores.

Raimundo Cardoso, 63, é uma das lideranças mais antigas da Comunidade Abacatal. Ele estava em seu roçado de mandioca quando a reportagem da agência Amazônia Real chegou. É da roça que ele produz a farinha d'água, o tucupi, a maniva e outros derivados da raiz. O fruto do trabalho do Seu Raimundo, como é conhecido na vizinhança, e das demais famílias que vivem da agricultura familiar na comunidade, será consumido pelos próprios moradores e comercializado aos sábados na Feira do Produtor de Ananindeua, no centro do município. Produtos também destinados a condomínios e conjuntos habitacionais das redondezas, que hoje fazem fronteira com o território quilombola. Mercado consumidor, mas também parte da expansão urbana que agora cerca o Abacatal.

"Já lutamos muito por essa terra", diz Raimundo Cardoso. "Teve uma briga enorme, quase fui morto por causa dessa terra. De 1985 a 1999, fui para a lista da morte", conta o agricultor, sentado ao lado do canteiro de obras de sua nova residência. "Pistoleiro veio aqui, tive que sair, passei um ano escondido."

Em 1999, depois de 40 anos desde o primeiro pleito para titulação da área, a comunidade teve suas terras regularizadas no Instituto de Terras do Pará (Iterpa), um território de 318 hectares.

Apesar da titulação do território, a expansão urbana é um antigo desafio dos moradores. Ainda na década de 1970, quando houve um boom da construção de edifícios no centro de Belém, o mercado imobiliário voltou seus olhos para as proximidades do Abacatal, região rica em minérios classe dois - argila e areia branca, por exemplo -, necessários à construção civil.

O resultado da atividade foi a abertura de grandes crateras, os chamados "curvões", e a consequente perda de cobertura vegetal, prejudicando os lençóis freáticos da população às redondezas. Apenas em 2015 um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) deu fim oficial às atividades minerais na área, determinando a recuperação ambiental das áreas degradadas. Apesar de ainda haver focos pontuais de extração mineral e de os prejuízos ambientais não terem sido sanados, os curvões são vistos como uma batalha vencida pela mobilização da comunidade.

De lá pra cá, a cidade manteve sua marcha rumo ao Abacatal - com cerca de 500 mil habitantes, Ananindeua hoje é o segundo mais populoso município do Pará. E, com a expansão do programa "Minha Casa, Minha Vida", a zona rural metropolitana se transformou em área visada pelos empreendimentos habitacionais. Às proximidades dos quilombolas, há cinco deles em funcionamento e outros dois em construção.

"Dia e noite é perigoso por aqui. É porque a estrada termina dentro da comunidade", conta Vívia Cardoso, filha do Seu Raimundo e hoje uma das lideranças da Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (Ampqua). Do centro de Ananindeua ao bairro do Girassol, limite entre as zonas urbana e rural, são cerca de 3,5 km. A partir deste limite, ainda há 4 km de estrada de terra para se chegar ao Abacatal. "Então, da portaria da comunidade até os condomínios, roubam tudo, mas principalmente nossas motos."

Além da violência, diz Vívia, os condomínios poluem o igarapé Uriboquinha, que atravessa o território do Abacatal, já que despejam "esgoto a céu aberto, a tubulação é visível, sem tratamento nenhum".

Segundo o Ranking do Saneamento, elaborado pelo Instituto Trata Brasil, Ananindeua tem o pior saneamento básico entre as 100 mais populosas cidades do país. Quanto à cobertura de água encanada, por exemplo, apenas 28,8% de sua população são atendidos; a média brasileira é de 83,3%. Já quanto à coleta de esgoto, somente 2,1% dos moradores de Ananindeua têm acesso a esse serviço, muito abaixo da média brasileira, que é de 50,2%.

De acordo com o Mapa da Violência, que considera os municípios brasileiros com mais de dez mil habitantes, Ananindeua foi o sétimo com maior número de homicídios por armas de fogo entre 2012 e 2014. Enquanto a média nacional em 2014 foi de 21,2 homicídios a cada 100 mil habitantes, a de Ananindeua foi de 91,6.

Poluição da fonte hídrica

Do lado oposto aos condomínios, no limite com o município de Marituba, o igarapé Uriboquinha e os moradores enfrentam os impactos da Central da Processamento e Tratamento de Resíduos Guamá, aterro sanitário com capacidade para receber 1.900 toneladas de resíduos sólidos por dia, de propriedade da empresa Guamá Tratamento de Resíduos Sólidos, do grupo Solví. O aterro opera desde 2015 atendendo a Belém, Ananindeua e mais quatro municípios metropolitanos. Criado para atender à Política Nacional de Resíduos Sólidos, o aterro metropolitano deu início a uma batalha contra os moradores das áreas impactadas, incluindo população urbana, ribeirinhos e os quilombolas do Abacatal.

"Na verdade, o aterro foi implantando bem nas margens de um igarapé, do Pau Grande. É bem na nascente do igarapé. E esse igarapé se entrelaça pelo Uriboquinha", explicou Vívia, se referindo ao igarapé que atravessa a comunidade e ainda serve de fonte de renda e lazer aos moradores.

"Quando chove e fica úmido, a gente sente um cheiro horrível. E ainda polui nosso lençol freático. Se a água está poluída, nossas frutas também estão. Temos açaí, acerola, cupuaçu e outras frutas, que a gente vende na feira."

Na comunidade, também se produz licores, comercializados em festividades e eventos dos quais participam. Ainda segundo Vívia, a empresa responsável pelo aterro nunca entrou em contato com nenhum dos moradores da comunidade. "Queremos que o aterro seja fechado. Vá para outro lugar."

Nos últimos dias de dezembro, depois de quase mais de dois anos de mobilização dos moradores, Polícia Civil e Ministério Público do Estado deflagraram a operação "Gramacho", cujo objetivo era executar mandados de prisão contra diretores da empresa Guamá Tratamento de Resíduos, além de cinco mandados de condução coercitiva e 16 de busca e apreensão.

Os indiciados serão responsabilizados pelos crimes de poluição hídrica e atmosférica, e por construção de obras potencialmente poluidoras sem licença ambiental, dentre outras infrações ambientais. Confirmando as denúncias dos moradores, a Polícia Civil apurou que, ainda em janeiro de 2017, a empresa despejou chorume no solo. O líquido ainda teria ido diretamente para o igarapé Pau Grande, que está situado em uma unidade de conservação estadual, o Refúgio de Vida Silvestre Metrópole da Amazônia. Ainda assim, o aterro continua recebendo a produção de lixo dos aproximadamente 2,4 milhões de moradores de Belém e região metropolitana.

A ameaça da rodovia

"Soubemos que há um outro projeto que atravessava nossa comunidade, bem ali naquele campinho", disse a presidente da Ampqua, Vanuza Cardoso, apontando para um campo de futebol onde algumas crianças passavam a tarde. "Mas não sabemos de nada oficialmente, apenas o que se diz por aí."

Ela se referia à rodovia Liberdade, projeto de infraestrutura do governo do Pará, hoje considerada a maior ameaça à soberania do Abacatal. A rodovia deverá ser realizada por meio de uma Parceria Público-Privada e tem como objetivo ligar Belém aos demais municípios metropolitanos, desafogando a rodovia BR-316, cuja capacidade de fluxo está no limite.

Sem comunicar os moradores, que terão suas vidas possivelmente impactadas pela obra, ainda em 2016, durante o Seminário Regional Norte sobre Concessões e Parcerias Público-Privadas, realizado na sede da Federação das Indústrias do Estado do Pará (Fiepa), a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) apresentou a rodovia como uma das oportunidades para consolidação de parcerias público-privadas no Pará. E isso foi o suficiente para que se iniciasse a mobilização da comunidade em torno do empreendimento.

"Um dos projetos que vi, não oficialmente, mostra uma rodovia com muros, com túnel por baixo ou por cima, mas com saídas apenas em alguns pontos", conta Vanuza. "Vão proibir nossa passagem? Vamos ficar presos? Ainda não tivemos ninguém do Estado aqui na comunidade para explicar isso."

O projeto da rodovia, ainda segundo a presidente da associação, está atrelado a linhas de transmissão e subestações de energia elétrica. Sobre isso, houve "uma conversa informal com técnicos da Equatorial [concessionária de energia elétrica no Pará], mas foi preliminar, apenas um contato inicial", afirma Vanuza.

A consulta prévia

Para os moradores, a posição do Abacatal sobre os projetos só poderia ser manifestada depois de concluído um debate realizado no decorrer de 2017. O tema era a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do mecanismo de consulta prévia. De acordo com a convenção, da qual o Brasil é signatário, povos indígenas e outas comunidades tradicionais têm de ser consultadas antes da implantação de qualquer empreendimento que possa lhes impactar direta ou indiretamente, explica a promotora de justiça agrária, Eliane Moreira, que já atua na comunidade do Abacatal há cinco anos. A legislação está em vigor no Brasil desde 2004, mas a comunidade foi além: iniciou um movimento para a criação de um protocolo que diz exatamente como os moradores devem ser consultados em caso de realização de projetos.

"O protocolo é a regra que deve ser observada por qualquer empreendedor que pretenda desenvolver uma atividade dentro do território ou fora, mas que cause impactos a esse território", explica a promotora. Do ponto de vista legal, o protocolo é uma "regra válida juridicamente", completa Eliane Moreira, "apesar de ser uma regra emanada da comunidade, ela é válida porque se baseia na autodeterminação da comunidade".

Os debates sobre a consulta prévia reuniram não apenas os próprios moradores, mas também um conjunto de outras organizações em uma mobilização de meses. "A gente conversou, fez reuniões. Participaram crianças, adolescentes, jovens e adultos e, a partir daí, isso vai influenciar a vida de muita gente", avalia Vanuza. Ela destaca que o protocolo é discutido desde março do ano passado por conta da rodovia. "O protocolo e a atenção sobre o projeto da rodovia se tornaram prioridade."

Em outubro do ano passado, o protocolo de consulta prévia foi apresentado oficialmente na sede do Ministério Público do Estado do Pará.

De acordo com o documento, a consulta prévia será composta por reuniões internas com os vários segmentos da comunidade - de grupos de jovens a religiosos -, elaboração de calendário de consulta, reuniões informativas sobre o plano, esclarecimento de pontos positivos e negativos e, por fim, assembleia geral, quando a comunidade dirá se consente ou não a realização do projeto.

"Há previsão de diversos projetos sobre os quais nem sequer somos consultados, mas que podem atingir seriamente nosso território, como rodovias, instalação de indústrias, entre outros", diz o protocolo de consulta. "Por isso decidimos fazer este Protocolo de Consulta (...) que nos assegura o direito de sermos consultados previamente à instalação desses projetos."

O protocolo Munduruku

A experiência dos índios Munduruku, que também construíram seu próprio protocolo de consulta prévia, foi decisiva no Abacatal. Mecanismo que veio num momento chave: quando sobre a bacia do Tapajós, onde vivem os indígenas, recaía a possível implantação de hidrelétricas.

"Procuramos imediatamente criar um grupo constituído entre a comunidade e parceiros, como a UFPA (Universidade Federal do Pará), o Ministério Público, a Defensoria Pública e outras organizações como a Cáritas e a Comissão Pastoral da Terra", explica João Gomes, sociólogo e técnico de planejamento da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), organização que assessorou a constituição do protocolo Munduruku e foi convidada pelos moradores a contribuir da mesma forma no Abacatal. "É ter uma ferramenta, exigir a consulta prévia, livre e bem informada antes da implantação desses empreendimentos que vão impactar o território do Abacatal", completou.

Para o sociólogo, os empreendimentos ao redor da comunidade, sobretudo a rodovia Liberdade, estão inseridos no cenário internacional, com investimentos de países como a China nos segmentos mineral e do agronegócio. "E isso requer a construção de ferrovias, rodovias, portos, produção e distribuição de energia", diz João Gomes. "Um conjunto de empreendimentos que faz parte de um plano maior chamado Iniciativa para Integração da Infraestrutura da América do Sul. Desde os últimos governos do PT, essa integração também tem conexões com os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China)".

A China, diz ele, tem "um papel destacado porque é uma das principais compradoras das commodities, não só com interesse em comprar, mas também fornecer insumos e interessada em investir em infraestrutura". Populações indígenas, quilombolas e agroextrativistas, acrescenta João Gomes, "têm uma relação secular distinta com a floresta e de certa forma são vistas como empecilho ao avanço dessa estratégia de expansão do capital".

O Abacatal aguarda mais informações. A partir da representação dos moradores e de outras famílias da região a ser impactada pelo empreendimento, o Ministério Público do Pará conduz inquérito civil que apura os detalhes do projeto da rodovia Liberdade, ainda em fase inicial.

O que dizem as autoridades?

Em nota enviada à reportagem da Amazônia Real, a Sedeme se limitou a informar que "foram concluídos os estudos de pré-viabilidade, em novembro de 2016, nos quais se faz uma primeira avaliação no sentido de verificar se o empreendimento apresenta ou não possibilidade de negócio e sua viabilidade técnica". Ainda segundo a nota, os estudos aguardam aprovação do governo do Pará. De acordo com a secretaria, o projeto visa a "criar um acesso terrestre à Região Metropolitana de Belém (RMB), alternativo à BR-316", uma vez que a atual rodovia "encontra-se com sua capacidade esgotada".

Também em nota enviada à reportagem, o grupo Solví, holding que controla o aterro sanitário de Marituba, justifica que as acusações feitas pelo Ministério Público do Pará "estão sendo paulatinamente esclarecidas perante o Judiciário".

A empresa reconhece que "enfrentou problemas na sua operação no passado, e, hoje, funciona com a presença de interventores do Estado, sendo fiscalizado diariamente pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade".

A respeito da denúncia de moradores do Abacatal, que dizem nunca terem sido consultados sobre a implantação do aterro, a Solví alega que a "comunidade do Abacatal e as demais comunidades do entorno participaram dessa fase [audiências públicas]". Indagada sobre o pleito de moradores de Marituba e da comunidade do Abacatal pela mudança de local do aterro sanitário, a empresa não se posicionou sobre o tema.

Sobre o despejo de esgoto nos igarapés da região, a Secretaria Municipal de Saneamento de Ananindeua não se pronunciou até a publicação desta reportagem. A Rede Celpa, procurada para esclarecer sobre o projeto de instalação de linhas de transmissão às proximidades do Abacatal, também não respondeu.

"A nossa vidinha aqui"

Os moradores sabem que a expansão urbana de Ananindeua não tende a cessar - e por isso o caminho das pedras do Abacatal é reconstruído todos os dias na escola "Manoel Gregório Rosa Filho", que fica dentro da comunidade e cujo nome homenageia um dos moradores que passou parte da vida em busca da titulação das terras do Abacatal.

A professora Ana Alice Silva, coordenadora pedagógica, mostra as fotos de uma incursão dos alunos à vizinhança: os curvões, de cicatriz na terra, entraram no currículo escolar. "Conversamos com os alunos. Mostramos os impactos dessas atividades, mostramos que as futuras gerações precisam sempre lutar", conta a coordenadora.

"Nós somos uma comunidade rural, que vive na zona metropolitana, e têm uma vivência diferenciada do urbano. Porque se igualar ao urbano é perder nossa identidade, nossas raízes. Já temos tantos problemas, isso é trazer ainda mais", diz Vanuza Cardoso, presidente da associação dos moradores e aluna do curso de Ciências Sociais, uma dos 22 membros da comunidade a ingressar na Universidade Federal do Pará (UFPA) através do sistema de cotas para quilombolas. Para este ano de 2018, há 34 inscritos no processo seletivo.

"Queremos continuar rurais, como quilombola. Sabemos que o Abacatal é uma comunidade pequena perto da região metropolitana, mas a gente quer continuar com a nossa vidinha aqui, com a nossa vidinha aqui", conclui Vaniza Cardoso.

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