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Retratos da São Paulo indígena

Le Monde diplomatique, abr. 2008
Autor: LEITE, Eleilson
30 de Abr de 2008

Retratos da São Paulo indígena
Em torno de 1.500 guaranis, reunidos em quatro aldeias, habitam a maior cidade do país. A grande maioria dos que defendem os povos indígenas, na metrópole, jamais teve contato com eles. Estão na perferia, que vêem como lugar sagrado.

Eleilson Leite

Ao tratar da questão indígena, a gente comete muitos erros - por desconhecimento, preconceito e muitas vezes os dois juntos, um resultado do outro. A começar pela forma de se referir a essas populações tradicionais, chamando-as genericamente de índios. Existem povos e nações indígenas. É comum pensarmos também que os indígenas estão desaparecendo, integrando-se à sociedade branca e abandonando sua cultura de forma irreversível. Não é bem assim. No Brasil existe uma população 734 mil indígenas, segundo o IBGE, em levantamento de 2000. No censo de 1991, eram 294 mil. Evidentemente, que não houve o boom de natalidade. É que muitas pessoas, antes não identificadas como indígenas, passaram a assim se declarar. Há um certo orgulho indígena. Colaborou para isso, a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Convertida em lei ordinária pelo presidente Lula em 2004, essa convenção estabelece a auto-declaração como critério fundamental pra reconhecimento de comunidade indígena, dispensando os laudos de identificação étnica.
O Instituto Socioambiental, que monitora, há cerca 30 anos, os povos indígenas no Brasil, identifica 225 povos, que reúnem cerca de 600 mil pessoas, ocupando uma área de 1,08 milhão de km2, pouco mais de quatro vezes a área do Estado de São Paulo. E tem muitas comunidades indígenas nas grandes cidades. Você sabia que em São Paulo tem quatro aldeias indígenas que juntas, somam 1.500 pessoas? E há mais um contingente ainda não calculado de indígenas não-aldeados na capital e nos demais municípios da região metropolitana.
Falar de povos indígenas para quem está na grande metrópole parece sempre algo distante de nossa realidade. Mas eles estão aqui, junto da gente. Muitas vezes os defendemos e não os conhecemos. E na cidade de São Paulo, os indígenas ficam na periferia. E nas bordas da cidade é onde devem ficar mesmo. Onde há ainda mata nativa, vento fresco, ar puro. Para os Guarani, os locais escolhidos para as aldeias, apresentam características especiais reveladas por Nhanderu, o criador: recursos da flora, fauna, formações rochosas, ruínas. Esses locais possibilitam o acesso à Yvy Mara?'? a terra sem mal (cf. Ladeira, 2000, citado por Grupione, 2007) Olha só! A periferia paulistana vista pela concepção religiosa guarani adquire ares de lugar sagrado.
Recebi do antropólogo Luiz Donizete Benzi Grupione, secretário executivo do Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepé), um estudo de sua autoria, que descreve um quadro muito abrangente e criterioso da situação dos indígenas paulistanos. Segundo Grupione, as quatro aldeias aqui existentes são do povo Guarani. Presentes também em outros países da América do Sul, os Guarani somam, no Brasil, 35 mil pessoas, que se dividem em três sub-grupos: Guarani Kaiowa, Guarani Nhadéva e Guarani Mbya. As aldeias paulistanas são todas deste último sub-grupo, e representam cerca 25% do total de Guarani Mbya do país. Duas delas ficam no Jaraguá (Zona Oeste): Tekoa Pyau e Tekoa Ytu. Em Parelheiros (Zona Sul, divisa com São Bernardo do Campo) ficam as aldeias Krukutu e Tenonde Porá.
Em cada aldeia, um CECI. Professores indígenas ensinam em guarani. A arquitetura baseia-se em suas visões de mundo. Um bom coral já gravou dois CDs
De acordo com o mesmo estudo, as aldeias foram criadas nas décadas de 1960, sendo reconhecidas nos anos 80, exceto a aldeia Tekoa Pyau, no Jaraguá, cuja população de 320 pessoas está em luta por sua regularização. Há uma série de iniciativas do Estado e da Prefeitura junto às comunidades, sobretudo na última década. Por exemplo, a construção de casas de alvenaria por parte do CDHU - Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano na aldeia Tenonde Porá. Há também unidades de saúde, programas sociais de transferência de renda, escolas estaduais que cobrem o ensino fundamental, além dos Centros de Educação e Cultura Indígena (CECIs), criados em 2004, na gestão da então prefeita Marta Suplicy.
Em cada aldeia, há um CECI. Eles oferecem educação infantil com ensino monolíngüe em guarani, com professores indígenas. Em suas instalações, cuja arquitetura foi desenvolvida levando em conta suas concepções, as comunidades realizam diversas atividades culturais, reuniões, encontros, recebem escolas e demais grupos interessados, comercializam artesanato e outros produtos. A comunidade Tenonde Porã tem um coral muito destacado, que já gravou dois CDs, sendo que o segundo reuniu grupos vocais das outras três aldeias, além de comunidades do litoral paulista e do Rio de Janeiro.
Há portanto uma organização social indígena muito bem articulada na periferia paulistana. E nem mesmo os artistas periféricos conhecem bem essa realidade. Talvez a maioria saiba que existe, mas definitivamente a vida indígena na metrópole não lhes serve de inspiração. Ano passado, quando fui escrever nesta mesma coluna sobre a cultura negra e sua influência na periferia, cerquei-me de farta literatura. Eventos, havia aos montes. Ao pautar a cultura indígena porém, vi-me num deserto. Examinei quase trinta publicações de literatura periférica entre livros (poesia, conto, dramaturgia e romance), cadernos literários, revistas, fanzines. Encontrei apenas um poema. Ainda sim é uma poesia de protesto, que trata dos garotos de classe média de Brasília que atearam fogo num indígena que dormia no ponto de ônibus, caso famoso que comoveu o País anos atrás.
O poema, chamado Mendígenas é do grande poeta Binho e está em seu livro Dois Poetas e Um Caminho, escrito em parceria com Serginho Poeta, publicado no ano passado pela Edições Toró. Não por acaso, o fundador do famoso sarau periférico que leva seu nome é, também, um dos idealizadores do único evento referente à questão indígena, na edição de abril da Agenda Cultural da Periferia. Trata-se do Julgamento Popular de Borba Gato. O bandeirante imortalizado com uma imponente estátua, que virou ponto turístico de Santo Amaro há décadas, será questionado por seus crimes contra índios e negros, sendo condenado em praça pública, aos pés do monumento a ele erguido na avenida Adolfo Pinheiro. O ato, organizado pelo Coletivo Epidemia e mais uma dezena de outros grupos, terá pintura, dança, sarau e muito protesto criativo, irreverente e contundente.
Artistas periféricos e coletivos de classe média protetam, aos pés da estátua, pelos indígenas. Estes festejam em suas aldeias e vendem arte num shopping. Loucura?
É curioso porém, o fato de não haver nenhum grupo indígena na organização do protesto. Por outro lado, as aldeias de São Paulo estarão em grande agitação cultural. Nos CECIs, haverá muitas atividades artísticas e também debates, discussões sobre a questão indígena urbana. Há outro evento também, mas na cidade de Osasco que reúne uma bela mostra da cultura dos Pankarare, indígenas migrados que habitam a periferia daquela cidade. O evento terá música, dança, artesanato, uma oca em tamanho natural, além de outros elementos da cultura deste povo. Estará aberto durante este final de semana no Shopping Osasco Plaza. Organizada pelo Programa Osasco Solidário, a atividade visa aprimorar e difundir o empreendimento dos Pankarare na lógica da Economia Solidária.
Não é louco isso? Os artistas da periferia, articulados com coletivos de classe média universitários, fazendo protesto aos pés do Borba Gato, a fim de condenar o algoz dos índios pelos crimes de genocídio cometidos e esquecidos pela história oficial. Enquanto isso, os indígenas, principais interessados neste julgamento, estão lá em suas aldeias, festejando, ou num shopping, vendendo seus produtos. Em ambos os casos, com apoio direto do poder público, freqüentemente acusado de omissão. A realidade realmente é mais complexa do que aquilo que nossa vã filosofia pode supor. Todo mundo está certo nessa história. O protesto é sem dúvida oportuno, e espero que atraia muita gente. E os indígenas têm mais é que fazer seus eventos de afirmação e comercialização.
É preciso ampliar o diálogo, estabelecer conexões e alianças, conhecer e se envolver com a cultura indígena, especialmente dos que habitam conosco o espaço urbano. Assim, conseguiremos "repensar a história do nosso povo", como diz a convocatória do julgamento popular. Neste Dia do Índio, vamos a Santo Amaro condenar o Borba Gato, sim, mas vamos também às aldeias em Parelheiros e no Jaraguá, conhecer o lugar sagrado dos Guarani. Em Osasco, vamos prestigiar a cultura do povo Pankarare. Nunca foi tão interessante ir a um shopping center. Se não for a nenhum desses lugares, vá à livraria mais próxima. Procure na seção infanto-juvenil, os livros do Daniel Munduruku. Este autor indígena tem vários livros publicados por grandes editoras. Só pela Global, são oito obras. Uma delas tem título extremamente sedutor e é uma excelente pedida: A primeira estrela que vejo é a estrela do meu desejo.
Que Nhanderu proteja todos nós.
Serviço:
Julgamento Popular do Borba Gato
Dia 19 de abril, a partir das 11h
Av. Adolfo Pinheiro, em frente à estátua do Borba Gato
Informações: julgamentopopular@hotmail.com
www.acaoeducativa.org.br/agendadaperiferia
Mais:
Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna:

Le Monde diplomatique, abr 2008

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