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Reinventar relações respeitosas

OESP, Caderno Especial, p. X7
Autor: NOVION, Henry
07 de Ago de 2008

Reinventar relações respeitosas

Henry Novion

Terminou em julho a consulta pública do anteprojeto de lei de acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade (PL de acesso). O projeto vai substituir a controversa Medida Provisória no 2.186-16, de 2001, atualmente em vigor. Ele aborda, entre outros temas, os direitos de os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares protegerem seus conhecimentos sobre a biodiversidade, de forma que o uso desses conhecimentos por pesquisadores e empresas possa gerar benefícios, monetários ou não, que recompensem essas populações pelos conhecimentos cedidos em prol do bem comum e ajudem a conservar os recursos naturais fundamentais ao desenvolvimento de novos produtos. No Brasil, os povos e comunidades tradicionais somam mais de 20 milhões de cidadãos, que arcam com os custos de conservar e manejar recursos genéticos de forma sustentável, e correspondem a mais de 220 povos indígenas, milhares de comunidades remanescentes de quilombos, ribeirinhos, extrativistas, sertanejos, pantaneiros, seringueiros, geraizeiros, vazanteiros, pescadores artesanais, caiçaras e agricultores familiares, entre outros.

Em função da complexidade do tema, que envolve conceitos extremamente abstratos como "recursos genéticos" ou "conservação ex situ", a compreensão do conteúdo do referido projeto não é tarefa simples, principalmente para os muitos brasileiros não familiarizados com termos técnico-científicos e linguagem jurídica. Ocorre que o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais, dentre eles a Convenção da Diversidade Biológica e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garantem a povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares o direito de participarem e de serem consultados previamente à adoção de regras ou decisões que afetem seus recursos e saberes.

Apesar dessa obrigação internacionalmente assumida, e que tem força de lei aqui dentro, o governo federal reluta em cumpri-la. O projeto foi submetido a uma consulta pública que esteve disponível apenas para aqueles que têm acesso à internet, o que, embora tenha permitido a participação de alguns setores da sociedade diretamente interessados no tema - o das instituições de pesquisa e empresas de biotecnologia -, não possibilitou o mesmo tipo de inserção da outra parte, que não entende os conceitos ali colocados, não tem acesso à internet e muitas vezes nem à luz elétrica.

Com base nos direitos assegurados por estes tratados, mais de 120 organizações representativas de povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares e outras entidades da sociedade civil reivindicaram à Casa Civil da Presidência da República a realização de um processo apropriado de consulta pública. Para elas, seria adequado um processo presencial em que o governo federal, aportando os recursos e dispondo de tempo suficiente para sua realização, dê oportunidade para que estes grupos sociais compreendam, discutam e formulem suas propostas e que, ao final, inclua na lei as demandas levantadas.

A consulta pública presencial, nesses casos, não se resume a um evento, uma reunião ou um encontro, nem ao simples ato de informar os povos sobre decisões administrativas e legislativas que lhes afetam. Ela significa, tanto para o Estado como para os povos e comunidades tradicionais, o desafio de reinventar relações respeitosas de coordenação, deixando para trás a dominação e a imposição.

Atualmente a Casa Civil coordena, junto aos demais ministérios afetos ao tema do PL de acesso, um processo específico de consulta pública presencial para povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares, a ser realizada nas cinco regiões do Brasil antes do envio do PL ao Congresso. Com esse intuito, foi criada uma comissão organizadora - com a participação de entidades representantes desses segmentos da sociedade - que deverá elaborar, conjuntamente, o processo de consulta pública para a lei de acesso. Só por meio desse instrumento será possível garantir a estes brasileiros o direito soberano à participação ativa na tomada de decisões sobre seus recursos e conhecimentos - o que fortalecerá o protagonismo destes atores e o exercício da democracia no Brasil.

Nesse sentido, espera-se que a consulta presencial seja de fato realizada, posto que, mais do que um direito, ela é uma demanda destes brasileiros, que desejam ser incluídos no processo de formulação e gestão de políticas e leis que lhes digam respeito, e não apenas vistos como meros objetos de estudo e fornecedores de matéria-prima e saberes.

É biólogo do Programa de Políticas Públicas e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental

OESP, 07/08/2008, Caderno Especial, p. X7

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