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Rede publica adere ao uso de fitoterapia

FSP, Cotidiano, p.C5
22 de Mar de 2004

Rede publica adere ao uso de fitoterapia
Apesar de a prática não ser reconhecida pelo CFM, 12 Estados adotam remédios à base de plantas em programas oficiaisRede pública adere ao uso de fitoterapia

DAYANNE MIKEVISDA AGÊNCIA FOLHA

Estados e municípios têm implementado programas oficiais de medicina fitoterápica (à base de plantas) na rede de saúde, com o argumento de que esses remédios funcionam, são baratos, têm grande procura e poucos efeitos colaterais. A prática, porém, não é reconhecida como especialidade médica pelo CFM (Conselho Federal de Medicina).No Brasil, há programas de fitoterapia no sistema estadual ou municipal de saúde em ao menos 12 Estados, de acordo com levantamento feito pela Agência Folha.Em certas cidades, o paciente pode ser atendido pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas não há uma política nacional a respeito. A possibilidade de implementar a fitoterapia na rede do SUS começou a ser estudada em 2003 pelo Ministério da Saúde.Mesmo sem o reconhecimento pelo CFM, a prática é autorizada na rede pública por uma resolução de março de 1988 do Ministério da Saúde. Em 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o ministério elaborou um documento com diretrizes para o uso de fitoterápicos no sistema público de saúde.O objetivo era o mesmo do atual grupo de trabalho (formado em 2003), mas a iniciativa acabou não saindo do papel. Segundo a coordenadora-geral de Suporte às Ações de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, Maria José de Sousa, uma política nacional é necessária para padronizar o atendimento no setor público.Sousa disse que "em muitas cidades a estocagem dos remédios não é perfeita e isso é mais complicado com ervas e fitoterápicos porque tem uma questão de temperatura do ambiente".Segundo ela, a política nacional deverá incluir apenas medicamentos com registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), algo que não acontece hoje em muitos municípios.Na última quinta-feira, a Anvisa estabeleceu regras mais rígidas para conceder o registro de fitoterápicos. Assim como no caso dos alopáticos (tradicionais), laboratórios terão de comprovar, por meios científicos, a eficácia e a segurança dos medicamentos feitos à base de plantas.De acordo com os municípios consultados, os fitoterápicos são sempre receitados por médicos. O paciente chega ao posto de saúde especializado ou da rede pública normal e lhe é prescrito medicamento que pode ser adquirido de graça em farmácias municipais ou cultivado em casa.Na opinião do CFM, como o conselho não reconhece a fitoterapia, o ato de um médico receitar esse remédio é apenas uma sugestão, e não uma prescrição.De acordo com o conselheiro do CFM Mauro Brandão, o órgão estuda reconhecer atividade como especialização médica, mas não há prazo para a decisão.Quando usados no sistema público de saúde, os remédios são feitos, em geral, em laboratórios municipais -muitos em parceria com universidades.Curitiba, por exemplo, mantém convênios com a Universidade Federal do Paraná e com as universidades estaduais de Londrina, Maringá e Ponta Grossa.Na cidade funciona desde 1990 o programa Verde Saúde, que é oferecido em 77 unidades da rede pública de saúde. São usadas 22 plantas medicinais para 17 diagnósticos, entre os quais bronquite, dor abdominal, enxaqueca, gastrite e micoses.Na Paraíba, três instituições de ensino superior oferecem a disciplina de fitoterapia nos cursos de medicina, nutrição e enfermagem. O Estado possui um programa de uso de fitoterápicos, mas apenas João Pessoa adota a prática, pois é a única com um laboratório para produzir os remédios.Outro programa estadual é o de Goiás. Na capital do Estado, foi criado há 15 anos o Hospital de Medicina Alternativa, que tem capacidade de atender 150 pacientes por dia. Segundo o diretor da instituição, o médico Nestor de Carvalho Furtado, as ervas são usadas numa associação com medicamentos alopáticos no tratamento de doenças como câncer e Aids.
Salvador legitima sabedoria popular
DA AGÊNCIA FOLHA, EM SALVADOR A cena é muito comum no Candeal, bairro localizado no centro de Salvador. Antes de procurarem os médicos, os dentistas, os enfermeiros e os agentes comunitários que trabalham no único posto de saúde do local, os moradores costumam comparecer à casa de Maria José Menezes dos Santos, 63, que há mais de quatro décadas "receita" e produz medicamentos fitoterápicos -à base de plantas- para os seus "pacientes"."Os meus remédios curam a tosse, a bronquite, a asma, a anemia, a rouquidão, o colesterol prejudicial à saúde e qualquer tipo de dor", diz Santos, que não concluiu a quarta série do ensino fundamental. "Todos os meus oito filhos e os quatro netos foram criados com remédios naturais."De fato, a tradição do bairro levou a Prefeitura de Salvador a inaugurar, no final de 2003, o primeiro posto de saúde do município voltado à fitoterapia. Uma horta, com 39 espécies de plantas medicinais, cerca a unidade. Outras 40 mudas devem ser plantadas nos próximos dois meses."A sabedoria popular jamais pode ser desprezada. Verbalmente, costumo receitar ervas para os meus pacientes", disse a médica Lícia Regina Peixinho, 45, que trabalha no posto de saúde.Antes da inauguração do posto, médicos da prefeitura e funcionários do departamento do curso de farmácia da FTC (Faculdade de Tecnologia e Ciências) identificaram e cadastraram 92 espécies de plantas medicinais utilizadas pelos moradores do bairro. "Nós apenas legitimamos a sabedoria popular", disse a secretária municipal da Saúde, Aldely Rocha, 53.Segundo a dentista Tânia Carvalho, 47, que também trabalha no posto, "os remédios à base de folhas não têm contra-indicação". Mesmo em seu consultório, fora do posto, a dentista costuma receitar um chá de malva aos pacientes que necessitam de um medicamento antiinflamatório."Rezadeira" do bairro, Marinalva Ventura de Almeida, 45, disse também tomar medicamentos à base de folhas. "Algumas plantas têm eficácia comprovada há mais de um século." De acordo com a secretária Aldely Rocha, o primeiro posto a aceitar a fitoterapia em Salvador promoveu uma "inclusão" social em Candeal. "Antes da inauguração, os moradores já consumiam as ervas. Nós não temos o direito de mudar uma crença. Afinal, qual o brasileiro que não foi criado tomando chá?"
Ceará pesquisa ervas desde 1983
DA AGÊNCIA FOLHA, EM FORTALEZA O Ceará foi, na década de 80, o primeiro Estado a ter uma rede de produção e distribuição de medicamentos fitoterápicos no país.O projeto se chama Farmácia Viva. Foi criado em 1983 e conta hoje com 42 unidades, cada uma com horta e equipamentos para produção dos medicamentos.A rede é coordenada por uma fundação ligada à UFC (Universidade Federal do Ceará), que monta as unidades em parceria com prefeituras, organizações comunitárias e ONGs. O criador da rede foi o professor emérito da UFC e doutor em farmácia Francisco José de Abreu Matos, 79.Em 1983, ele instalou uma horta experimental e criou o nome Farmácia Viva. A idéia era pesquisar as plantas usadas popularmente como medicinais, para verificar cientificamente sua eficácia. Segundo levantamento feito pelo professor em 1983, existem no Nordeste 529 plantas utilizadas popularmente como medicinais, mas só 64 já foram estudadas.Hoje as plantas são utilizadas no Ceará por ONGs e secretarias de saúde de municípios. É com o cultivo e a manipulação de parte das 64 espécies que o Iprede (Instituto de Prevenção à Desnutrição e à Excepcionalidade), que atende crianças desnutridas, em Fortaleza, trata de 80% das doenças.Pela orientação da UFC, são necessárias, para a montagem de uma horta medicinal, a disponibilidade de 1 ha de terra, com água próxima e distante da poluição, e a supervisão de um farmacêutico.
Utilização não é consenso porque prática não é reconhecida
DA AGÊNCIA FOLHA O uso de medicamentos à base de plantas na rede pública não é consenso entre profissionais da área, sobretudo porque a prática não é reconhecida pelo CFM.Em São Paulo, a aprovação em fevereiro de uma lei que permite o uso da fitoterapia em um posto de saúde a ser criado foi alvo de críticas do CRM (Conselho Regional de Medicina) local. O presidente do órgão, Clóvis Francisco Constantino, ameaçou questionar a lei na Justiça, mas desistiu. Para ele, o fato de o poder público adotar a prática pode levar ao retardamento do diagnóstico. "É querer baratear os custos na rede pública."O preço mais baixo é um dos argumentos dos coordenadores de programas que envolvem a fitoterapia. No Distrito Federal, segundo o órgão responsável, o xarope de guaco custa cerca de R$ 0,80 (unidade) se produzido no laboratório do programa e cerca de R$ 5 nas farmácias de manipulação. O preço é questão central para Terezinha de Jesus, do Farmácia da Terra, no Amapá, em funcionamento em cinco cidades. "Os médicos são itinerantes, a maioria das pessoas desses municípios não tem acesso a medicamentos."Para Eduardo Pagani, um dos diretores da Sobrafito (Sociedade Brasileira de Fitomedicina), o uso exclusivo de fitoterápicos ou plantas medicinais não é recomendado, "mas se é a única opção, o tratamento é válido".Para o professor de farmacologia da Unifesp Antônio José Lapa, é "difícil" receitar fitoterápicos como medicamentos. Lapa disse que, se não houver eficácia demonstrada clinicamente, eles podem ter apenas efeito psicológico ou causar intoxicações.Há cerca de quatro anos, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP abriga um laboratório de fitoterápicos, o Fitofar. Segundo a diretora do órgão, Elfriede Bacchi, a incorporação da fitoterapia pela rede de saúde pública é "complicada" não só por questões da cadeia produtiva e da ausência de estrutura, mas também por falta de pesquisa. Segundo ela, na lista de fitoterápicos registrados pela Anvisa, há poucas plantas brasileiras. Por isso é necessário investir em pesquisa.Dosagens incorretas e problemas de identificação de espécies são comuns, segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Nesse ponto, os coordenadores de programas afirmam que as políticas de uso da fitoterapia ajudam a convencer a população de que plantas podem ser remédios e que cuidados devem ser tomados.Segundo médicos ouvidos pela Agência Folha, algumas práticas tradicionais, como o chá de confrei usado como antiinflamatório, podem causar danos que levam ao câncer de fígado. Um outro exemplo é o uso da erva buchinha sem a devida diluição para desentupir o nariz. Há possibilidade de queimaduras sérias. A mesma planta também é abortiva. Em 2002, a Fundação Oswaldo Cruz registrou 14 internações devido ao uso da erva com esse fim.De acordo com o diretor-adjunto para área de medicamentos da Anvisa, Davi Rumel, não há funcionários suficientes para o órgão fazer cumprir uma legislação que proíba ou limite a venda desse tipo de planta em locais como casas de umbanda. A Anvisa fiscaliza apenas fitoterápicos processados, não se estendendo a folhas, cascas de árvore ou raízes.Uma das ressalvas à fitoterapia é feita pelo presidente do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, Francisco Caravanti Júnior, que teme a ausência de farmacêuticos nos laboratórios públicos que produzam fitoterápicos. A preocupação com a qualidade também foi levantada pelo presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo, Lauro Mattos. "Talvez seja muito cedo para aplicar no poder público."

FSP, 22/03/2004, p. C5

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