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Quilombolas ganham voz no campo

OESP, Nacional, p. A8
24 de Dez de 2006

Quilombolas ganham voz no campo
Com força crescente e amparados pela lei, remanescentes de quilombos lutam para reaver terra dos antepassados

Roldão Arruda

Depois dos sem-terra, dos povos indígenas e dos atingidos por barragens, um novo grupo ergue a voz em busca de direitos sobre a terra, aumentando os focos de tensão na zona rural. Agora são os quilombolas - nome dado aos remanescentes de antigos quilombos, constituídos por comunidades negras durante o período da escravidão e também depois que o regime escravocrata foi abolido.

O último atrito ocorreu na quarta-feira, quando 32 famílias quilombolas da comunidade de Tracoateua, no Pará, derrubaram uma torre de transmissão de energia elétrica erguida pela Companhia Vale do Rio Doce. Exigiam compensações pela construção de um mineroduto.

Em levantamento recém-concluído pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) verificou-se que estão em andamento 463 processos nos quais os quilombolas cobram o reconhecimento legal das terras que ocupam. Na maior parte dos casos também reivindicam a devolução de áreas ao redor, que teriam pertencido aos seus antepassados. Trata-se de uma quantidade expressiva de pedidos, cuja execução implica na desapropriação de terras em diversos Estados. Mas mesmo assim ela sinaliza apenas parte do problema.

Ninguém sabe ao certo quantos quilombos existem no País, mas é possível ter uma idéia a partir de um outro levantamento, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), encarregada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de coordenar o projeto Brasil Quilombola. "Pela nossa base de dados, são 3.250 comunidades quilombolas, com cerca de 2,5 milhões de pessoas", diz Carlos Trindade Santos, da Subsecretaria de Políticas para as Comunidades Tradicionais.

Na maior parte dos casos são comunidades pobres, com baixo grau de instrução, pouco poder de pressão e que sobrevivem com o apoio do assistencialismo. A novidade é que estão fortalecendo as articulações entre elas e com outros movimentos, para ganhar força política.

SEM-TERRA

Ao participar, dias atrás, de um encontro de movimentos sociais em São Paulo, o quilombola Antônio dos Santos, da Coordenação dos Remanescentes de Quilombos, afirmou: "O Brasil tem muitas terras, guardadas por poucas pessoas. Estamos organizando os quilombolas e procurando nos juntar com os índios e os sem-terra para mudar isso. " Santos mora no Quilombo da Caçandoca, em Ubatuba, no litoral paulista. Esse nome é bastante conhecido na comunidade por ter sido o primeiro quilombo beneficiado com um decreto de desapropriação de terras por interesse social.

Há 43 anos seus moradores disputavam com uma imobiliária os direitos sobre uma área de 210 hectares, de frente para o mar e dentro da Mata Atlântica. Em setembro, Lula pôs fim à disputa com um decreto de desapropriação da área, que acaba de ser devolvida às 53 famílias.

Ao todo, o pessoal da Caçandoca reivindica 890 hectares no litoral. Mas a outra parte da área ainda está sob disputa.

O direito dos quilombolas ao território que ocupam foi assegurado pela Constituição de 1988, no artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias. Mas foi só em 2003 que Lula, cumprindo promessa de campanha, regulamentou a lei.

Por meio do Decreto 4.887, ele definiu como devem ser os procedimentos para identificação, reconhecimento e titulação das terras. Coube ao Incra conceder o título de propriedade.

A mudança tende a acelerar os processos de legalização das terras dos quilombos. Em 2004, foram concedidos 2 títulos de propriedade; em 2005, saíram 4; e neste ano, segundo o Incra, 14. São todos títulos de propriedade coletiva, ou seja, para a comunidade, não para as famílias, como na reforma agrária.

Nestes três anos, o volume de terras tituladas já soma 28.725 hectares, para 1.947 famílias. Parece bastante, se comparado a períodos anteriores, mas, por outro lado, também parece uma parcela ínfima diante do que se reivindica. É difícil definir quanta terra será preciso para atender à demanda - depois de reconhecidos, os remanescentes ainda podem alegar que as terras vizinhas eram ocupadas por seus antepassados. Se estudos técnicos e científicos confirmarem, poderá ser requerida a retomada das terras.

Em Goiás, o Quilombo do Calunga, o maior do País, com 1.200 famílias, reivindica 243 mil hectares, acendendo focos de tensão. Em Conceição da Barra, Espírito Santo, outras 1.200 famílias disputam com a Aracruz, produtora de celulose, uma área de 60 mil hectares.

Há tensão em Nossa Senhora do Livramento, Goiás, onde fazendeiros contestam a concessão de 18 mil hectares ao Quilombo Mata-Cavalo. No Rio, na Restinga da Marambaia, quilombolas brigam na Justiça por uma área de preservação na qual a Marinha construiu uma base.

O PFL vem contestando a constitucionalidade do Decreto 4.887. Do outro lado, os quilombolas tentam se organizar para acelerar as desapropriações.

Em Cafundó, esforço para salvar identidade
Comunidade no interior de SP tem até língua própria

A vida passa devagar no Quilombo do Cafundó. No centro da comunidade, uma espécie de praça de chão de terra, ouvem-se as folhas das palmeiras, farfalhando sob a brisa da tarde. Ouvem-se também os passarinhos. São coleirinhas, bigodinhos, andorinhas, sanhaços e outros que vêm bicar abacates, mangas, ameixas, goiabas, conforme a estação do ano.

"O que canta mais bonito é o coleirinha", opina o garoto Jadson, de 13 anos. "Jadson com 'd' mudo", faz questão de frisar, para o repórter não errar. Ele concluiu agora a sétima série do fundamental e adora passarinhos. Chama a atenção o fato de, vez ou outra e com certo esforço, ele se dirigir à mãe numa língua ininteligível.

Luciana Rosa de Aguiar Lima, a mãe, de 38 anos, fica satisfeita. Um dos maiores desejos dela é fazer com que Jadson e seus outros quatro filhos aprendam a falar a cupópia, língua usada apenas no Quilombo do Cafundó, na zona rural de Salto do Pirapora, a 150 quilômetros de São Paulo. A língua foi inventada nessa região, no fim do século 19, antes da Lei Áurea.

ORIGENS

A história começa com a morte de um fazendeiro, solteiro e sem filhos, que deixou em testamento que seus escravos fossem libertados e ficassem com a propriedade. Formou-se uma comunidade de negros, na qual surgiu a cupópia, que, segundo pesquisadores, mistura a estrutura do português com palavras africanas, originárias do banto. Servia - e serve - para os quilombolas se comunicarem na presença de estranhos.

O Cafundó hoje faz parte da lista das centenas de quilombos que reivindicam mais terras. Os ex-escravos libertados pelo fazendeiro perderam a área original da propriedade, que teria 218 hectares, e acabaram confinados em 17 hectares, no fundo de um vale, cercados por pastos e eucaliptos. No meio das 22 famílias que ali vivem, não chega a dez o número de pessoas que usam a cupópia e se referem à lua com a expressão cumbe do téqui - sol da noite.

Há 34 anos, eles começaram a brigar para reaver três glebas de terra ao redor, que teriam pertencido aos antepassados, num total de 188 hectares. Antropólogos do Instituto de Terras do Estado (Itesp) confirmaram a história. Mas até hoje o quilombo não conseguiu nada.

Na semana passada, a superintendência do Incra em São Paulo informou que acaba de ser iniciado o processo administrativo de desapropriação de uma parte da área. A medida não convenceu."Sempre aparece um recurso novo", lamenta Marcos Almeida, de 46 anos.

Marcos e seu irmão Juvenil Rosa, de 49 anos, são tios de Luciana. Eles formam o trio que mais se empenha para manter as tradições. Luciana os ensina a dançar o jongo, cantando como seus antepassados. Ela às vezes pensa em recuperar a religiosidade africana, mas se sente intimidada pelos evangélicos, que já construíram um templo dentro do quilombo.

Conflitos agrários se sobrepõem

A entrada em cena dos quilombolas expõe os problemas da falta de ordenamento fundiário no País. De acordo com o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, existem regiões do Brasil em que as terras reivindicadas por quilombolas cruzam assentamentos da reforma agrária e áreas indígenas. "Encontramos áreas no sul da Bahia e norte do Espírito Santo onde as três coisas se sobrepõem", diz.

Cabe ao Incra resolver esses casos e conferir os títulos de propriedade. Para isso, a entidade criou uma diretoria especial e contratou 42 antropólogos, que trabalham na definição dos territórios. A etapa seguinte, destinada a organizar e equipar as comunidades para que sobrevivam com seus próprios recursos, é coordenada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

No Instituto Socioambiental, ONG que desenvolve o Programa Vale do Ribeira, voltado para cerca de 20 comunidades quilombolas do interior paulista, o engenheiro agrônomo Marcos Gamberini também ressalta os problemas decorrentes da falta de ordenamento fundiário. "Em São Paulo, vários parques estaduais foram criados com a incorporação de áreas dos quilombos."

Um dos casos mais evidentes, diz ele, foi o do Parque Intervales, que incorporou áreas das comunidades Pilões, Maria Rosa, São Pedro, Ivanporunduva, e Pedro Cubas. "Houve protestos e o governador Mário Covas retificou a criação do parque, devolvendo terras aos quilombos."

OESP, 24/12/2006, Nacional, p. A8

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