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Querem passar a serra no código

OESP, Vida, p. A2
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
31 de Mar de 2005

Querem passar a serra no código

Marcos Sá Correa

Se este é mais um sinal do efeito, Severino, é preciso reconhecer que desta vez o governo saiu ganhando. O presidente Lula parece mais sóbrio, desde que a Câmara se lançou com a cara e a coragem na concorrência do populismo fanfarrão. Como se ele quisesse mostrar quem é mesmo o bronco em Brasília, outro dia, discursando de improviso, citou um livro: "Tudo o que você escreve ou pensa a seu próprio respeito é recebido no universo como oração. Se você pensa negativamente, o resultado será negativo. Se você pensa positivo, o resultado será positivo."
Trata-se de Semente da Vitória, manual do preparador físico Nuno Cobra, que prega a vida saudável com um decálogo cujo primeiro mandamento é dormir oito horas toda noite para acordar de manhã sem despertador. Lula se encantou com a história de um mendigo que virou empresário, por repetir todo dia, apesar do miserê, que se sentia feliz e próspero. Se funcionou com o mendigo, o presidente acha que tem tudo para dar certo com o Estado e até com o povo.
Na prática, todo governo acaba fazendo mais ou menos isso. Quem gosta de pessimismo, como Lula certamente lembre, é a oposição. Mas agora que a velha fórmula vem com receita, não custa avisar que, em 500 anos, ela nunca deu certo na administração da natureza. Ao contrário, vacinou os brasileiros contra as preocupações ambientais, usando o antídoto que o historiador José Murilo de Carvalho chamou de "mito edênico".
Temos longa experiência nesse gênero de pensamento positivo.
Desde o navegador florentino, que viu pela primeira vez a Baía de Guanabara em 1502 como portal do paraíso terrestre. A exaltação da mata atlântica no carnaval. Passando pelo baiano Antônio Rocha Pita, que, há quase 300 anos, descrevendo na História da América Portuguesa o 'Terreal Paraíso descoberto", afirmou pela primeira vez que nossos bosques têm mais vida e nosso céu tem mais estrelas, como repete o Hino Nacional.
Resultado: o culto cívico do berço esplêndido isenta o brasileiro de maiores cuidados com a natureza, porque há séculos aqui se nasce sabendo que nossas florestas são inexauríveis. Até as motosserras cantam na Amazônia o estribilho do mito edênico: pode derrubar que tem muito. Foi assim que até nas reservas da região o desmatamento já levou 22 mil km2 de árvores - para não falar no resto.
E não adianta alegar que essas coisas acontecem lá no mato. Elas começam na capital da República, desde o tempo em que era no Rio. Foi lá que o presidente Epitácio Pessoa declarou em 1920 que o Brasil era o último país do mundo sem um código florestal; o presidente Artur Bernardes criou uma i comissão para estudar o assunto em 1926; o presidente Washington Luís apresentou um anteprojeto para criá-lo em 1930; o presidente Getúlio Vargas assinou-o em 1934; e os governos seguintes não mediam esforços para deixar o código na gaveta, até que o regime militar o reformasse em 1967.
No regime civil raramente passou uma legislatura sem que se tentasse no Congresso podar seus artigos, abrindo nas reservas o caminho para o boi, a soja e outros agentes do desenvolvimento. E agora querem roçá-lo no atacado. Com a Câmara de Severino Cavalcanti amotinada contra o governo Lula, penduraram-se no projeto de gestão das florestas públicas cachos de propostas contra o Código Florestal. E, ao contrário do que ocorreu com MP dos impostos, não há faixas em Brasília para pedir que os parlamentares não ponham a mão nas florestas. O que é um bom motivo para ser pessimista.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 31/03/2005, Vida, p. A23

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