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Privatização da saúde indígena: o genocídio dos Yanomami e a ONG Missão Caiuá

A Nova Democracia - https://anovademocracia.com.br
06 de Nov de 2023

Comitê de Apoio - Dourados (MS) 06/11/2023 6 minutos de leitura

No dia 9 de setembro, o monopólio de imprensa Folha de S.Paulo divulgou que uma auditoria do Ministério Público Federal (MPF) investigava Jair Bolsonaro pela contratação da ONG Missão Evangélica Caiuá para atuar na saúde indígena do Território Indígena Yanomami (RR). Além de não ter apresentado um plano de trabalho satisfatório e estudos técnicos que previssem a quantidade de profissionais necessários para atuar com os Yanomami, quando foi contratada, a organização somava mais de R$ 3 bilhões em convênios com prestação de contas não concluídas. Para além disso, sobram condições precárias de atendimento, ações trabalhistas contra a ONG e acusações de corrupção e superfaturamento.

A atual investigação se dá na esteira do genocídio contra os Yanomami, perpetrado pelo velho Estado latifundiário-burocrático, que veio à tona no início de 2023. Por um lado, o dinheiro de Bolsonaro para a ONG esvazia a retórica de ataques que ele fazia contra as entidades em seu governo, mostrando que tem tanto rabo preso quanto os demais gerentes desse velho Estado. Por outro, em meio as lágrimas de crocodilo do oportunismo, ficou em segundo plano um outro fator decisivo: que não só Bolsonaro tem responsabilidade na desestruturação contínua da saúde indígena pública ocorrida nos últimos anos.

Privatização começou com FHC e foi consolidada com as gestões petistas
Já no começo do ano, a ONG ficou famosa por ter recebido R$ 872 milhões no cumulativo dos quatro anos do governo Jair Bolsonaro, o que resulta em R$ 218 milhões por ano. A cifra, bastante alta, não chega nem perto dos R$ 2 bilhões recebidos do governo federal entre 2012 e 2017, durante os mandatos de Dilma Roussef e Michel Temer, em que a média foi quase o dobro - R$ 400 milhões por ano. Possuindo convênios desde 1999 com o governo federal, foi, no entanto, a partir de 2010 que "o valor dos repasses e a quantidade de convênios entre a Missão Evangélica e a União explodem", conforme denuncia matéria de 2017 do jornal The Intercept [1].

Em 1999, a Medida Provisória 1.911 - que transferiu a responsabilidade da saúde indígena da então Fundação Nacional do Índio (Funai) para a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) - já era criticada por organizações como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) por "abr[ir] espaço para o Estado se eximir do atendimento básico aos índios". Se a possibilidade foi criada por FHC, o governo de Luiz Inácio não moveu uma palha para mudar a situação, aprofundando-a. Em 2007, seis procuradores do Trabalho, do Ministério Público da União e do Ministério Público Federal assinaram um termo de ajustamento de conduta (TAC) que solicitava que o governo realizasse concursos públicos para substituir os 12,2 mil empregados das ONGs terceirizadas, responsáveis por 80% da mão de obra atuante na saúde indígena [2]. Nenhuma medida foi tomada a respeito pelos governos petistas.

Foi o governo Dilma, no entanto, que colocou a privatização da saúde indígena em um outro patamar. A criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em outubro de 2010, com ares de "atenção especializada", se mostrou frustrada logo ao final da transição que encerrava os trabalhos da Funasa, quando a Sesai publica o edital de chamamento público no 01, em agosto de 2011. Para os procuradores da 6ª Câmarado MPF, responsáveis pela questão indígena, o chamamento regularizou a terceirização[3]. A medida prontamente gerou o repúdio dos povos indígenas, sendo que, como resposta, os Guarani, Kaingang e Xokleng, do RJ, SP, PR, SC e RS ocuparam o Distrito Sanitário Indígena (DSEI) de Florianópolis (SC) [4].

Seleção das ONGs é marcada por suspeitas e "oligopólio"
Desde o início, essa terceirização - que é uma forma de privatização - gerou suspeitas de irregularidades. Se o primeiro resultado fosse seguido, todos os 34 DSEI's ficariam sob responsabilidade da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), ligada a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), na qual o então secretário da Sesai, Antônio Alves de Souza, lecionava no ensino a distância. Das 21 candidatas, todas as outras foram desclassificadas, sendo que a Caiuá e o Instituto de
Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) foram reabilitados após recurso. Embora a Procuradoria da República no Distrito Federal tenha entrado com uma ação buscando demonstrar a "inviabilidade da execução de ações de atenção à saúde indígena por apenas 3 entidades" [5], nada foi feito a respeito.

Ao contrário, entre 2010 e 2017, o monopólio da ONG presbiteriana só aumentou. Segundo The Intercept, o número de DSEI's controlados pela Missão Caiuá em 2010 era sete, subindo para 17 em 2011 e, dois anos depois, para 19. Se no ano da criação da Sesai (2010), a ONG recebeu 36,5 milhões, esse número subiu mais de dez vezes, chegando a R$ 421,8 milhões em 2014 e R$ 433,4 milhões em 2015 - ou seja, em um ano, a Missão recebeu quase a metade de todo o montante que Bolsonaro dispendeu com a entidade em quatro anos. Naquele ano, a Caiuá foi a segunda entidade sem fim lucrativo que mais dinheiro recebeu do governo Dilma, perdendo só para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).

Apesar da concentração de convênios deixar perplexo o coordenador do Grupo de Trabalho Indígena do Ministério Público, o Ministério da Saúde de Dilma em 2014 afirmou que as três ONGs escolhidas "atendem aos critérios técnicos definidos no chamamento público". Essa mesma capacidade técnica, aí defendida pelo ministério da petista, foi questionada, em 2023, diante da contratação de Bolsonaro por "falta de comprovação da capacidade técnica e operacional da conveniada para a realização do objeto e das atividades previstas no convênio", conforme noticiou o monopólio de imprensa Estado de Minas.

A "capacidade técnica" da ONG parece ter diminuído em 2018, quando a Missão Caiuá atingiu o número de DSEI's controlados até hoje: nove. Entre eles, manteve a atuação no DSEI Yanomami, onde vinha atuando desde 2011. No entanto, segundo nota da própria entidade, no chamamento de 2018, a Missão Caiuá não se candidatou ao referido DSEI [6]. Isso torna a permanência da ONG evangélica atuando no local por mais quatro anos ainda mais estranha. É fato, de toda forma, que essa permanência foi ratificada, ao longo de mais de 12 anos, pelos sucessivos governos de turno que se acusavam mutuamente de serem os responsáveis pelo problema.

Terceirização favorece indicações políticas e o "toma-lá-dá-cá"
Em meio ao toma-lá-dá-cá, a própria ONG tentou terceirizar a culpa. A Missão apontou, em relatório de janeiro de 2023, a existência de uma investigação de desvio de medicamentos por parte do coordenador, um cargo político indicado pelo "dono da pasta da saúde indígena", que seria o Senador bolsonarista Mecias de Jesus (Republicanos) [7]. De fato, verificou-se que os três últimos coordenadores do DSEI
foram indicados por Mecias e seu filho, o então deputado federal pelo mesmo partido, Jhonatan de Jesus. Este, em 2023, seria indicado por Luiz Inácio para cargo vitalício como ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), com apoio da bancada petista na Câmara dos Deputados, na tentativa de conquistar a base do partido de Jesus [8]. Nos últimos dias, o TCU tem sido um órgão importante, para o qual Luiz Inácio requisitou a redução do orçamento da Saúde em R$ 20 bilhões.

O Senador pró-garimpo Mecias, por sua vez, na Comissão do Senado que acompanha a expulsão dos garimpeiros do território Yanomami, acusa as ONGs de receberem dinheiro de forma irregular [9]. Tal qual Bolsonaro, Mecias de Jesus usa das retóricas de combate às ONGs para esconder o próprio favorecimento pessoal com a questão. Afinal, ele é investigado pelo MPF por favorecer - entre 2010 e 2023 - a contratação da empresa Táxi Aéreo Piquiatuba para o transporte na terra Yanomami. A Piquiatuba é acusada de operar 232 voos ao garimpo ilegal partindo da fazenda do então dono Armando Amâncio da Silva, em cuja casa foi encontrado 44,8 kg de ouro, avaliado em R$ 15 milhões [10]. Não à toa, Mecias elaborou um projeto de lei que incentivava o garimpo em terras indígenas e assinou um pedido de perdão criminal para garimpeiros flagrados ilegalmente na terra Yanomami.

Ao contrário do que faz crer o oportunismo, a crítica às ONGs não é monopólio da extrema-direita rância bolsonarista. Na mesma CPI em que falou Mecias, o yanomami Alberto Brazão Goes, ex-Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena, também criticou as entidades, pois, a despeito do dinheiro estatal dado a elas, disse que "nada chega na ponta, que não há estruturas boas e nem escolas" [9]. Outro líder yanomami, Junior Hekurari, afirmou: "O que houve foi descaso e crime. O dinheiro foi mal gasto e mal planejado" [11]. Antes disso, em 2008, Lourenço Krikati, Coordenador das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão, em "CPI da Subnutrição de Crianças Indígenas", criticou a consequente desresponsabilização do poder público: "A terceirização da saúde, hoje, para nós, é mais
uma armação para destruir a nós, povos indígenas" [12].

Notas:

1 - Angelo, Maurício. Caiuá, a ONG de 2 bilhões que se tornou dona da saúde indígena
no Brasil. The Intercept, 30/09/2017.
2 - Felício, Cesár. Órgãos de controle combatem terceirização de serviços a índios.
Valor Econômico, 03/06/2014.
3 - Santana, Renato. Sesai demitirá 10 mil servidores não concursados até dezembro;
Lei da Terceirização força mudança, diz secretaria. CIMI, 27/09/2017.
4 - Santana, Renato. Indígenas ocupam Dsei de Florianópolis por tempo indeterminado.
CIMI, 12/09/2011.
5 - Carvalho, Paulo Roberto Galvão de; Lasmar, André Lopes. Procedimento
Preparatório no 1.16.000.003155/2011-43. Procuradoria da República no Distrito
Federal, 05/10/2011.
6 - Nota de Esclarecimento. Missão Evangélica Caiuá, 15/02/2023.
7 - Correia, Tatiane. Missão evangélica aponta senador como 'dono' do DSEI
yanomami. Jornal GGN, 05/02/2023.
8 - Vinhal, Gabriela; Martins, Leonardo. Com apoio do PT, Câmara indica deputado do
Republicanos para TCU. UOL, 02/02/2023; Lima, Leanderson. Filho de senador pró-
garimpo ganha cargo vitalício no TCU. Amazônia Real, 08/02/2023.
9 - Rodrigues, Chico (presidente); Dr. Hiran (relator). Parecer (SF) no 1, de 2023.
Senado Federal, 14/06/2023, p. 56-59.
10 - Pajolla, Murilo. Estudo inédito expõe ligação entre senador bolsonarista e
genocídio Yanomami. Brasil de Fato, 03/04/2023; Neves, Rafael. Empresa ré por
garimpo ilegal tem contratos com governo em terras indígenas. UOL, 23/05/2023.
11 - Gribel, Alvaro. Como Bolsonaro gastou os recursos da saúde indígena?. O Globo,
24/01/2023.
12 - Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas,
as consequências e os responsáveis pela morte de crianças indígenas por subnutrição de
2005 a 2007. Câmara dos Deputados, 2008.

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