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Por uma política do antropoceno

O Globo, Planeta Terra, p. 10-11
Autor: PÁDUA, José Augusto
12 de Jun de 2012

Por uma política do antropoceno

José Augusto Pádua

Aqueles que, como eu, começaram a trabalhar com a temática ambiental na seqüência dos debates globais realizados na conferência de Estocolmo, em 1972, não podem deixar de fazer uma reflexão profunda sobre as lições aprendidas ao longo dessas décadas e os desafios que elas indicam para o futuro. A aproximação de um novo momento de concentração de debates e inquietações em torno da temática, a Rio+20, torna essa reflexão ainda mais propícia. É importante reconhecer, por exemplo, a maneira como o debate ambiental veio ganhando um sentido histórico cada vez mais decisivo.
O debate que alguns diziam ser uma "moda passageira" veio crescendo até se confundir, ao menos para os que têm olhos para ver, com a própria reflexão sobre o destino da Humanidade. Não se trata mais de falar dos problemas ambientais e suas possíveis soluções. Até porque fica cada vez mais claro que as reais "soluções" não poderão ser construídas com medidas setoriais e remendos pontuais. Estamos diante de algo muito mais abrangente: aquilo que o historiador Arnold Toynbee chamou certa vez de a longa caminhada para os seres humanos chegarem a se reconhecer como uma Humanidade em um planeta. A "solução" passa pela Política com "p" maiúsculo. Por mudanças estruturais substantivas nos nossos modos de vida.
Na década de 1970, começamos a perceber com mais clareza a existência de sérios problemas ambientais no mundo moderno. Hoje podemos ter uma visão bem mais ampla e histórica de todo esse processo. Não se tratava do aparecimento de problemas ambientais específicos, como meros acidentes ou externalidades em relação ao funcionamento normal das coisas. Se tratava, de fato, de uma mudança radical na escala da presença humana no planeta, colocando a questão de como obter e manejar os gigantescos fluxos cotidianos de matéria e energia necessários para reproduzir essa nova realidade social.
Os chamados problemas "ambientais"não são fenômenos isolados, mas sim os indicadores dessa nova pressão coletiva sobre o planeta.
O melhor marco conceitual para entender essa mudança histórica, ao meu ver, é o conceito de antropoceno, criado no início da década de 2000 pelo prêmio Nobel Paul Crutzen (Química, 1995). O antropoceno pode ser entendido como o momento em que a espécie humana deixa de ser um animal como outro qualquer, que vive da apropriação de uma fração muito pequena dos grandes fluxos de matéria e energia presentes na natureza do planeta, e passa a ser um agente geológico global, influenciando decisivamente na atmosfera, na biosfera etc.
A base material para entender essa mudança de escala, sem dúvida, está na expansão maciça no uso dos combustíveis fósseis e das tecnologias industriais. Daí esse novo momento da História ter sido chamado de "era fossilista" ou de "capitalismo carbonífero". A extração de combustíveis fósseis localizados no interior da Terra estabeleceu um fluxo linear e (supunha-se) inesgotável de energia que se sobrepôs aos circuitos econômicos anteriores, essencialmente restritos e circulares.
O indicador maior do esgotamento desse modelo e da necessidade de alternativas, portanto, está no próprio imperativo de descarbonizar a economia.
Não pela falta de reservas de carvão e petróleo, pelo menos no nível em que se imaginava na década de 1970, mas sim pelos terríveis impactos sistêmicos do seu uso, cujo sinal mais forte é o aquecimento global.
Uma leitura histórica abrangente do antropoceno, que vem sendo feita por autores como John McNeill, passa por uma visão de três etapas. A primeira delas vai de 1800 a 1945, a formação da era industrial. A segunda fase, que quero destacar aqui, vai de 1950 a 2000 e vem sendo chamada de a "Grande Aceleração". As pessoas não costumam se dar conta da dimensão radical da mudança ocorrida em um período tão curto. Mas basta lembrar que, entre 1950 e 2000, a população humana dobrou de 3 para 6 bilhões de pessoas e o número de automóveis passou de 40 para 800 milhões! Nesse movimento, o consumo dos mais ricos se destacou do restante da Humanidade, alimentado pela disponibilidade geopolítica de petróleo abundante e barato no contexto do pós-Segunda Guerra, relacionada com a ascensão dos produtores árabes, e pela difusão de tecnologias inovadoras que catalisaram um vasto processo de consumo de massa (como os automóveis modernos, as TVs etc).
De lá para cá, a continuidade deste processo, com a emergência de tecnologias ainda mais inovadoras (como os computadores) e o protagonismo de novos atores sociais e nacionais (como a China), criou um novo universo de riscos e oportunidades. Mas também dilemas muito profundos para o futuro. Especialmente pela combinação explosiva entre os dilemas da crise ecológica global e os dilemas da desigualdade global. As resultantes desse processo macro-histórico não têm sido equilibradas e justas. Um grupo de 2 bilhões de pessoas de padrão de consumo muito alto ou alto apropria-se de quase todos os seus benefícios materiais, enquanto que 4 bilhões vivem na pobreza e 1 bilhão na miséria absoluta. Desatar o nó górdio dessa situação social insustentável, ao mesmo tempo fazendo as reformas estruturais necessárias para enfrentar a crise ecológica planetária, será o grande desafio da comunidade humana nas próximas décadas. Sendo que o potencial de caos e desagregação da ordem internacional é bastante concreto.
É aqui que entra em cena a ideia de uma terceira fase, a partir de 2000, que pode ser chamada de "antropoceno consciente de si mesmo". É o momento em que a Humanidade precisa equacionar todos esses dilemas de maneira consciente, reconhecendo o seu próprio poder de impacto e desenvolvendo instituições e políticas globais que atuem no sentido de encontrar o caminho da sustentabilidade.
As dificuldades políticas para esse movimento são imensas. Mas existe um fator que pode modificar os termos da equação. É o que autores como Anthony Giddens chamam de modernidade reflexiva. Esse conceito diz respeito ao fato de que o número cada vez maior de pessoas escolarizadas, a velocidade e intensidade dos meios de comunicação, o estabelecimento de múltiplos espaços para o confronto de opiniões contribuem para gerar sociedades que discutem o seu presente e futuro, tanto no nível internacional quanto no interior de cada país.
A necessidade de reformas institucionais, dentro da ordem democrática, é cada vez mais premente para enfrentar os desafios do futuro. A economia de mercado, por definição, é uma alocadora de recursos no presente. Não está preparada para responder aos anseios das gerações futuras. A política convencional também não está preparada para ir além das demandas da próxima eleição.
Estamos vivendo um momento onde precisamos tomar decisões cruciais que afetarão as próximas gerações e cujos resultados talvez não estejamos vivos para testemunhar. Um desafio que poderá representar um verdadeiro salto de qualidade para uma nova definição do que deve ser a prática da política.

José Augusto Pádua é professor de História Ambiental na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Um sopro de destruição" (Ed. Zahar)

O Globo, 12/06/2012, Planeta Terra, p. 10-11

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