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Por que não crer nos impulsos?

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: GONZALEZ, Amelia
17 de Fev de 2004

Por que não crer nos impulsos?

Amelia Gonzalez

Durante três dias de chuva e calor abafado, 138 expositores ocuparam um pavilhão de 4.500 metros quadrados em São Paulo. O evento ganhou o nome de Expo Fome Zero, mas bem poderia ter se chamado Espaço da Cidadania. O nome não importa, só preenche a urgência atual dos títulos fortes, como se nosso dia-a-dia fosse preenchido só com manchetes.

O que se viu dentro daquele enorme galpão foi, isto sim, o início de um extenso enredo cujo desfecho depende do que pode ser lido muito além das primeiras três linhas. Megaempresas montaram estandes ao lado de entidades civis sem fins lucrativos. São Conrado e Rocinha; o Sul e o Nordeste. Mas, diferentemente do que se vê na rotina urbana dessa diversidade, onde cada um procura se proteger das diferenças, ali estavam pessoas à procura de parcerias.

Eram muitos "brasis" reunidos. O Brasil das grandes marcas convivendo com o do desperdício, que joga fora 70 mil toneladas de alimentos todos os dias, mesmo período em que 300 crianças morrem de fome, segundo dados do Instituto Akatu de Consumo Consciente. Representantes do Brasil que torce para ter o que comer conheceram representantes de poderosas redes de supermercados.

Do Nordeste, num dos estandes estava a ONG Articulação no Semi-árido brasileiro (ASA), que reúne cerca de 700 associações. No folheto de apresentação, uma receita ensina os dez passos para se construir uma cisterna: cimento, areia, ferro... E estampa, nas instruções, a realidade escrita por quem sabe que a força do homem pode estar no mal que enfrenta: "A água utilizada na massa precisa ser de boa qualidade, do tipo potável. Nunca use água salobra ou contaminada com urina ou esterco."

Este é o Brasil que dá um jeito. Quase 35 mil famílias já foram mobilizadas pelo programa, e há 919 cisternas em construção. Elas servem para guardar a água da chuva nos meses de não-seca e prover uma família de até cinco membros por cerca de seis meses. A parceria com bancos foi primordial.

Parceria é a palavra-chave da responsabilidade social, revela o Instituto Ethos. E foi o mote da Expo Fome Zero que espantou muita gente, segundo seus organizadores, por ter caráter governamental. Afinal, este é o Brasil também das pessoas que valorizam a imagem, que preferem não ver seu nome ligado a um programa oficial por ser alvo de críticas. Fizeram falta por lá.

O Brasil das imagens se paralisa por causa do ressentimento. Em qualquer lugar. Pois no mesmo panfleto onde há a receita da cisterna, existe também uma espécie de manual que ensina a mobilizar a sociedade. O engano pode estar em discriminar parcerias, já que pessoas filiadas a partidos políticos não são aceitas. O veto é contra quem usa a política de maneira oportunista, mas a censura também é uma porta fechada para os bons políticos, que poderiam acrescentar como parceiros.

O Brasil que estava ali na feira é também aquele que vem acordando para a não-necessidade de se ter unicamente o Estado como supremo representante e provedor. É o país autodidata, que vem aprendendo que o empresário socialmente responsável não é o que apenas faz caridade. É aquele que sabe que esta atitude exige um quinhão de sacrifício, de custo, de expectativa de lucro menos rápido. E, sobretudo, parcerias.

Aos incrédulos: filósofos franceses dão conta de que o homem se tornou desconfiado depois de ter encontrado a ciência, onde o impulso mau dos humanos não tem vez.

Por que não crer nos impulsos?

Amelia Gonzalez é jornalista.

O Globo, 17/02/2004, Opinião, p. 7

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