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Poeira, música brega e Brasileirão marcam viagem de índios para protesto em Brasília

Último Segundo
05 de Dez de 2009

Poeira, música brega e Brasileirão marcam viagem de índios para protesto em Brasília

Mariana Castro, enviada especial a Altamira

Na última terça-feira, o auditório Juscelino Kubitschek, no prédio da Promotoria Geral da República, em Brasília, recebeu a visita de um grupo de índios. Cerca de 150, de tribos variadas. Pintados, com cocar, colares e brincos de pena, eles chegaram cantando e fazendo roda. Estimulados por um grupo de ONGs, foram em caravanas participar da audiência pública sobre a usina hidrelétrica de Belo Monte, uma das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o maior empreendimento elétrico do País.

A reportagem do iG acompanhou uma destas caravanas, organizada pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre - que reúne o Instituto Socioambiental (ISA), a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) e o Conselho Missionário Indigenista (CIMI). Ela partiu de Altamira, no oeste do Pará, às 8h30 do sábado (28), e chegou a Brasília, dois dias depois, às 6h30 de segunda-feira (30). Foram 1.850 quilômetros de estrada, em dois ônibus, um com representantes de ONGs e fundações.
O outro seguiu num primeiro trecho com 30 índios das tribos Arara, Juruna e Xipaya. Em Redenção, ainda no estado do Pará, recebeu o reforço de oito índios kaiapó, entre os quais ela: a índia Tuíra, famosa por encostar um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, em 1989, em Altamira. Tuíra apareceu acompanhada do marido. E do facão. É a única mulher do grupo kaiapó.
Tuíra fala pouco o português. Ela ri, é simpática e conversa com os outros índios. Mas na hora de dar entrevista, fica com o semblante fechado, brava. Com a ajuda de um padre, que fez as vezes de tradutor, ela conversou com o iG. "Sou contra a barragem, não queremos a barragem em Belo Monte". Sobre o gesto de 89, Tuíra afirma: "Mesmo que tenha chamado a atenção, as pessoas continuam não escutando o que temos para dizer".
Os índios embarcaram vestidos com shorts, camiseta, jeans - roupas do dia a dia. Mas carregavam nas malas colares e outros acessórios e mais tinta de jenipapo, itens necessários para a audiência pública, quando apareceriam mais pintados e com mais adereços, como num dia de festa ou ritual.
Nhapy Xipaya, de 15 anos, estava animada em conhecer Brasília. O mesmo motivo fez Fabiana Xipaya, de 21, aceitar o convite para participar da mobilização. "É a primeira vez que vou para lá". No grupo, havia quatro caciques. Dois deles, José Carlos, da aldeia Arara da Volta Grande, e Luis Xipaia (a grafia com i foi erro na hora de registrar o nome), da aldeia Tukajá, levavam as mulheres.
Como toda viagem longa, esta começou animada e logo se tornou cansativa. O jovem Banhire Kaiapo, de 25 anos, da aldeia Kriny, lia o Painel de Especialistas - resumo de um estudo sobre os impactos da hidrelétrica de Belo Monte. Para passar o tempo, Luis Xipaia contava piada. Piada sobre negro, loira e bêbado. Kawhe Xipaya, nome indígena, ou Merivaldo Jesus da Paz, da aldeia Tukamã, se distraía com um livrinho com palavra-cruzada, jogo dos sete erros e sudoku.
A certa altura, um dos passageiros decidiu pedir música ao motorista. Nada de canto indígena ou Marlui Miranda. Daí em diante, foram horas e horas de repertório eclético: sertanejo, com Chitãozinho e Xororó, Gian e Giovani, Victor e Leo, melody - ritmo pop no Pará - banda Calypso e Pepe Moreno. Este último canta músicas com letras esquisitas: "Já descobri porque gamei nessa gatinha; é que tomei café coado na calcinha". Alguns índios cantaram junto.
Banhire Kaiapo, aquele que lia o Painel de Especialistas, tentou mudar o repertório e passou ao motorista uma gravação com cantos indígenas. Não conseguiu ouvir suasmúsicas por mais de cinco minutos. Pepe Moreno voltou a reinar. "Sucesso mesmo é o brega", conta o cacique Kwazady Xipaya, de 20 anos, da aldeia Tukamã.
Para manter a ordem e a higiene, havia saquinhos plásticos pendurados no braço dos bancos. Serviam como lixo, ou para qualquer emergência. A primeira parada foi solicitada por um cacique que passou mal e pediu para descer. Não foi suficiente. Nas outras vezes em que as chacoalhadas do ônibus na estrada de terra esburacada deixaram o cacique enjoado, o saquinho plástico acabou sendo providencial.
O acompanhante do grupo, do CIMI, Cleanton Ribeiro, passou pelo corredor do ônibus avisando: "O banheiro daqui de dentro é só para fazer xixi". Nas duas noites no ônibus, fez frio, muito frio. Com o ar condicionado ligado a todo vapor, alguns passageiros dormiram com a cabeça enfiada debaixo da coberta.
A primeira refeição do primeiro dia de viagem foi feita em Anapu, por volta das 12h. Os índios fizeram fila em volta do bufê de um restaurante de estrada e despertaram olhares curiosos dos que estavam em volta. As porções eram generosas com arroz, feijão, ovo, macarrão. A bebida mais pedida era refrigerante. Na volta ao ônibus, o cacique Luis Xipaia passou fio dental.
Ao longo da viagem, as paradas em postos da estrada, passando por Belém, Tocantins e Goiás, mostravam a existência de três grupos mais importantes: a turma dos fumantes, os que estavam de olho na "merenda" e os que aproveitavam para tomar banho, escovar os dentes. As índias eram as mais preocupadas em "parar para banhar".
A aposentada Miriam Xipaya, de 57 anos, aproveitou uma das paradas para pentear o cabelo comprido e passar perfume. Ela tem medo de viajar de ônibus. Estava com a filha, Verônica. O marido ficou na aldeia. Apesar do cansaço, acha que vale a pena ir a Brasília. Mas não acredita que a mobilização vá impedir a construção da usina. "Parece que o Lula já assinou, né? Somos pouca gente pra brigar com muita gente do governo".
Na última parada antes de chegar ao destino final, os homens estavam de olho grudado na TV. Era a rodada importante do Brasileirão. Dois caciques, vascaínos, discutiam o resultado do jogo. Havia os que comemoram a vitória do Flamengo.
Para a reportagem do iG, a longa viagem acabou no Centro de Formação Vicente Canhas, a cerca de 40 quilômetros de Brasília, Município de Luziânia. Foi lá que todos se hospedaram até a audiência. Feita a distribuição dos quartos, malas descarregadas, as mulheres reforçaram a pintura do corpo para o dia seguinte. E os homens foram jogar uma pelada.

Último Segundo, 05/12/2009

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