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Pobreza, multiculturalismo e justiça social

FSP, Tendências e Debates, p. A3
Autor: PIOVESAN, Flávia; FLORES, Joaquin Herrera
27 de Jul de 2004

Pobreza, multiculturalismo e justiça social

Flavia Piovesan e Joaquin Herrera Flores

No último dia 15 de julho foi divulgado o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2004, elaborado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que classifica 177 países de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano -elevado, médio ou baixo-, considerando a expectativa de vida, a educação e a renda da população.

Duas conclusões do relatório merecem destaque:
a) a preocupante tendência de agravamento da pobreza nos países de já reduzido desenvolvimento humano;
b) a importância do multiculturalismo para o alcance da justiça social.
Quanto ao agravamento da pobreza, aponta o relatório que há 831 milhões de pessoas subnutridas em um mundo no qual 1,1 bilhão vivem com menos de US$ 1 por dia. As assimetrias globais revelam que a renda do patamar dos 1% mais ricos supera a renda dos 57% mais pobres na esfera mundial, sendo a pobreza a primeira "causa mortis" no mundo, como atesta a própria OMS (Organização Mundial da Saúde).
No mesmo sentido, alerta o Banco Mundial que os 27 países mais pobres do mundo contam com uma renda que equivale a 3% da renda das 20 nações mais ricas, tendo tal cifra caído pela metade nos últimos 40 anos.
Segundo o relatório, há a tendência de o quadro se agravar nos próximos anos, especialmente nas regiões mais pobres, como a África Subsaariana. Dados registram que o IDH recuou em 20 países, 13 deles da África Subsaariana, durante a década de 90.

Nsse cenário, o combate à pobreza demanda não apenas a atuação fortalecida dos Estados no campo das políticas públicas voltadas a promover a igualdade social e a enfrentar as desigualdades sociais, mas requer, ainda, maior responsabilidade dos atores não-estatais, em especial do setor privado. Quanto às empresas multinacionais, cabe ressaltar que constituem as grandes beneficiárias do processo de globalização, bastando citar que das cem maiores economias mundiais, 51 são empresas multinacionais e 49 são Estados nacionais.
Além da responsabilidade do Estado e do setor privado, o combate à pobreza exige o fomento da cooperação internacional entre os países desenvolvidos e em os países em desenvolvimento, para que se traduza numa relação mais solidária entre os hemisférios Sul e Norte.
A construção da justiça social está, ainda, condicionada à importância do multiculturalismo, do respeito à diversidade e do reconhecimento dos direitos das populações mais vulneráveis.
Isso porque a pobreza implica discriminação e a discriminação implica pobreza. Segundo o PNUD, uma em cada sete pessoas pertence a um grupo discriminado, compondo o universo de 900 milhões de pessoas vítimas de discriminação. A pobreza afeta de forma desproporcional os grupos discriminados.
A título de exemplo, ressalte-se que, do 1 bilhão de analfabetos no mundo, dois terços são mulheres. No caso brasileiro, a exclusão social traz como marca a etnização e a feminização da pobreza. Segundo o Ipea, os afrodescendentes são 64% dos pobres e 69% dos indigentes. Os afrodescendentes ganham, em média, 40% a 50% a menos do que os brancos, sendo que as mulheres afrodescendentes recebem a pior remuneração.
Diante desse quadro, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identidades. Isto é, à justiça orientada pelo critério socioeconômico soma-se a justiça enquanto reconhecimento de identidades, guiada pelos critérios de gênero, orientação sexual, geração, raça, etnia, dentre outros. O combate à pobreza demanda, assim, a adoção não apenas de políticas universalistas, mas também específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da pobreza, como é o caso das políticas de ações afirmativas, capazes de promover a igualdade substantiva.
A pobreza e a exclusão social não são inevitáveis. Há que assumir a coragem do risco de romper com a cultura da "naturalização" das desigualdades e das discriminações, que, enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino daqueles que têm mutilada a sua cidadania e a sua dignidade.

Flavia Piovesan, 35, professora doutora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP, professora visitante da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha), é procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.

Joaquin Herrera Flores, 45, é professor diretor do Programa de Doutorado de Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide.

FSP, 27/07/2004, Tendências e Debates, p. A3

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2707200409.htm

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