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PF faz perícia em fazenda, mas não prende suspeitos pela morte de Guarani-Kaiowá

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br
Autor: Elaíze Farias
19 de Jun de 2016

A Polícia Federal realizou no sábado (18/06) uma perícia na fazenda Yvu, em Caarapó (MS), onde um índio Guarani-Kaiowá morreu e outros seis ficaram feridos durante um ataque de fazendeiros e pistoleiros mascarados. Na perícia, como disse à Amazônia Real o procurador da República em Dourados (MS), Marco Antônio Delfino de Almeida, os peritos recolheram cartuchos das armas usadas nos crimes e ouviu depoimentos de indígenas.

A investigação criminal é coordenada pelo delegado Marcel Maranhão Rosa, que abriu inquérito para apurar crimes de homicídio contra os índios e agressões a três policiais militares. Os PM´s acusam os indígenas de roubo, danos ao patrimônio público - uma viatura foi incendiada - e cárcere privado, diz a PF.

Na delegacia da Polícia Federal em Dourados, a cerca de 70 quilômetros de Caarapó, fazendeiros passaram por exames residuográficos nas mãos a fim de detectar possíveis vestígios de pólvora. Não foi informado o número de pessoas submetidas ao exame. Até o momento, a PF não prendeu suspeitos pelos crimes contra os Guarani-Kaiowá.

Oficialmente, dos seis indígenas feridos durante o ataque na fazenda Yvu na terça-feira (14), cinco continuam internados no Hospital da Vida, em Dourados.

Segundo o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, que acompanhou a perícia da PF na fazenda Yvu e visitou os feridos no hospital neste domingo (19), o quadro de saúde de Jesus de Souza, de 29 anos, piorou. "Ele foi submetido a novo procedimento cirúrgico, o quadro é grave", disse.

Irmão de Clodiodi Souza, que morreu no ataque, Jesus sofreu lesões no estômago, fígado e baço. Na primeira cirurgia, uma bala foi retirada de sua barriga. O hospital confirmou a segunda cirurgia e disse que seu quadro é estável.

Fazendeiro foi ouvido

Ao menos 50 homens da Força Nacional de Segurança e do Comando de Operações Táticas (COT) da Polícia Federal estão em pontos estratégicos da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá 1.

A reportagem da Amazônia Real apurou que o fazendeiro Nelson Buanin, proprietário da fazenda Yvu, foi ouvido em depoimento pela PF. O teor das declarações não foi divulgado.

Segundo uma nota emitida pelo Sindicato Rural de Caarapó, o fazendeiro Nelson Buanin pediu apoio a alguns produtores do município (a 283 quilômetros de Campo Grande). "A intenção era inibir a presença dos poucos índios que haviam na fazenda", disse a entidade.

O sindicato negou a participação de membros da diretoria no conflito. "O sindicato não mobilizou e não coordenou nenhum ato. A ação de defesa e apoio ao companheiro [Nelson] foi um ato voluntário."

No entanto, o Sindicato Rural entra em contradição ao dizer que no vídeo que circula na internet e mostra o momento do ataque dos fazendeiros contra os índios Guarani-Kaiowá, os fogos de artifício "foram utilizados para dispersá-los" diz a nota, que defende os produtores, a maioria associados, menos Buanin, conforme o sindicato.

Para o procurador Marco Antônio Delfino de Almeida, a nota prova que o próprio proprietário Nelson Buanin arregimentou voluntariamente pessoas para se reunir e retirar os índios da fazenda Yvu.

"Na nota, o sindicato aponta o próprio proprietário como a pessoa que arregimentou voluntariamente pessoas para se reunir e retirar os índios, então isso é um ponto. Obviamente que há muitos vídeos que a comunidade [Guarani-Kaiowá] nos passou. Em depoimentos várias pessoas foram identificadas. Entendemos que há vários elementos ali que permitem que avancemos para identificar as pessoas que deliberaram e conduziram com mais relevância essa ação", afirmou o procurador.

Com relação ao sindicato, Delfino de Almeida descartou a participação da diretoria no caso. "Nesse processo de negociação que está sendo conduzido entre os produtores rurais e a comunidade indígena Guarani-Kaiowá, por conta das ocupações, o sindicato está tendo um papel de relevância. Estamos conversando de uma maneira franca e colaborativa com o Sindicato Rural de Caarapó. Obviamente que não há elementos que conduzam a uma eventual incitação por parte do sindicato. O que temos, até o momento de uma forma confessa, é que o proprietário é que teria arregimentado os produtores", disse o procurador da República.

Ele completa: "Essas pessoas serão responsabilizadas numa futura denúncia até pelo contexto em que a ação ocorreu, que foi gravada de diversos ângulos e em diversos vídeos. É importante colocar que a ação do MPF é imparcial, e igualmente está sendo apurada pela Força Tarefa a agressão aos policiais."

A reportagem não localizou Nelson Buanin para dar sua versão do conflito. Ao site do jornal O Progresso, de Dourados, o presidente interino do Sindicato Rural de Caarapó, Carlos Eduardo Macedo Márquez, o Cacá, nega que produtores efetuaram tiros contra os indígenas e pede ao MPF que os índios desocupem as terras da fazenda Yvu. "Agora vamos esperar essa desocupação nos próximos dias", declarou o fazendeiro.

Como foi o ataque

Conforme publicado pela Amazônia Real, a ocupação da fazenda Yvu, no domingo (12 de junho), foi avisada à Polícia Federal e os índios pediram segurança para evitar conflitos. Eles chamam de "Virgílio" o dono da fazenda. Todas as informações publicadas pela reportagem foram baseadas no depoimento do professor e porta-voz dos Guarani-Kaiowá, Élson Canteiro Gomes.

"Pedimos à Polícia Federal que a Funai viesse aqui para fazer a retirada dos pertences do fazendeiro Virgílio. Demos um prazo de 24 horas. Depois que dialogamos com a Polícia Federal [no dia 13], eles foram embora do local da retomada", contou o indígena, denunciando que os fazendeiros premeditaram o ataque.

"Um grupo de fazendeiros ficou a três mil metros de distância da fazenda ocupada no dia 13 de junho. Na minha avaliação eles estavam planejando algo. Não sabemos se a Polícia Federal estava junto com os fazendeiros. Eles se agruparam mais ou menos em 70 carros. Eles ficaram cinco horas parados", afirmou Gomes.

O ataque aconteceu no dia 14 de junho. "Quando foi mais ou menos oito horas da manhã chegaram dois grandes grupos. Eles entraram na fazenda em duas posições diferentes. A gente não percebeu a presença de policiais. Eles estavam em 150 carros. Tinha muitos fazendeiros, todos com máscara (touca) de ninja preta. Tinham arma pesada. Eles cortaram o arame da cerca da fazenda para entrar na sede. Começaram a dar sinais com tiros, outros com fogos [de artifício]. E começou o ataque com arma de fogo, tinha arma de borracha também. O ataque foi muito intenso", disse o porta-voz dos Guarani-Kaiowá.

A Amazônia Real procurou a Polícia Federal em Dourados para falar sobre as denúncias do professor Élson Canteiro Gomes. A PF confirmou que agentes federais estiveram na fazenda Yvu para "conversar e entender o que estava acontecendo". A polícia disse que tem 30 dias para encerrar o inquérito.

Segundo a PF, o clima no local "deu uma tranquilizada", não há fazendeiro na área, mas há risco que a tensão volte a ocorrer. A polícia não divulgou o número de tiros disparados contra Clodiodi Souza.

Sobre a investigação, a Polícia Federal declarou que quatro armas de policiais militares, que estavam em poder dos indígenas, foram devolvidas. Segundo um agente ouvido pela reportagem que pediu para não ser identificado na matéria, após o ataque contra os Guarani-Kaiowá, o Corpo de Bombeiros foi enviado ao local para resgatar os feridos. "Os Bombeiros estavam escoltados por uma viatura da PM, quando, então, o pneu do veículo furou na rodovia e os indígenas cercaram e detiveram os policiais. Os policiais sofreram lesões corporais, mas foram soltos posteriormente. Os indígenas também atearam fogo na viatura", disse.

A Polícia Federal de Dourados disse que solicitou os vídeos feitos pelos próprios indígenas durante o ataque. "Os vídeos serão juntados a outras provas, entre documentos e testemunhos", afirmou o agente.

A PF também informou que na quarta-feira (15) enviou uma equipe ao Hospital da Vida para falar com as vítimas do ataque (tratado pela PF como "confronto"), e aprofundar as investigações.

Como está a saúde dos feridos?

Os cinco indígenas Guarani-Kaiowá feridos no ataque dos fazendeiros permanecem internados no Hospital da Vida, em Dourados, mas nenhum corre risco de morrer.

O superintendente do Hospital da Vida, Genivaldo Dias da Silva, confirmou que Jesus de Souza, de 29 anos, teve uma piora no quadro, com febre alta e dores, e precisou passar por uma laboratomia (abertura do abdômen) neste domingo (19). Após o procedimento, seu quadro é considerado estável, mas continua inspirando cuidado. Jesus de Souza foi atingido na barriga, sofreu lesões no estômago, fígado e baço, e teve a bala retirada do corpo logo que foi atendido.

Segundo Dias da Silva, o indígena Norivaldo Mendes, de 37 anos, teve uma piora no quadro na quinta-feira (16), mas passou por um procedimento de drenagem no tórax. Ele foi atingindo por tiros na barriga. A bala continua alojada em seu corpo.

O menino Josiel Benites, de 12 anos, também está em recuperação com quadro de saúde estável. Ele foi atingido por um tiro que atingiu o rim, o fígado, o intestino e o estômago. A bala foi retirada.

Valdilho Garcia, de 26 anos, atingido no tórax, passou por uma drenagem e também está se recuperando.

Libésio Marques, de 43 anos, levou quatro disparos. Ele foi atingido de raspão na cabeça, no ombro, no tórax e na região da cintura. As balas permanecem em seu corpo.

No Hospital Beneficente São Mateus, em Caarapó, foi atendida Catalina Rodrigues de Souza, de 50 anos. Ela teve o braço atingido de raspão por um dos tiros e recebeu alta ainda na terça (14).

O superintendente do Hospital da Vida disse que "todos os disparos foram letais" e não foram usadas balas de borracha, como chegou a publicar alguns veículos da imprensa. "Houve uma fala de que havia projéteis de borracha. Isso não se sustenta. Todos têm perfuração de arma de fogo. Ninguém tem perfuração de advertência. Foi usada munição letal", disse o enfermeiro, que classificou o ataque aos indígenas como "uma barbárie".

Ataques organizados por milícias

O ataque de fazendeiros contra os Guarani-Kaiowá na última terça-feira (14) é mais um episódio de violação e de violência contra os indígenas na região de Mato Grosso do Sul. O conflito aconteceu um mês após a publicação do relatório circunstanciado pela Funai reconhecendo a Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá 1.

O fato de a assinatura ter sido publicada no Diário Oficial da União no mesmo dia em que o Senado aprovou o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência (12 de maio) tem sido usado como pretexto pelos fazendeiros e imprensa local para desqualificar e deslegitimar a publicação do estudo, segundo o antropólogo Diógenes Cariaga, que desenvolve pesquisa entre os Guarani-Kaiowá.

"Essas retomadas das terras dos indígenas acontecem há pelo menos 30 anos. O segmento político do Mato Grosso do Sul tem utilizado o argumento do afastamento da Dilma para desqualificar a ação politica dos índios, pedindo a revogação das portarias porque, segundo eles, não seriam legítimas já que teria sido um ato de vingança da presidente da República", disse o antropólogo.

De acordo com Diógenes Cariaga, o grande temor agora é a incerteza do momento político, pois não se sabe a quem recorrer e com quem negociar. "A Secretaria Especial de Direitos Humanos foi desarticulada e a Funai está sem presidente. Com quem você recorre para fazer alguma movimentação? Foi este o questionamento que os indígenas fizeram para Comissão de Direitos Humanos da Câmara [dos Deputados] que esteve aqui", contou.

Para Cariaga, a ação dos fazendeiros demonstra que eles estão organizados de forma articulada como se fossem milícias. Ele cita alguns episódios anteriores.

"Há uma profissionalização deste tipo de ataque. De uma organização paramilitar e um modus operandi articulado pelos ruralistas que têm repetido esta fórmula de ataque. Em 2013 houve o ataque que resultou na morte do Oziel Terena. Ano passado, o sindicato de Antônio João (município do MS) fez uma reunião e fazendeiros saíram em comboio, inclusive com deputados da bancada federal. E foi por conta desse confronto que Simião Vilhauva foi assassinado", disse Cariaga. Ele se refere ao episódio ocorrido no dia 29 de agosto de 2015, na Terra Indígena Ñande Rú Marangatú, em Antônio João.

A organização mais recente aconteceu justamente no mesmo dia em que o estudo da TI Dourados Amambaipeguá 1 foi publicado no Diário Oficial da União. O antropólogo conta que o Sindicato Rural de Caarapó fez uma reunião reunindo 800 ruralistas da região de Dourados, Amambai e Laguna Carapã, que incidem na Dourados-Amambai Pegua 1. "A posição pública foi dizer claramente que eles iriam fazer a reintegração de posse ao modo deles. Agora a gente vê o ataque à retomada dos indígenas", disse.

Conforme o antropólogo, o que tem aumentado a retomada territorial é porque os Guarani-Kaiowá não aguentam mais a demora e a morosidade do processo de reconhecimento de terra. Ele observa que o reconhecimento da TI Dourados Amambaipeguá 1 faz parte de um Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2007 entre a Funai, o MPF e os indígenas que estabelecia um prazo de cinco anos para a publicação dos estudos. O prazo não foi cumprido nem no mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, encerrado em 2010, e apenas em maio deste ano é que o estudo da terra indígena foi publicado.

A área dos Guarani-Kaiowá foi reconhecida como território pelo estado brasileiro no início do século 20, na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), antigo órgão indigenista brasileiro, substituído, na década de 1960, pela Funai, mas as áreas foram ocupadas por fazendeiros com autorização de políticos locais e expedição de títulos em cartórios. (Colaborou Kátia Brasil).

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