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Pegadas e pegadas

O Globo, Economia Verde, p. 28
Autor: VIEIRA, Agostinho
28 de Nov de 2013

Pegadas e pegadas

AGOSTINHO VIEIRA
oglobo.globo.com/blogs/economiaverde

Ser a cidade mais verde do mundo. A decisão ambiciosa foi tomada por Vancouver, no Canadá, em 2009. Para isso, estabeleceram metas de curto e de longo prazo: 2020 e 2050. Entre elas, a de reduzir a sua pegada ecológica em 33%, tomando como base o ano de 2006. Mas reduzir a pegada é bom ou ruim? Depende. Hoje, essa palavra é usada com uma conotação diferente. Muitas vezes acompanhada de um gesto.
Escrevo sem saber qual foi o resultado do jogo de ontem. Mas é certo que a pegada do volante Amaral foi importante para o Flamengo chegar à final da Copa do Brasil. E não estou falando das marcas da chuteira no gramado ou nas pernas dos adversários. Um executivo ou uma empresa que tenha uma boa pegada costuma ser bem avaliado pelo mercado. Nesse sentido, a decisão de Vancouver de reduzir a sua pegada ecológica seria uma enorme incoerência. É como se eles tivessem tirado o pé do acelerador ou resolvessem fazer corpo mole.
Na verdade, a decisão de Vancouver é ousada e difícil de ser alcançada. Até porque não depende apenas da autoridade municipal. A pegada ecológica deve ser entendida quase literalmente. Ela trata das marcas que cada ser humano deixa na sua passagem pelo planeta. Qual a quantidade de terra, água e ar que necessitamos para manter os nossos níveis de consumo. É uma medida objetiva, calculável e não subjetiva como a pegada do Amaral ou de um jovem executivo.
A pegada ecológica de D. João VI era infinitamente menor do que a de qualquer morador da Rocinha ou da Maré. Ele não andava de carro, não usava ar-condicionado, não desperdiçava tanta água e nem viajava de avião como se faz hoje. É claro que as conquistas obtidas pela humanidade desde a Revolução Industrial não podem ser desprezadas. Ninguém quer voltar a ter uma expectativa de vida de 30 anos, como na época de D. João, mas esse crescimento desordenado tem um preço.
Entre 1800 e 2013, a população mundial cresceu mais ou menos sete vezes. Passou de um bilhão para sete bilhões de habitantes. Enquanto isso, o PIB aumentou mais de 50 vezes. Não é preciso ser um visionário para perceber que isso tende a não dar certo. Dados da Global Footprint Network estimam que a pegada ecológica da humanidade, em 2007, chegou a 2,7 hectares globais (gha) per capita. Ou seja, cada pessoa precisava, em média, de 2,7 hectares de áreas cultivadas, pastagens, florestas, áreas de pesca e áreas edificadas para viver. Além de espaço no ar para absorver todo o carbono gerado por essas atividades.
Nessa época, a população mundial girava em torno de 6,7 bilhões de habitantes. Uma conta simples mostra que, já em 2007, seriam necessários 18,1 bilhões de hectares para sustentar a humanidade. O problema é que a Terra, única e finita, possui apenas 13,4 bilhões de hectares globais de terra e água produtivas. Ou seja, precisávamos de mais do que o planeta podia dar. E a situação só vem piorando. É como se tirássemos, todos os dias, dinheiro da poupança para pagar as contas.
Como você já deve ter percebido, nesta equação, os dois fatores fundamentais são: população e consumo. E aqui, mais uma vez, a ordem dos fatores não altera produto. Ou consumimos menos ou seria preciso ter uma população menor. Mas o que torna essa história mais escabrosa e injusta é que a pegada ecológica de 2,7 hectares representa uma média global. O impacto dos europeus é de cerca de cinco hectares. Já os americanos e canadenses chegam a oito hectares. Para que todas as pessoas do mundo tivessem o padrão de vida adotado nos EUA, a população mundial não poderia superar a marca de 1,7 bilhão de pessoas.
Hoje, dos sete bilhões de habitantes do planeta, cerca de 800 milhões ainda passam fome, 1,2 bilhão não têm luz elétrica e 2,5 bilhões não possuem banheiro em casa. Uma pesquisa divulgada esta semana pela Associação Internacional de Resíduos Sólidos (Iswa, em inglês) revelou que a população mundial gera 1,4 bilhão de toneladas de resíduos urbanos por ano. Mas só metade é recolhida. Em alguns países da África, da Ásia e da América Latina, não existe qualquer tipo de coleta de lixo. Estima-se que, em 2050, a produção de lixo chegará a quatro bilhões de toneladas.
É legítimo e desejável sonhar com um mundo onde esse tipo de injustiça não seja mais registrado. Onde todos tenham condições mínimas para viver com conforto, segurança e saúde. Tendo acesso à educação, à cultura e ao lazer. Itens básicos. Mas se isso um dia vier a acontecer, o impacto ambiental crescerá junto. Triste ironia. Seria preciso que alguns alterassem os seus padrões de vida para que todos tivessem uma vida melhor. Impossível? Talvez não. Mas vamos precisar de outro tipo de pegada, muito diferente da que temos hoje.

O Globo, 28/11/2013, Economia Verde, p. 28

http://oglobo.globo.com/blogs/ecoverde/posts/2013/11/28/pegadas-pegadas…

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