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Paternidade do Fórum Social gera disputa

FSP, Mundo, p. A14
14 de Nov de 2003

Paternidade do Fórum Social gera disputa
Oded Grajew contesta livro em que líder antiglobalização afirma ter sido o idealizador do encontro de Porto Alegre

Fernando Eichenberg
Free-lance para a Folha, de Paris

Uma polêmica entre franceses e brasileiros emergiu paralelamente às centenas de debates do Fórum Social Europeu, iniciados ontem em Paris.
O estopim da discordância foi acendido pelo livro recém-lançado "Tout a Commencé à Porto Alegre... Mille Forums Sociaux! (tudo começou em Porto Alegre... Mil fóruns sociais!, ed. Mille et Une Nuits), de Bernard Cassen, presidente de honra do grupo antiglobalização Attac (Associação pela Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos) e diretor-geral do jornal "Le Monde Diplomatique".
No livro, Cassen conta a história e o sucesso dos fóruns sociais que acabaram se multiplicando em vários países. Há um consenso de que tudo começou com o Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre. O dissenso refere-se ao "como" começou.
Para Oded Grajew, ex-assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um dos idealizadores do fórum na capital gaúcha, o livro de Bernard Cassen é, em grande parte, uma farsa. "É a postura do colonizador diante do colonizado. Ele não consegue admitir que os brasileiros tiveram a idéia e levaram adiante o processo. É uma apropriação indevida de iniciativa. Não adianta falar que é de esquerda, democrático e solidário se você não pratica isso na sua vida pessoal", disse Grajew à Folha, em Paris.
Grajew conta que teve a idéia de criar um fórum social mundial, em contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça), numa manhã de fevereiro de 2000, em férias na capital francesa, num quarto do hotel Citadines-Les Halles, no qual estava hospedado com a mulher, Mara.
"Minha mulher, que sempre gostou dessas minhas idéias meio malucas, aprovou", disse. No mesmo dia, ele revelou a idéia a Francisco Whitaker Ferreira, secretário-executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB e hoje membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, e à mulher dele, Estela, que também se encontravam na capital francesa.
Os quatro discutiram e decidiram conversar com Bernard Cassen, que Grajew conhecera no ano anterior. "Ele começa o livro contando que só eu e o Chico fomos falar com ele e omite as nossas mulheres, que também tiveram participação. Minha mulher é engajada, militante, não é mulher de lavar minha roupa e cuidar da casa, que foi a visão que o Bernard colocou, uma visão machista", afirmou Grajew.
O empresário brasileiro reconhece que a idéia de realizar o fórum em Porto Alegre foi de Bernard Cassen, mas critica a forma como o encontro em Paris é relatado no livro: "Quando entramos na sala dele, não éramos um grupo de brasileiros que veio pedir "por favor, Attac, veja se vocês podem fazer um movimento contra Davos", como parece no livro".
Cassen preferiu ser econômico ao comentar as acusações, em entrevista à Folha: "Eles vieram me procurar dizendo que queriam fazer um encontro anti-Davos em Paris, e fui eu que sugeri Porto Alegre. Tudo o que coloquei no livro é verdade. Leia o livro e tudo o que tenho a dizer está lá, nada mais tenho a acrescentar".
Grajew aponta também supostas inverdades na descrição do processo de consolidação do FSM. Ele disse que retornou ao Brasil, contatou o então prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, e o governador gaúcho Olívio Dutra; depois, reuniu o grupo formado por representantes de diferentes entidades para levar adiante o projeto e ainda viajou a Washington e Nova York para obter recursos na Fundação Ford para que fosse instalada a secretaria do fórum. "No livro, Bernard Cassen coloca que todo esse trabalho de costura no Brasil foi feito por ele."
Grajew descarta qualquer tentativa de ação para prejudicar a Attac nos próximos fóruns, mas confessa ter sofrido "uma grande decepção" em relação ao líder da associação depois da leitura do livro. "Parece que foi uma história que começou na Europa, no Primeiro Mundo. Ele minimiza o papel do Brasil e dos países em desenvolvimento em todo o processo. Ele bateu o escanteio e foi cabecear, e os brasileiros foram os gandulas", resumiu.
Francisco Whitaker, outro ator dos acontecimentos, fez questão de creditar um "papel fundamental" a Bernard Cassen no sucesso da experiência dos fóruns mundiais, mas admite que o livro é incompleto. "Há partes, realmente, insuficientemente contadas, que deveriam ser mais exatas. Mas confesso que passei batido, porque acho que isso acaba sendo corrigido com o tempo", disse à Folha.

FSP, 14/11/2003, Mundo, p. A14

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