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Passageiros à deriva nos rios

O Globo, Economia, p. 19-20
28 de Mai de 2012

Passageiros à deriva nos rios
Transporte fluvial, utilizado por 12 milhões de pessoas, é o único sem regulação no Brasil

Liane Thedim

"Quando chego, é só amor, né?". Assim Roberto Martins resume sua vida, a maior parte passada sobre o Rio Amazonas. O auxiliar de convés de 31 anos trabalha há quatro anos no barco Amazon Star, que faz o trajeto regular Manaus-Belém: 1.584 quilômetros em inacreditáveis cinco dias. Na volta, é ainda pior - seis dias, porque a correnteza joga contra, mais dois dias parado no porto. Ou seja, a cada 12 dias, Roberto passa três noites em casa, na capital paraense. No barco, já viu de tudo. Afinal, pelo menos 30 mil pessoas viajam por ano na embarcação, que tem capacidade para 750 passageiros. Mas, até hoje, o que mais o impressiona é a romaria de trabalhadores que vão tentar a vida na capital amazonense:
- A maioria vem do Maranhão. Vai "pra" Manaus, fica na rua, cai nas drogas e volta com a roupa do corpo. Consegue que alguém pague a passagem. Só de olhar a gente já sabe.
Na Amazônia, os rios são as estradas. Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), eles serviram de caminho a 12 milhões de pessoas em 2011, em embarcações de 132 empresas, fora as milhares que trafegam à margem da fiscalização. No entanto, apesar do grande alcance, praticamente não há dados disponíveis sobre o modal, o que, para especialistas, é um retrato do descaso com que é visto pelo governo. Não há concessão de linhas, como acontece em ônibus, trem e avião. O governo apenas autoriza as empresas a operarem determinado trajeto e são elas próprias que decidem os locais de parada e com que regularidade vão operar. Não há, portanto, metas de atendimento ou controle de tarifas.
- É o único transporte público sem regulação no Brasil - diz Floriano Pires, professor de Engenharia Oceânica da Coppe/UFRJ.
A viagem do GLOBO no Amazon Star começou na quarta-feira, dia 16 de maio, com atraso: prevista para as 16h, a saída de Manaus aconteceu às 17h, com 145 passageiros a bordo, dos quais, 50 fariam o trajeto ponta a ponta. No total, ao longo das paradas, 500 pessoas passaram pelo barco. Entre os passageiros, muitos iam visitar parentes ou voltavam para casa e optaram pelo barco por ser mais barato. A passagem no salão das redes, espécie de alojamento com cerca de 300 metros quadrados e espaço para 300 pessoas, sai por R$ 150 na baixa temporada, sem limite de bagagem. De avião, a viagem leva duas horas e custa de R$ 300 a R$ 1.200, dependendo da data, com máximo de bagagem de 20 quilos. Na alta temporada, em junho, a passagem nas redes custa o dobro: R$ 326. Mas havia também os que escolheram a longa viagem por turismo, para ver de perto o maior rio do mundo, ou simplesmente por medo de avião.
- Vim refrescar a cabeça, avião é "pra" quem tem pressa - diz o operador de guindaste Luciano Barros, de 32 anos, que ia com a mulher e a sogra para Belém, onde pegaria um ônibus para o Maranhão. - Na primeira vez que andei de avião, fiquei com as mãos e os pés tremendo.
Banheiros sujos e calor irritam usuário
Histórias não faltam. Como a de dona Ana Santana da Silva, de 69 anos, cearense que pagou R$ 100 para voltar de rede de Parintins, onde visitou uma filha - "Tive 17 filhos, mas só criei dez, os outros morreram ainda bebês" -, para Belém. De lá, pegaria um ônibus para o Maranhão. O alagoano Roberto, de 34 anos, que não quis ser fotografado nem revelar seu sobrenome, voltava de um garimpo na selva venezuelana e levava, amarrado à cintura, uma bolsa com o ouro e o dinheiro que conseguiu guardar. Por isso, não quis ir de avião. Ele conta que dormiu seis meses em uma cabana de madeira. O baque veio quando a febre começou:
- Fui internado no hospital da Cruz Vermelha e o exame deu que eu estava com malária e dengue hemorrágica ao mesmo tempo. Aí falei pra mim mesmo: "Vou embora, vou morrer no Brasil" - recorda ele, que ainda tomava os remédios durante a viagem.
Já a paraense Marilu Cunha, 49 anos, cantora de bolero com dez CDs gravados, pagou caro pelo seu pânico de avião: R$ 1 mil para viajar na única suíte do barco que tem cama de casal e cerca de 25 metros quadrados, e mais R$ 1 mil para levar seu carro. Sua maior reclamação era da comida:
- O almoço é precário.
Banheiros imundos, ar-condicionado que não funcionava regularmente - o calor nas redes muitas vezes era infernal -, barulho durante toda a madrugada. Nas conversas, as queixas são recorrentes. O medo de furtos de bagagem (as malas ficam amontoadas embaixo da rede do dono) é geral. Mas o clima pesou mesmo na terceira parada, em Óbidos (PA), onde uma operação da Força Nacional e da Polícia Federal revirou o barco em busca de drogas, armas, tráfico de pessoas, de animais e biopirataria. Encontraram um carro roubado no andar de carga, levado por um rapaz que dizia ter 16 anos mas não tinha documentos, além de seis caixas de mercadorias sem nota fiscal. Foi provavelmente o único momento de silêncio dos cinco dias.
Entre os passageiros, o que mais se comentava era o momento em que o barco sai do Amazonas e entra no chamado estreito de Breves, conjunto de pequenos rios e ilhas que dá acesso à cidade de mesmo nome, no Pará. Quando avistam o barco, dezenas de ribeirinhos remam em suas canoas a toda velocidade para se aproximar e pedir roupas e dinheiro. Muitos já vão preparados e, num ritmo frenético, jogam as doações em sacolas. Depois, vêm os que vendem frutas. A cena é impressionante: com o barco em movimento, conseguem amarrar a canoa e subir a bordo.
Cinco dias e quatro noites depois, o cansaço é visível na chegada.
- É muito demorado... Acho que consigo passagem baratinha "pra" voltar de avião, é só ficar olhando no computador - sonhava Francisco Brito da Silva, 55 anos, que levava 50 quilos de bagagem e de Belém iria de ônibus até Juazeiro do Norte (CE) ver a família.

Atrasos e superlotação são problemas frequentes

Liane Thedim

Informalidade abre espaço para irregularidades, dizem especialistas. Só este ano, já foram registrados 48 acidentes e 12 mortes
MANAUS, PARINTINS (AM), BREVES (PA) e BELÉM . Atrasos, superlotação, falta de higiene, conforto e segurança. Estes são os principais problemas do transporte fluvial de passageiros na Amazônia apontados por especialistas. Segundo Floriano Pires, professor de Engenharia Oceânica da Coppe/UFRJ, as peculiaridades da região, com a predominância da população de baixa renda, aliadas à falta de regulamentação e fiscalização eficiente das atividades das empresas, facilitam as irregularidades. Em 2011, foram registrados 94 acidentes, com 25 mortes e oito feridos, segundo a Marinha. Este ano, já houve 48 acidentes, com 12 mortos.
- O serviço não é padronizado - afirma.
A informalidade do setor começa já na venda de passagens. Não há venda pela internet ou em balcões organizados. Vendedores abordam quem passa pelo porto oferecendo os barcos. Em Manaus, o vendedor de pedras semipreciosas Élson Pereira Lima comprou a passagem de um vendedor avulso no porto, quando o barco Amazon Star ainda estava afastado do cais. Pagou R$ 80 por ser deficiente físico e acabou caindo na mão dos chamados catraieiros, donos de pequenas embarcações que se oferecem para levar os passageiros até o barco. Combinaram que o "táxi" custaria R$ 5. Na hora em que se aproximaram do barco, exigiram mais dinheiro:
- Ameaçaram me jogar do bote se não pagasse mais R$ 15. Acabei dando mais R$ 5 - conta ele, que fez a viagem para conhecer o Rio Amazonas e chorou de emoção quando os ribeirinhos se aproximaram do barco, no estreito de Breves.
A desorganização da área das redes também preocupou Élson durante a viagem, por levar na bagagem seu laptop. Quase não saía do salão. Quando saía, voltava rapidamente.
- Meu maior medo é roubarem minhas coisas.
Na grande maioria das embarcações da região, há três divisões básicas: a área das redes, os camarotes, como são conhecidas as cabines, e os compartimentos de carga. Os quartos medem cerca de 2 metros quadrados, com uma beliche, ar-condicionado e, em alguns casos, frigobar. Mas, com a bagagem do passageiro, o local fica intransitável para duas pessoas ao mesmo tempo. Das torneiras, a água que sai é a do Rio Amazonas, ou seja, barrenta, principal problema na opinião da piauiense Claudiana Silva Santos, de 32 anos. Durante a viagem, a representante comercial lavou o rosto e escovou os dentes com água mineral. Ela também queria conhecer o Rio Amazonas e pagou R$ 250 pelo camarote sem banheiro.
- Apesar da falta de estrutura, valeu a pena fazer a viagem - diz ela, que, com Ligiane Oliveira, amiga que fez no barco, passou a última noite praticamente em claro, à espera da temida entrada na Baía do Guajará, já quase em Belém, onde a força da entrada das águas do oceano torna a água do rio salobra e revolta. Como a chegada no local aconteceu às 3h, muita gente deixou de dormir.
Passageiros viajam
misturados à carga
As redes são levadas pelos próprios passageiros. Há a opção de pendurá-las no salão com ar-condicionado, que é mais caro e chamado de "rede de primeira classe", e no andar sem ar, as "redes de segunda classe".
- A frota está envelhecendo e os barcos de madeira produzidos artesanalmente são um grande risco - alerta Roberto Pacha, coordenador do curso de Engenharia Naval da Universidade Federal do Pará (UFPA). - Não queremos inverter a vocação da Amazônia, que tem nos rios estradas de alta capacidade e baixo custo. As rodovias são poucas e precárias, só funcionam na época sem chuvas. Mas é preciso aumentar o controle. Estimamos que existam 300 mil pequenas embarcações piratas atuando no transporte de passageiros - acrescenta.
Paulo Tarso Vilela de Resende, coordenador do Núcleo CCR de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, alerta para o risco de, em muitos casos, o passageiro ir misturado à carga:
- É comum o transporte de carga inflamável, como gás, combustível e querosene. Qual é a política nacional que temos de transporte em rios? Zero.
Bruno Batista, diretor-executivo da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), lembra que a falta de estatísticas dificulta a elaboração de políticas públicas para o setor.
- Sem saber a realidade, é difícil elaborar um plano que contemple a formalização deste transporte - comenta.
Antaq diz estar elaborando metas de qualidade
Durante a viagem do GLOBO no Amazon Star, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) fez uma blitz surpresa no porto de Parintins. Descobriram vários salva-vidas incompletos e receberam muitas reclamações dos passageiros das redes. O gerente Edinelson Campos foi chamado e atendeu às determinações: aumentou a frequência de limpeza dos banheiros e se comprometeu a regularizar os salva-vidas. Mas o ar-condicionado continuou falhando. Segundo ele, o motor do barco não suportava os quatro aparelhos ligados na área das redes ao mesmo tempo.
Para a fiscalização, a Antaq tem um efetivo de 110 fiscais apenas, número que admite ser insuficiente. A agência diz que pediu autorização para abrir concurso e que está treinando seus funcionários para melhorar sua atuação. Segundo a agência, até o fim deste mês devem ser decididos os requisitos para as metas de qualidade de atendimento.
Sobre as bagagens na área das redes, a agência diz que a Marinha determina que "deverá existir a bordo um compartimento, com dimensões apropriadas e com possibilidade de trancamento, para a guarda de bagagens e volumes de passageiros". Mas a norma é sistematicamente descumprida na Amazônia.

Escalpelamentos, um drama na Amazônia
Acidente com peça exposta do motor em barcos já mutilou 1.500 pessoas na região

BELÉM. O alto índice de informalidade no transporte fluvial esconde um drama ainda desconhecido por muitos brasileiros: os escalpelamentos na Amazônia. Os acidentes acontecem nos barcos menores, de até 15 passageiros,que deixam o eixo do motor descoberto. Segundo a Santa Casa do Pará, desde a década de 70, foram cerca de 1.500 vítimas, a grande maioria mulheres e crianças de 10 a 14 anos na Região Norte. Mas, hoje, o problema está concentrado no Pará: no ano passado, foram seis casos, enquanto este ano, até a semana passada, já há dez registrados.
O acidente acontece durante a viagem, com a peça do motor em movimento exposta no local onde ficam os passageiros. O cabelo da vítima enrosca no eixo, que continua girando. A força do motor faz com que o couro cabeludo - e, muitas vezes, também orelhas, sobrancelhas e parte da pele da nuca - seja arrancado. Quando não leva à morte, causa graves deformações e, para o resto da vida, dolorosas.
Regina Formigosa, de 39 anos, sofreu o acidente há 17, quando morava na Ilha de Marajó. Teve o couro cabeludo e a pele da testa até as sobrancelhas arrancados. O barco levou cinco horas para chegar ao hospital, onde, em cinco meses, passou por quatro cirurgias para enxertos de pele. Como o cabelo não volta a crescer (a pele enxertada é retirada da coxa), usava chapéus e lenços. Entrou em depressão: - É difícil sair de casa. As pesoas têm muito preconceito.
O encontro com Mário, seu atual marido, um ano depois do acidente, foi fundamental para sua recuperação. Hoje, mora em Belém, tem uma filha de 5 anos, Maria, e ajuda outras vítimas na ONG dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (Orvam). Na sede da entidade, fabricam perucas para uso próprio com doações de cabelo que recebem de todo o país. Para ajudar nas despesas da ONG, parte é vendida.
- Estar com pessoas que sofreram o problema é importante, uma ajuda a outra. Nunca mais vou ser a mesma. Não consigo ficar no sol, por exemplo, sinto dores de cabeça. E o pior é que, se você for à minha comunidade hoje, vai ver vários barcos sem proteção - diz Regina.
A cobertura é distribuída gratuitamente pela Marinha, mas a criadora da ONG, a assistente social Maria Cristina Santos, diz que as ações de prevenção são insuficientes. A Marinha, porém, afirma que são "sistemáticas e intensas" e que há casos em que os donos ganham o protetor, mas retiram para resfriar o eixo. Estes podem ter o barco apreendido. Como depois do acidente as vítimas têm dificuldades para trabalhar, a Defensoria Pública da União no Pará e o Ministério do Desenvolvimento Social para implementar um benefício assistencial
de prestação continuada.
No Amapá, após campanhas maciças, desde 2011 não há casos, segundo a coordenadora da Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamentos da Amazônia, Rosinete Serrão, de 35 anos, que sofreu o acidente há 20. A ONG tem 117 associados, sendo 110 mulheres. (Liane Thedim, enviada especial)

O Globo, 28/05/2012, Economia, p. 19-20

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