VOLTAR

A partida do herói brasileiro

Época, Reportagem da capa, p. 92-98
Autor: Alexandre Mansur
16 de Dez de 2002

A partida do herói brasileiro
Morre Orlando Villas Bôas, o sertanista que abriu as portas da Amazônia, lutou pelos índios e venceu preconceitos

Alexandre Mansur

Orlando Villas Bôas era um homem de bons combates. Travou o último deles no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, na semana passada. Não foi fácil. O país assistiu, pesaroso, à lenta agonia de um dos brasileiros mais importantes do século XX. Líder da expedição Marcha para o Oeste, que desvendou o sertão nos anos 40, Villas Bôas se tornaria o maior defensor dos povos nativos do Alto Xingu. Fez contato com tribos arredias, lutou pela criação de um parque de inestimável diversidade étnica e, assim, devolveu o Brasil aos primeiros brasileiros. O organismo forte do indigenista sobreviveu a toda sorte de privações na selva, resistiu a picadas peçonhentas, navegou em 253 acessos de malária. 'Dizem que desmoralizei a doença no país', brincava. Mas não resistiu ao desgaste provocado pela idade. Aos 88 anos, o corpanzil parou lentamente de funcionar. Villas Bôas passou o último mês internado. Foi derrubado por uma infecção intestinal aguda, que aos poucos sabotou o funcionamento de órgãos vitais, como pulmões, rins e cérebro, num ataque persistente e irreversível. Nos últimos dez dias, na UTI, respirava por aparelhos, inconsciente. Era mantido sedado, sob a vigília da mulher, Marina, e dos filhos Noel e Orlando Filho. Em seus derradeiros minutos, tinha a face tranqüila de quem cumpriu a missão que a vida lhe destinou.

A saga de Villas Bôas começou de maneira muito simples. Criado para ser um homem comum, e não um herói nacional, nasceu em 12 de janeiro de 1914, na cidade de Botucatu, no interior de São Paulo, e não terminou o colegial. Foi um menino de brincadeiras de rua, daqueles que rasgam o calção ao pular o muro das casas - diga-se de passagem, o lado arruaceiro da infância era motivo de orgulho para o velho desbravador. Com a morte dos pais, viu-se obrigado a abandonar o ginásio para ajudar no sustento dos oito irmãos. Em 1935, entrou para o Exército, mas foi expulso por indisciplina. Arrumou, então, um emprego na Esso. Também não durou sua convivência com os padrões americanos da companhia. Villas Bôas, que controlava o estoque de gasolina da empresa na cidade, foi demitido em 1941. Juntou então os dois irmãos mais próximos, Cláudio, de 25 anos, e Leonardo, de 23, e deu início à grande aventura de suas vidas.

Rumo ao desconhecido
Durante mais de quatro anos, Orlando Villas Bôas e seus irmãos lideraram a Marcha para o Oeste, odisséia que desbravou mais de 1.000 quilômetros de florestas e rios. Foram os primeiros brancos a cortar as serras do Roncador e do Cachimbo, descobrindo o Xingu e estabelecendo contato com povos indígenas

PRIMEIROS CONTATOS
Em 6 de outubro de 1946, os sertanistas fazem os primeiros contatos pacíficos com os temidos calapalos

PISTA DE POUSO NA MATA
Ao longo da Marcha, usando apenas facões e enxadas, os exploradores abriam pistas de pouso para os aviões da Força Aérea Brasileira, que traziam suprimentos e comunicação com o resto do mundo

Fotos: Arquivo pessoal

Foi na Expedição Roncador-Xingu, organizada pelo governo federal, que os três encontraram a verdadeira vocação. A empreitada, batizada de Marcha para o Oeste, foi lançada no fim de 1937 por Getúlio Vargas. 'A região central do Brasil, entre os rios Tapajós, a bacia do Araguaia e os chapadões de Mato Grosso, era um grande sertão desconhecido no coração do Brasil', conta o historiador Leandro Mendes Costa, da Universidade Federal de Goiás. 'Além disso, com a Segunda Guerra, o governo queria pistas de apoio para rotas aéreas pelo interior do país, segurança contra um possível ataque no litoral.' Em São Paulo, os Villas Bôas tentaram se inscrever na Marcha, mas foram recusados. Só passavam na seleção os sertanejos, homens mais resistentes que os habitantes das cidades. Teimosos, os irmãos rumaram para Aragarças, em Goiás, ponto de largada da expedição. Vestiram roupas velhas, sapatos surrados e, com tal disfarce, foram recrutados. Cláudio e Leonardo, na enxada, e Orlando, como auxiliar de pedreiro. Durante os preparativos para a partida, pediram-lhes que desatolassem um avião na pista. O encarregado da expedição, o único não sertanejo ali, logo percebeu, pela conversa dos três, que eram pessoas com educação formal. No dia seguinte, Cláudio virou chefe do pessoal, Leonardo, do almoxarifado, e Orlando, secretário da base.

Iniciada por 30 homens, a empreitada foi uma das maiores odisséias da história do Brasil e até o final mobilizou uma massa estimada em milhares de pessoas - aí incluídos sertanejos, militares, médicos, indígenas e lavradores em busca de um pedaço de terra. Em 1943, saíram de Aragarças, atravessaram a lendária Serra do Roncador, onde o coronel inglês Percy Fawcett desaparecera nos anos 20, na busca de um suposto eldorado. Durante cinco anos, a Marcha subiu até bacia do Rio Xingu, cortando 700 quilômetros de rios caudalosos e densas florestas que nunca viram homens brancos. De lá, encontrou caminho até o Rio Teles Pires atravessando mais 400 quilômetros de mata inexplorada e cruzando, pela primeira vez, a Serra do Cachimbo. Pelo temperamento e pela energia, Orlando Villas Bôas transformou-se no líder da empreitada. Os passos da aventura eram transmitidos por telex e anunciados no rádio, em cadeia nacional, pelo Repórter Esso. Avançando sobre um Brasil misterioso e cheio de confins, numa expedição cuja coragem, e não os métodos, lembrava as bandeiras paulistas, Villas Bôas e seus irmãos entraram para a linhagem dos maiores desbravadores do mundo.

Ao contrário de seus precursores, que até então só haviam abordado índios de forma hostil, Villas Bôas impôs uma estratégia harmoniosa. 'Ele mostrou que é possível criar uma relação de convivência e respeito entre culturas diferentes', conta o epidemiologista Roberto Baruzzi, da Universidade Federal de São Paulo. De cara, fez o que ninguém fizera antes. Passou pelos guerreiros xavantes sem confronto sangrento. Fez o primeiro contato pacífico com os calapalos, apontados como responsáveis pelo desaparecimento de Fawcett. Aproximou-se dos ferozes caiapós, conquistando a simpatia do líder Raoni. O mergulho no Brasil profundo revelou ao planeta um país com uma diversidade cultural insuspeitada e riquíssima.

Roberto Stuckert/Funai

CERIMÔNIA
Villas Bôas foi convidado, em 1988, para um Quarup em homenagem ao irmão Cláudio, que morrera dois anos antes
A Marcha, por sua vez, lançou as bases para a futura ocupação da Amazônia, tirando a região do isolamento. Criou condições para o nascimento de cidades, abriu caminho para futuras rodovias e estabeleceu pontos de apoio para o correio aéreo nacional chegar a Manaus, pelo interior. 'Ao abrir as portas da região, Villas Bôas e os irmãos se apressaram em pensar uma forma de preservar a cultura e a permanência dos povos que encontraram', avalia o cirurgião Murillo Villela, da Escola de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Villela, em 1954, começou a saborear a rara oportunidade de ter sido um dos primeiros médicos a atender os índios do Xingu.

A Marcha deu origem ao projeto de criação de um parque indígena em moldes inéditos. Até então, os nativos recebiam colônias, pedaços de terra suficientes apenas para uma roça de subsistência. 'Acreditava-se que eles deviam virar pequenos produtores rurais e se incorporar rapidamente ao mundo civilizado', conta Marcos Terena, ex-funcionário da Funai. Mas os Villas Bôas tiveram a petulância de se revoltar contra a extinção programada das culturas indígenas. 'O estatuto de criação do parque do Xingu é visionário', diz o antropólogo André Villas Bôas, parente distante dos desbravadores, hoje ligado ao Instituto Socioambiental. 'Num tempo em que não havia ecologistas nem ONGs, Villas Bôas propunha a instituição de uma área onde os índios pudessem viver sozinhos, longe dos brancos, e preservar a natureza intocada.' Villas Bôas angariou o apoio de personalidades como o antropólogo Darcy Ribeiro e o sanitarista Noel Nutels e conquistou a simpatia da FAB. Em 1961, o decreto de criação do parque foi finalmente assinado pelo presidente Jânio Quadros. Um paraíso de 28 milhões de hectares, área equivalente à soma dos territórios da França e da Inglaterra, foi demarcado para abrigar 13 povos. Leonardo, vítima de uma doença cardíaca naquele ano, não viveria para ver o sonho transformar-se em algo concreto.

Para reforçar a importância do Xingu, os Villas Bôas lançaram a idéia de que o parque funcionaria como uma espécie de Arca de Noé, recebendo tribos que corriam risco em outros lugares da Amazônia. Hoje a estratégia de remover povos ameaçados para áreas seguras é questionada. 'Mas, naquele tempo, não havia alternativa. Aqueles povos provavelmente não sobreviveriam de outro jeito. Livrá-los do desaparecimento já era muita ousadia', pondera a antropóloga Carmen Junqueira, professora emérita da PUC de São Paulo, que trabalhou com os pioneiros. Assim os irmãos indigenistas salvaram povos como os panarás. Com a construção da rodovia Cuiabá-Santarém, epidemias dizimaram 90% da população. Os 78 sobreviventes foram transferidos para o Xingu em 1973 e voltaram a crescer. Hoje são 230.

Villas Bôas sempre alertou para o risco de uma incorporação apressada ao mundo branco. 'O índio, ingênuo, despreparado, incapaz de avaliar o preço que vai pagar pelo ingresso repentino na civilização, deixa-se envolver nas malhas do progresso. Perde a cultura na qual se equilibra e o resultado é a desagregação do grupo inteiro', avisava o sertanista. Por isso tomou o cuidado de retardar o contato com o mundo branco. 'Ele ajudou a formar uma geração intermediária de índios que cresceram em contato com os brancos, sem perder sua cultura e seu ambiente. Hoje muitos deles se tornaram importantes lideranças', conta Carmen Junqueira. Um dos membros dessa geração é Pirakuman Yawalapiti, de 47 anos. Aprendeu a falar e escrever português nas aulas ministradas pelos irmãos sertanistas. E não esquece o dia em que, durante os preparativos para voltar a São Paulo, em 1971, após dez anos dirigindo o parque, Villas Bôas reuniu os jovens índios e disse: ' Estou ficando velho. Vou me aposentar. Outros brancos virão para administrar o Xingu. Mas não ficarão para sempre. Quem vai tomar conta disso tudo são vocês'. A profecia se concretizou logo: em 1984, o índio Megaron Txucarramãe assumiu a direção do parque.

Mairauê Kaiabi, de 48 anos, lembra da primeira vez em que viu Orlando Villas Bôas. Hoje presidente da Associação Terra Indígena do Xingu, entidade que congrega os povos da região, Kaiabi conheceu-o em 1945. Tinha 6 anos quando a expedição bateu à choça de seus pais, às margens do Rio Teles Pires. 'Até então, os únicos brancos dos quais tínhamos notícia eram garimpeiros e caçadores que invadiam nossas terras. Lembro da admiração de meus pais por aqueles estranhos viajantes que lutavam por nós', diz Kaiabi. Seis anos depois, transferido com seu povo para o Xingu, começou a ser educado pelos Villas Bôas na defesa de sua gente. 'Ele conversava longamente conosco, explicava que as cidades só oferecem a ilusão de que tudo é fácil', conta Kaiabi. A paciente doutrinação em defesa da vida fez com que os Villas Bôas fossem indicados para o Prêmio Nobel da Paz, em 1976.

Orlando Villas Bôas, o mais velho dentre os sertanistas da família, foi o último remanescente de uma geração de caciques brancos, indigenistas que preferiam manter tribos sob sua tutela, de forma deliberadamente paternalista. Diretor do parque por dez anos, era rigoroso. Não deixava passar bebida alcoólica e pregava como o dinheiro transforma irmãos em inimigos. Para desestimular o vício entre os índios, deixou ele mesmo de fumar. Os visitantes, trazidos pelos aviões da FAB, só entravam com sua autorização. Também controlava a saída dos índios, que visitavam o mundo lá fora para eventos escolhidos. 'Era um avô. Ficava bravo quando usávamos as roupas deixadas pelos visitantes e pedia para a gente voltar a se pintar, da maneira tradicional', evoca Yawalapiti. Hoje essa linha de trabalho é criticada por especialistas. 'Mas foi a maneira de mostrar que é bom aprender com o branco, desde que não se perca a autonomia', reconhece Kaiabi.

Pedro Martinelli

RESGATE
Na canoa, em 1972, Villas Bôas prepara expedição aos panarás, os índios gigantes que salvou da extinção
A chegada dos brancos trouxe epidemias. No ano do contato com a expedição, os calapalos sofreram um surto de gripe que matou 28 índios, de uma população de apenas 180. 'Nove sepulturas recentes indicavam a situação angustiosa da tribo. A desolação e a fome corriam pela aldeia', escreveram os irmãos, em seu diário de viagem. A prontidão e o senso diplomático de Villas Bôas garantiram às tribos um programa de saúde exclusivo. Em 1966, ele criou um convênio com a Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo. Nos aviões da FAB, vinham doutores fazer saúde preventiva na região, aplicando vacinas, atendendo os doentes um a um e levando os casos mais graves para hospitais em São Paulo. Conseguiram controlar a malária e trazer a taxa de mortalidade, antes elevada, para os mesmos níveis do restante do país.

O convênio também mudou a vida de Villas Bôas. Foi através dele que o indigenista conheceu sua mulher, Marina. Ela chegou como enfermeira, em 1963. Casaram-se em São Paulo, seis anos depois. 'À noite, no parque, jogávamos baralho ou conversávamos. Acabei me apaixonando', lembra ela, aos 68 anos. Sua casa, na sede do Parque do Xingu, transformou-se na embaixada dos índios. Só saíram de lá em 1970, à espera do primeiro filho. Orlando Villas Bôas Filho, apelidado de Vilinha, nasceu em São Paulo, mas viveu quatro anos no Xingu. O irmão, Noel, nasceu em 1975, quando o casal tinha se instalado de vez em São Paulo. Dois anos depois, fizeram um casamento religioso, às escondidas, para não despertar a atenção da imprensa.

De tempos em tempos, Marina e Villas Bôas voltavam ao Xingu, levando as crianças. Elas passavam férias nadando nos rios, escalando árvores e, acima de tudo, convivendo com os índios. Uma das viagens mais emocionantes foi num Quarup, a grande cerimônia de celebração dos mortos, em 1998. Os xinguanos receberam Villas Bôas como cacique honorário e homenagearam o irmão Cláudio, que morrera dois anos antes. Em 2000, ao ser demitido da Funai, numa passagem pelo órgão, o indigenista recusou convites do presidente Fernando Henrique Cardoso para ocupar outros cargos. Preferiu se recolher ao estúdio de casa, um amplo salão com centenas de fotografias e peças amealhadas em suas andanças. Ali começou o último projeto: uma autobiografia. Escrevia à máquina e os filhos passavam para o computador. Não teve tempo de terminá-la.

Época, 16/12/2002, Reportagem da capa, p. 92-98

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR54471-5990,00.html

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.