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Parecer do Ibama foi dirigido contra licença

OESP, Nacional, p. A12
20 de Mai de 2007

Parecer do Ibama foi dirigido contra licença
Até reflexões sobre população carcerária e Tratado de Tordesilhas entraram nas considerações sobre usinas

João Domingos

O parecer técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre a viabilidade ambiental das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio foi direcionado para rejeitar a licença de construção das duas usinas no Rio Madeira, em Rondônia. Nas 221 páginas do relatório concluído em 21 de março, os oito técnicos responsáveis utilizaram por 707 vezes a palavra "não", quase sempre para desqualificar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), as duas peças fundamentais para a concessão da licença prévia das duas obras, feitas pelo consórcio Furnas/Odebrecht. Até reflexões sobre o tamanho da população carcerária e o Tratado de Tordesilhas entraram nas considerações para negar a licença.

Exemplos de artifícios para levar à conclusão de que não era possível conceder a licença existem às centenas - e todos são muito parecidos.

"Não houve o correto dimensionamento da área de campinarana que poderá ser afetada pela elevação do lençol freático; também não foi corretamente avaliado o impacto das perdas de áreas de lazer e turismo, notadamente as praias e cachoeiras, e a alteração do potencial turístico local, nem apresentado um programa ambiental correspondente; não foram apresentadas alternativas tecnológicas e locacionais específicas para questões sedimentológicas", aponta o relatório. Nesse ritmo, a última oração escrita pelos técnicos no parecer sustentou, de novo, o tão familiar advérbio: "Portanto, recomenda-se a não-emissão da licença prévia."

A chuva de "nãos" chama a atenção no texto que rejeitou a concessão da licença ambiental para as usinas previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para as quais estão previstos investimentos de R$ 20 bilhões. As hidrelétricas, se construídas, vão gerar 6,5 mil megawatts de energia, metade de Itaipu. O projeto prevê o aproveitamento do movimento horizontal do rio, diminuindo a necessidade de enormes represas, destinadas a gerar grandes quedas verticais para movimentar as turbinas.

POPULAÇÃO CARCERÁRIA

Existem no parecer outros pontos tão curiosos quanto o freqüente uso do "não". Um deles diz respeito à população carcerária. O relatório resolveu aprofundar a análise sobre o número de presos de Porto Velho, a capital de Rondônia. Concluiu que é uma população gigantesca. De fato, é.

Difícil é dizer o que isso tem que ver com uma concessão de licença ambiental para usinas que vão ser construídas a mais de 100 quilômetros rio acima e para as quais se examina a viabilidade ambiental.

De acordo com o parecer, Rondônia é um dos Estados mais violentos do Brasil. "A população carcerária passou de um preso para cada 5.169 habitantes, em 1980, para o número extraordinário de um preso para cada 369 habitantes em 2003." Em seguida, conclui que é grande o problema de segurança no Estado em relação às drogas, principalmente na fronteira com a Bolívia. Mas não só lá, porque o problema se verifica também ao longo da BR-364 (Limeira, em São Paulo, a Cruzeiro do Sul, no Acre, cortando Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Rondônia).

O mesmo parecer fez ainda uma análise das povoações a oeste do Tratado de Tordesilhas, lembrando que o espaço onde hoje está Rondônia pertencera à Espanha. Acontece que o tratado expirou em 1750, exatos 257 anos antes da emissão do relatório do Ibama e 164 anos antes da fundação de Porto Velho. Mesmo os bandeirantes que avançaram pela fronteira oeste, como Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, jamais chegaram perto do que hoje é Rondônia.

A MONTANTE

Outra manobra protelatória que pode ser verificada no parecer do Ibama diz respeito à sugestão de que se faça, além de um novo Estudo de Impacto Ambiental para as usinas, algo semelhante na Bolívia e no Peru, dois países por onde também passa o Rio Madeira. Especialistas que leram o parecer do Ibama consideraram a sugestão absurda.

Disseram que não há precedente na história de algo assim e lembraram que os dois países vizinhos ficam acima do local onde devem ser construídas as hidrelétricas, o que na linguagem técnica é chamado de "a montante". Portanto, o que vai ocorrer abaixo não lhes diz respeito. Mas o relatório insiste em que interessa, sim. "Aqueles que vivem da atividade pesqueira serão atingidos economicamente muito além dos limites brasileiros, como é o caso dos bolivianos e peruanos que dependem economicamente da pesca da dourada (brashyplatystoma rosseausii), espécie seriamente ameaçada com a implantação do empreendimento."

MANOBRA

Em outra parte, já no fim do parecer, concluíram os técnicos do Ibama que "considerando a real área de abrangência dos projetos e o envolvimento do Peru e da Bolívia, a magnitude desses novos estudos remete à reelaboração do Estudo de Impacto Ambiental e instrumento apropriado a ser definido conjuntamente com esses países impactados". Essa, na opinião de técnicos do Ministério de Minas e Energia, é a mais flagrante manobra protelatória que poderia haver no relatório do Ibama.

A respeito dessa parte do parecer, respondeu o então diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Luiz Felippe Kunz Júnior: "Encaminharei consulta à Procuradoria Federal Especializada sobre a possibilidade de realização de estudos em outros países, ou de exigir análise de dados secundários da bibliografia científica já existente sobre a situação da bacia nos países vizinhos, caso necessário." Kunz foi demitido.

Instituto vetou explicações de técnicos sobre texto

O Estado procurou os técnicos do Ibama que deram o parecer. Mas a direção do instituto informou que eles não poderiam se manifestar, dado que o relatório, uma vez feito, é de responsabilidade da autarquia. Sabe-se que manobras protelatórias como as que foram usadas muitas vezes têm outro objetivo. Para fugir de ações de improbidade administrativa por parte do Ministério Público, caso este considere que houve transgressão à lei, os técnicos evitam tomar decisões polêmicas.

Uma vez processados, eles não contam com o serviço jurídico do órgão para o qual trabalham. São obrigados a contratar advogados e arcar com as despesas. Uma saída apontada pelo presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, seria tirar do técnico a responsabilidade jurídica pelo parecer, transferindo-a para o órgão para o qual trabalha. A Câmara dos Deputados tende a aceitar a sugestão.

Tanto cuidado por parte dos técnicos acabou por gerar um parecer contraditório quanto à viabilidade ambiental das usinas do Madeira. Nas conclusões, eles sugeriram que fosse reelaborado o Estudo de Impacto Ambiental. Mas, em seguida, por considerar impossível atestar a viabilidade ambiental dos empreendimentos de Jirau e Santo Antônio, determinaram um novo estudo.

Bagres que fizeram alegria hoje tiram Lula do sério

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva gaba-se de ser um ótimo pescador de jaú. Disse, durante café da manhã com jornalistas, em 22 de dezembro, que já pegou um de mais de 50 quilos. Em tupi-guarani, jaú quer dizer 'boca grande', 'grande bagre comedor'. Se o bagre jaú faz a felicidade do pescador Lula, dois outros tipos de bagres, a dourada e a piramutaba, trazem a infelicidade e tiram o sono do presidente. E ameaçam a licença ambiental para a usinas do Rio Madeira.

O parecer dos técnicos do Ibama que rejeitou a licença ambiental prévia para as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio tem 10 páginas dedicadas só aos 'grandes bagres' dourada (brachyplatystoma rousseauxii) e piramutaba (brachyplatystoma vailanti) e a outros menores. Diz o relatório que as duas espécies maiores empreendem migrações microrregionais, estando entre as maiores conhecidas para peixes de água doce no mundo.

Ainda conforme o parecer, as duas espécies necessitam utilizar diferentes áreas da Bacia Amazônica para completar seu ciclo de vida. As formas juvenis se desenvolvem no estuário do Rio Amazonas, onde ficam de dois a três anos alimentando-se até atingir cerca de 40 centímetros de comprimento. A partir daí, iniciam sua migração de mais de 3 mil quilômetros rumo às cabeceiras dos rios que nascem na Cordilheira dos Andes, já na Bolívia e no Peru, onde desovam. As usinas atrapalhariam a passagem deles para a reprodução, rio acima. Por isso, é preciso encontrar um jeito de lhes dar passagem.

Além das informações referentes à dourada e à piramutaba, o parecer cita ainda outras espécies de bagres que vivem na região, todos com importância comercial, entre eles o babão, filhote, surubim, caparari, pirarara, piraíba, barba-chata, barbado e, claro, o jaú do presidente Lula.

Barragens desalojariam menos de 3 mil pessoas

De acordo com o parecer dos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), 2.849 pessoas serão desalojadas pelas barragens das duas hidrelétricas do Rio Madeira, caso elas venham a ser construídas. É um número pequeno, se comparado ao de qualquer outro empreendimento do mesmo porte. Só no Açude do Castanhão, no Ceará, por exemplo, foram 4 mil as famílias retiradas do local, o que significa pelos menos 20 mil pessoas afetadas pela obra.

Tendo em vista que boa parte da população que será atingida pelas duas barragens do Rio Madeira para a construção das usinas é constituída de garimpeiros, é possível que se trate de uma população com fluxos migratórios. Mesmo tendo concluído que esses garimpeiros vivem em desacordo com a legislação ambiental, ao se referir a eles os técnicos tomaram uma atitude protelatória.

'De qualquer forma, é necessária a realização de estudos mais detalhados, porque, mesmo estando muitos desses trabalhadores em desacordo com as leis ambientais, o fato é que desenvolvem uma atividade produtiva, sustentam famílias e precisam estar contabilizados e diagnosticados para adequado tratamento', diz o parecer do Ibama.

Estudos mais detalhados exigem mais tempo.

GARIMPOS

Os garimpos de ouro, cassiterita e topázio são os mais importantes na área de formação da hidrelétrica de Jirau, sendo pouco expressivos na de Santo Antônio, a não ser por uma porcentagem bem pequena de pessoas residentes em Jaci-Paraná, de acordo com o parecer dos técnicos do Ibama. Na área de Santo Antônio, há registro expressivo de pessoas ligadas à extração de açaí, pupunha, castanha, andiroba, copaíba e cupuaçu.

A área de extração de ouro feita pela Mineração São Lourenço fica distante das duas hidrelétricas. As informações sobre topázio foram inconclusas. Na época das cheias do Madeira, quando o nível do rio atinge mais ou menos 18 metros de profundidade, a atividade garimpeira é realizada quase unicamente pelas dragas e balsas, poucas com auxílio de mergulhadores, além de raros garimpos manuais que utilizam equipamento rudimentar.

A média de extração de ouro é de 1,75 quilo/mês por draga. Cada uma das dragas gera, em média, cinco empregos diretos, com 20% da produção rateada entre os empregados como remuneração, propiciando renda mensal de cerca de R$ 2,65 mil por mês para cada operador (cotação do ouro feita, à época, a R$ 37 o grama). O custo médio de montagem de uma draga é de R$ 250 mil.

Ao saber do veto, presidente encerrou reunião para poder 'esfriar a cabeça'

Foi grande a decepção - há quem a descreva como uma raiva contida - do presidente Lula quando soube, por intermédio do então presidente do Ibama, Marcus Barros, que não haveria a licença prévia para as usinas do Madeira. A reunião foi realizada em 23 de março, dois dias depois da emissão do parecer técnico e sete dias antes do despacho do então diretor de Licenciamento Ambiental, Luiz Felippe Kunz, que concordou com a impossibilidade da emissão de licença prévia naquele momento. Kunz foi demitido.

Dessa reunião participaram os ministros Marina Silva (Meio Ambiente), Dilma Rousseff (Casa Civil) e Silas Rondeau (Minas e Energia), além de Barros, Kunz e o então secretário-executivo do Meio Ambiente, Cláudio Langone, também já demitido. De acordo com um dos participantes, a reunião foi muito tensa.

Quando Lula perguntou como estava o licenciamento das hidrelétricas, Barros apanhou o pacote de 221 páginas elaborado por oito técnicos do instituto e entrou diretamente no parecer final, sem amenizar o impacto. 'A equipe técnica concluiu não ser possível atestar a viabilidade ambiental dos aproveitamentos hidrelétricos Santo Antônio e Jirau, sendo imperiosa a realização de novo Estudo de Impacto Ambiental (EIA), mais abrangente, tanto em território nacional como em territórios transfronteiriços, incluindo a realização de novas audiências públicas. Portanto, recomenda-se a não-emissão da licença prévia.'

Quando Barros terminou, Dilma mordia o lábio superior, com força; Rondeau tinha se levantado da cadeira; Langone estava de cabeça baixa; Marina mantinha-se muda. Lula esperou uns momentos. Recompôs-se e disse: 'Olha, vamos esfriar a cabeça e fazer uma nova reunião para ver o que fazer.'

Um novo encontro foi marcado para dali a três dias, em 26 de março. Lula estava mais tranqüilo. Foi marcado mais um encontro para 9 de abril, mas Lula fugiu. Foi a última reunião.

OESP, 20/05/2007, Nacional, p. A12

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