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Parece ate bruxaria

CB, Brasil, p.11
07 de Set de 2004

Pesquisas realizadas por institutos do Pará e de São Paulo catalogaram cerca de 800 doenças tratadas a partir do uso de animais, vivos ou não, e plantas. Algumas receitas são feitas por velhas curandeiras
Parece até bruxaria
Ullisses Campbell
Para se livrar do tersol, você teria coragem de pegar um gafanhoto vivo, arrancar uma das pernas e passá-la no olho? E se o problema for uma mancha na pele (ptiríase versicolor), que tal deixar uma lesma passear pela região afetada? Há quem diga que a gosma que o bicho deixa ao se rastejar é ótima para curar pano branco. Há receitas light para diarréia, como um chá feito de raiz de camembeca com gema de goiabeira. Duas pesquisas científicas feitas no Pará e em São Paulo catalogaram como cerca de 800 problemas de saúde são tratados no interior da Amazônia, bem longe da medicina tradicional, utilizando aproximadamente 1,8 mil animais e plantas.
Os tratamentos identificados pelo departamento de Entomologia do Museu Paraense Emílio Goeldi, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, esbarram no bizarro. Algumas receitas parecem saídas de livros de magia negra. Tratam-se de fórmulas prescritas por velhas curandeiras que, como verdadeiras bruxas, misturam ervas com animais, seja ele réptil, mamífero, ave, peixe ou inseto, para tratar doenças que vão de uma simples dor de dente até câncer.
Em São Paulo, pesquisadores da Escola Paulista de Medicina se curvaram ao poder de cura das plantas e começaram uma pesquisa inédita no país. Os doentes terminais de câncer na bexiga, próstata e rim estão sendo tratados com três tipos de plantas cujo nomes são guardados a sete chaves. "0 segredo serve para não influenciar o pesquisador", ressalta o botânico Silvio Panizza, autor do livro As plantas que curam, na 20aedição. Ele é o encarregado de fornecer as plantas para a pesquisa. Vale ressaltar que, por enquanto, nenhuma das receitas usadas no interior da Amazônia tem comprovação científica definitiva. Os estudos ainda são incipientes.
Bichos e plantas
Para catalogar como as curandeiras manipulam ervas e animais na Amazônia, a enfermeira Graça Overall, do Emílio Goeldi, percorreu 18 localidades de oito municípios paraenses e identificou 200 doenças tratadas com receitas populares. Sá para asma, foram identificadas 35 tipos de curas misturando bichos e plantas.
As fórmulas geralmente são manipuladas por velhas sertanejas. A maioria delas mal sabe ler e não gosta muito de falar. Quase todas vivem isoladamente e nunca puseram os pés numa cidade grande. A pesquisa do Goeldi entrevistou 65 curandeiras e identificou 23 espécies de mamíferos, dez de aves, oito de répteis, oito de peixes e 15 de invertebrados usados nas poções, além de 500 plantas.
Uma das maiores especialistas em plantas medicinais na Amazônia é a botânica Elisabeth van den Berg, também do Museu Paraense Emílio Goeldi. Em duas pesquisas diferentes, Elisabeth catalogou 1,8 mil espécies diferentes de ervas usadas nos mais variados tipos de tratamentos médicos. Na mais recente pesquisa, Elizabeth conseguiu jogar por terra um mito que era quase um consenso entre estudiosos do assunto.
"Todo mundo acreditava que as plantas e as fórmulas (misturas) que curam na Amazônia têm origem indígena. É engano. De 1,8 mil plantas investigadas, descobrimos que 30% são de origem indígena e 25% vieram da África. Os 65% restantes têm origem variada", ressalta a pesquisadora.
Elisabeth também escreveu um livro defendendo que a medicina tradicional, aos poucos, vai se rendendo à medicina praticada por curandeiros do interior. Em seu trabalho, ela cita como exemplo a substância que os médicos usam atualmente como anestesia geral, o curare. "Nada mais é do que uma erva indígena usada há muito tempo em várias aldeias", atesta a pesquisadora.
O pesquisador Sílvio Panizz diz que a medicina tradicional só não se curva definitivamente para a cura pelas plantas porque o poder dos laboratórios sobre os médicos ainda é muito grande. "Existem interesses em jogo e há muita malandragem nesse mercado", ressalta.
Elisabeth van den Berg conta que já andou pela Amazônia toda e que nunca teve problemas de saúde. Certa vez, foi visitar o município de Barcarena, na Região Metropolitana de Belém, e bebeu uma água suspeita. Teve uma crise de diarréia tão forte que parou no hospital. Saiu com uma receita médica tradicional. Não adiantou. Confiante no poder das bruxas que vendem ervas no tradicional mercado Ver-o-Peso, recorreu a uma receita antiga: um chá feito de raiz de camembeca com gema de goiabeira e folha de marupazinho.
"Lembro que fui doente à feira e comprei tudo. Minha mãe ficou desesperada. Cheguei em casa, preparei o chá e tomei. No dia seguinte, estava curada", relata Elizabeth. Uni ano antes, ela havia feito um levantamento de plantas medicinais usadas na Amazônia para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Das 21 espécies mais usadas identificadas pela pesquisadora, 12 fizeram parte de um catálogo que o órgão do governo federal enviou ao Ministério da Saúde. "A folha do hortelã é um eficiente vermífugo para crianças com menos de cinco anos", consta na pesquisa.

Médicos surpresos
O médico gastroenterologista Fabiano Tuma, 48 anos, atende em consultório particular e no Pronto-Socorro municipal de Belém. Formado pela Universidade Estadual do Pará (Uepa), passou recentemente pelo maior conflito profissional que um médico poderia enfrentar. Diabético e hipertenso, recorreu a vários colegas para reduzir os índices de glicose do sangue. Sem encontrar sucesso no tratamento tradicional, Tuma lançou mão da medicina natural. "Fui de encontro a tudo o que aprendi na universidade", reconhece.
Hoje, Tuma se diz curado da diabetes. Para manter baixo o índice de açúcar no sangue, o médico toma um copo de suco verde por dia. Na batida, inclui couve, jambu (uma erva anestésica comum no Pará), repolho e abacaxi. No almoço, come bastante pepino com casca que, segundo ele, é ótimo para as artérias.
Fabiano não chega a ser um radical. Ele diz que combina a medicina alopata coma natural tanto no seu consultório particular quanto na vida pessoal. "Uma inflamação, por exemplo, tem de ser tratada com antibióticos", ressalta.
O médico pernambucano Otávio Lima Assunpção, clínico-geral, também garante que se curou de uma infecção intestinal usando plantas que comprou na feira do Corado, em Manaus, Amazonas. "Identifiquei as ervas num catálogo do museu paraense Emílio Goeldi. Pesquisei seu poder de cura e arrisquei", diz. Formado na Universidade Paulista de Medicina, Otávio conta que jamais receitaria uma erva a uni paciente seu. "Tomei porque estava com diarréia há vários dias e sou alérgico a diversos antibióticos", justiça. (UC)

Receitas esquisitas
Veja como as curandeiras da Amazônia tratam doenças e quais as receitas maiscomuns catalogadas por uma pesquisa científica:
A pesquisa
Os pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi entrevistaram 65 curandeiras espalhadas em várias cidades da Amazônia e identificaram 23 espécies de mamíferos, dez de aves, oito de répteis, oito de peixes e 15 de invertebrados usados nas receitas
Indicação
Doença de pele
No interior da Amazônia, os caboclos deixam uma lesma viva rastejar sobre o próprio corpo para tratar manchas na pele. Segundo a pesquisa do Goeldi, a gosma que o bicho solta é um eficiente remédio.
Banhas
Dezenas de receitas catalogadas pela equipe de pesquisadores contêm banhas de animais para cura de inúmeras doenças. As mais comuns são as de tartaruga, boto, galinha, pato, carneiro, mucura, sucuri, jibóia, tatu e lambedor de cupim.
Tersol
A poção descrita na pesquisa também é bizarra. O doente deve arrancar uma perna de gafanhoto, recolher o líquido espumoso que escorre do inseto e passá-lo sobre o olho inflamado.
Mais receitas
Outras receitas manipuladas pelas bruxas da Amazôna: ovo de urubu cozido para asma, minhoca torrada com azeite de oliva e gergelim para derrame cerebral, e banha de tatu para caxumba. A gordura de caranguejo batida com açúcar no liquidificador e adicionada com algumas gotas de limão. Depois de ingerida vira um remédio para hemorróidas. Para o alcoolismo, soca-se no pilão uma barata branca até ela virar pó.
Impotência sexual
Pega-se o bico de pica-pau, queima-se na brasa e, ao derretê-lo, põe-se o líquido numa xícara Depois, faz-se um chá de uma erva chamada marapuama e derrama-se numa xícara com o bica derretido.A pessoa deve beber só um gole. Com o restante, lavam-se as partes íntimas do corpo. O processo deve ser repetido três vezes ao dia.
Nomenclatura
Algumas doenças no interior da Amazônia recebem nomes que nada têm a ver com a nomenclatura científica. Catarata (doença que causa perda de visão), por exemplo, é chamada no interior do Pará de "neve" ou "bilida" .A asma é apelidada de "puxado" ou peito rachado

CB, 07/09/2004, p. 11

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