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Para não esquecer o passado

O Globo, Rio, p. 6-8
10 de Jul de 2017

Para não esquecer o passado
Cais do Valongo é reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial Cultural

RENAN RODRIGUES
renan.rodrigues@oglobo.com.br

A Unesco tornou o Cais do Valongo, na Gamboa, Patrimônio Mundial Cultural. Com a medida, autoridades brasileiras se comprometem a preservar o lugar, onde dois milhões de escravos vindos da África aportaram no século XIX. Paisagem da cidade já tem o título. O Cais do Valongo conquistou ontem o título de Patrimônio Mundial Cultural concedido pela Unesco. Descoberto em 2011, durante as obras de revitalização da Zona Portuária, o sítio arqueológico é considerado um dos mais importantes testemunhos da diáspora africana localizados fora da África. No passado, a região foi o principal porto de entrada de escravos nas Américas - aproximadamente dois milhões desembarcaram ali entre 1811 e 1843. E, agora, com o reconhecimento internacional, diz Kátia Bogéa, presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o cais equipara-se a lugares como a cidade de Hiroshima, no Japão, e o Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia, classificados como locais de memória e sofrimento.
- Com tantos problemas no Brasil, conseguir dar uma lição na intolerância é emocionante. Existem 11 lugares no mundo reconhecidos como sítios de memória afetiva. Estamos na mesma categoria de Hiroshima e Auschwitz. A importância disso, primeiro, é lembrar que tragédias da Humanidade, como o holocausto e a escravidão, não devem ser esquecidas. Além disso, cerca de 80% do Brasil é composto por pessoas negras e mestiças. Ter um sítio como esse traz reconhecimento e uma nova perspectiva para as lutas de igualdade social e racial - afirmou, ainda emocionada, a presidente do Iphan.
APOIO DE PAÍSES AFRICANOS
A decisão unânime de dar o título ao Valongo foi tomada ontem pelo Comitê do Patrimônio Mundial, formado por 21 nações, numa reunião em Cracóvia, na Polônia. É o segundo título da Unesco conquistado pela cidade: o primeiro foi chancelado em 2012, para a paisagem cultural urbana do Rio. No caso do Valongo, o sítio é composto por vestígios do calçamento de pedras, construído a partir de 1811, para o desembarque dos africanos escravizados trazidos para trabalhar no Brasil. Também há um porto de pedra construído para receber a princesa Tereza Cristina de Bourbon, mulher do Imperador Dom Pedro II, em 1843.
A área corresponde à da atual Praça do Comércio, entre a Avenida Barão de Tefé, a Rua Sacadura Cabral e a lateral do Hospital dos Servidores do Estado. Nas cercanias do porto, existiam ainda armazéns, onde os negros recém-chegados eram expostos para a venda; o Lazareto, local de tratamento dos doentes; e o Cemitério dos Pretos Novos, onde os que morriam logo na chegada eram enterrados.
- O Brasil foi o primeiro país a inscrever um sítio relacionado à escravidão. E esse foi o primeiro a ser reconhecido no mundo ligado à questão da diáspora africana, à escravidão. Todos os países africanos fizeram uma reunião para apoiar (a candidatura) - diz Kátia Bogéa.
Um dos desafios, agora, é a conservação do novo Patrimônio Mundial, uma missão prioritariamente do município do Rio. Com a aprovação da candidatura, no entanto, explica a presidente do Iphan, as três esferas de governo terão que elaborar políticas de preservação do espaço:
- Assumimos um compromisso de que nos responsabilizaremos pela proteção desse sítio. Daí a importância de construirmos o Museu do Valongo, que conte essa história - defende a presidente do Iphan.
Representante da prefeitura do Rio durante a reunião na Polônia, a secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, celebrou o reconhecimento pedindo uma "reflexão para o futuro":
- Todos os brasileiros precisam entender o que significa o Valongo. É uma comemoração dolorosa, mas pode significar uma reflexão para o futuro. Espero que essa celebração sirva para nos unir, e não para dividir.
No Rio, o prefeito Marcelo Crivella também comemorou. "Essa titulação nos impulsiona a repensarmos as memórias dolorosas do passado e colabora para a denúncia permanente de um processo histórico de violação dos direitos humanos. O Rio, neste momento, reafirma o orgulho e as conquistas do povo negro do Brasil", afirmou, em nota.
Apesar do reconhecimento internacional, poucos turistas se aventuraram na região ontem. O mineiro Paulo Lopes, de 33 anos, era um deles. E, enquanto admirava o sítio arqueológico, sugeriu a ocupação da área por grupos de cultura negra:
- Seria bom termos uma melhor orientação sobre a importância deste espaço. E que grupos ligados à cultura negra, como os de capoeira, usassem essa área em dias específicos, atraindo mais cariocas e turistas. As placas informativas não dizem muito. Encontramos vestígios, pedras. Faltam detalhes, informações.
Por ser um lugar pouco conhecido até dos cariocas, o presidente da Riotur, Marcelo Alves, planeja divulgar mais a região nos canais oficiais do órgão municipal.
"TRISTE PROTAGONISMO NA DIÁSPORA"
Antropólogo responsável pela coordenação da elaboração do dossiê apresentado para a obtenção do título, Milton Guran avalia que a decisão da Unesco foi um reconhecimento do "triste protagonismo brasileiro na diáspora africana". Segundo ele, o país recebeu aproximadamente 40% de todos os africanos escravizados que chegaram vivos ao continente americano.
- A força de trabalho do braço negro foi fundamental para que esse país se viabilizasse. O estado brasileiro, ao apresentar a candidatura, assumiu a importância da matriz africana na identidade nacional e na construção deste país como nação. Agora, esperamos que a cidade e o Brasil estejam à altura do desafio que se apresenta. Está embutida na candidatura do Valongo a criação de um museu nacional para recontar essa história e produzir conhecimento que promova a inclusão social e elimine o preconceito - diz ele.
Em um comunicado enviado ao antropólogo logo após o reconhecimento, o chefe da Seção de História e Memória da Unesco, Ali Moussa Iye, afirmou que o Valongo remete à tragédia sobre a qual o Brasil se construiu. "Esse reconhecimento do Comitê do Patrimônio Mundial faz justiça aos milhões de africanos arrancados das suas terras para serem reduzidos à escravidão e obrigados a construir outro continente que não o seu. Ele inscreve na consciência da Humanidade um dos seus maiores sítios de memória. O Cais do Valongo representa, de fato, uma das matrizes do Brasil e remete à tragédia sobre a qual esse grande país se construiu. Esse reconhecimento sem dúvida vai contribuir para o diálogo e para reconstrução", afirma o comunicado.
As escavações do Cais do Valongo, iniciadas em janeiro de 2011, encheram sete contêineres, com milhares de objetos, como dentes de porco, colares e rochas recolhidas no entorno. Entre as raridades, havia uma caixinha de joias, com desenhos de uma caravela e de figuras geométricas na tampa. Dentro dela, foram encontradas 1.700 miçangas com cerca de um milímetro de diâmetro. O material, quase 500 mil peças, permanece sob a guarda da prefeitura, num dos galpões da Gamboa, que deveria abrigar o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana.

Que seja um símbolo na luta contra o racismo'
Para especialista, é a primeira vez que a cultura africana ganha destaque

Além do reconhecimento de uma das maiores tragédias na história da humanidade, o título de Patrimônio Mundial é a chance para que o Cais do Valongo se torne um novo símbolo da luta contra o racismo no Brasil. A opinião é do professor da Uerj Nielson Bezerra. Pesquisador do tema, ele afirma que a escravidão foi responsável pela "desterritorialização de 12 milhões de pessoas" no mundo.
- As pessoas que desembarcaram ali, cerca de dois milhões, tinham sido condenadas à escravidão, eram vítimas do tráfico. Um tráfico que representou a desterritorialização de mais de 12 milhões de pessoas que saíram da África e foram para as Américas entre os séculos XV e XIX. Foi um marco na tragédia humana. Que esse reconhecimento sirva, sobretudo, para que isso não se repita e para que se torne um símbolo da luta contra o racismo - afirma o professor.
O pesquisador ressalta, no entanto, o contexto do reconhecimento internacional. Para ele, o Brasil "demorou muito tempo" para olhar para a sua história:
- É importante pensar o protagonismo africano no Rio de Janeiro e na sociedade brasileira. É a primeira vez que a cultura africana, de uma forma geral, ganha um destaque com tamanha desenvoltura na história do Brasil. Até mesmo o brasileiro que pense que não tem relação com a história da escravidão africana no país está inserido no impacto da diáspora africana.

Prefeitura garante que fará museu na região
Secretária municipal de Cultura diz que empresas mostraram interesse em ser parceiras na construção do espaço

RENAN RODRIGUES
renan.rodrigues@oglobo.com.br

Anunciada em janeiro, a abertura do Museu da Escravidão e da Liberdade - nome ainda provisório - está garantida, afirma Nilcemar Nogueira, secretária municipal de Cultura. Segundo ela, para tirar o projeto do papel, a prefeitura recorrerá a uma Parceria Público-Privada, que será lançada até o fim do ano.
Nilcemar diz que já há parceiros interessados na construção do museu e que pretende debater com a sociedade civil "a narrativa" que será contada no espaço.
- Algumas empresas sinalizaram com a intenção de fazer parceria. Em setembro, teremos seminários com a sociedade para estabelecermos a narrativa (do museu) - destaca a secretária, explicando que o novo espaço não seguirá o padrão de outros centros culturais. - Vale ressaltar que não será um museu nos moldes tradicionais, com a exibição de objetos. Terá efetivamente uma responsabilidade social, como preconiza a nova museologia.
Enquanto o projeto não vira realidade, os cerca de 500 mil itens encontrados nas escavações do Cais do Valongo seguem armazenados num galpão na Gamboa, mas em condições que inspiram preocupação. Como O GLOBO mostrou no fim de junho, os guardas que vigiavam o local foram expulsos por traficantes, e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) enviou uma equipe para inspecionar o lugar.
Além da construção de um museu para expor esse material, a prefeitura promete instalar sinalização especial na região do Cais do Valongo. Atualmente, diz Nilcemar, grande parte da população desconhece o valor do sítio histórico:
- Instalaremos a sinalização em breve. É algo urgente. O carioca desconhece isso (a região e a importância).
Antes mesmo de sair do papel, o museu já foi envolvido em uma polêmica, após pesquisadores criticarem o nome proposto inicialmente para o espaço. Algumas pessoas alegaram que o processo da escravidão, apesar de histórico, afetou a autoestima dos negros.

Frequentadores reclamam da má conservação do 'santuário'
Visitantes encontram lixo e sentem cheiro de urina no sítio histórico

RENAN RODRIGUES
renan.rodrigues@oglobo.com.br

Apesar do título de Patrimônio Mundial Cultural, o Cais do Valongo sofre com a má conservação. Frequentadores reclamam dos sinais de abandono do espaço, que, na opinião deles, carece de ações de preservação como as que ocorrem na vizinha Praça Mauá, adotada pelos cariocas como área de lazer após a Olimpíada do Rio. Ontem, no dia em que o sítio histórico recebeu o reconhecimento internacional da Unesco, entre as ruínas do Valongo era possível observar dezenas de garrafas de vidro quebradas e muito lixo, até na área cercada. Havia ainda um vazamento de água, e cabos de aço que cercam a área restrita ao público estavam quebrados. Outro desafio para quem visitava o local era o cheiro de urina no entorno, ocupado por moradores de rua.
- Vejo este lugar como um santuário. É um museu a céu aberto. Tem que ter gente vigiando e cuidando porque, quando você percebe, já está ocupado por morador de rua. Hoje, não está preservado. Faltam manutenção e limpeza - critica Durval Chagas, de 73 anos, morador da Gamboa. "QUEREM ENTERRAR A CULTURA NEGRA" Também vizinha ao Cais, Carolina Aniceto, de 35 anos, veio de São Paulo para o Rio em 2014. Foi quando ela conheceu a história da Pequena África. Negra e integrante do movimento Afoxé Filhos de Ghandi desde 2015, ela faz coro com quem aponta os problemas da região.
- O fato de terem se mobilizado para promover o Cais do Valongo a patrimônio histórico é louvável. Mas o lugar não está bem conservado - diz Carolina, queixando-se do abandono de espaços ligados à cultura dos negros no Rio: - Todos querem enterrar a cultura negra. Há um descaso muito grande. A Pedra do Sal também está abandonada.
Em nota, a prefeitura do Rio informou que a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (Cdurp) realiza diariamente a limpeza na Zona Portuária, inclusive na área do Cais do Valongo: "No sítio arqueológico, o trabalho inclui capina e drenagem, pois o monumento está abaixo do nível do mar. A confirmação do cais como Patrimônio Mundial é motivo de orgulho para toda a prefeitura".
Em reportagem publicada ontem, O GLOBO mostrou que o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão do município responsável por gerir o sítio reconhecido pela Unesco em 2012, que inclui um grande trecho da orla da Zona Sul, enfrenta um esvaziamento de seu orçamento. O órgão chegou a 2017 com uma dotação inicial de R$ 1,947 milhão, mas, segundo dados do Portal Rio Transparente, a entidade teve seu orçamento atualizado e ficará sem um único centavo este ano. Até agora, de acordo com informações do site da prefeitura, o instituto só gastou R$ 38.997,05, referentes a restos a pagar de exercícios anteriores.
Questionada sobre o orçamento do instituto diante do desafio de preservar o Cais do Valongo, a prefeitura informou, em nota, que o momento é de ajustes no município e, por isso, a dotação orçamentária está sendo revista: "A prioridade do instituto é levar adiante a proteção do acervo arqueológico do Cais do Valongo. No momento, os arqueólogos estão fazendo o levantamento dos, aproximadamente, 500 mil itens encontrados no local. As peças estão na Vila Olímpica da Gamboa".

Falta de verba assombra cemitério
PRETOS NOVOS Espaço onde há cerca de 50 mil ossadas de escravos pode fechar

Aconquista do Cais do Valongo foi muito comemorada por Merced Guimarães, diretora-presidente do Sítio Arqueológico do Cemitério Pretos Novos, que fica na região do Cais do Valongo. Ela lamenta, no entanto, não ter sido feita uma grande festa para marcar a vitória. Afinal, diz ela, a história esteve "escondida por muitos anos":
- Estou muito feliz. Mas acho que a cidade deveria ter feito um evento para comemorar. Esse título é um marco para a história afro-brasileira.
Mas o momento não é só de euforia. Merced tentar superar a falta de apoio para preservar um "tesouro" que surgiu em 1996 sob os seus pés. Durante uma obra em sua casa, na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, foi descoberto um cemitério de escravos, onde, estima-se, estejam 50 mil ossadas. Em 2005, a casa foi aberta ao público numa iniciativa dela e do marido, Petruccio Guimarães, e, desde então, foram mais de 72 mil visitantes. Agora, Merced diz que só tem recursos para manter o espaço até agosto porque a prefeitura cortou os repasses. Procurada, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), que no ano passado transferiu para o cemitério R$ 79 mil, não se manifestou.
- Infelizmente, minha aposentadoria não cobre os custos de água e luz.
O fechamento do cemitério pode suspender o estudo sobre o primeiro esqueleto inteiro encontrado no local há um mês. A ossada é de uma mulher, com cerca de 200 anos, que ganhou o nome de Bakhita. Merced disse que especialistas da Fiorcruz também fazem análises para descobrir a causa da morte. Pode ser que a escrava tenha sido vítima de febre amarela. Os pesquisadores, então, querem saber a diferença entre o vírus daquela época e o que circula hoje no país.

O Globo, 10/07/2017, Rio, p. 6-8

https://oglobo.globo.com/rio/faca-um-passeio-pelo-cais-do-valongo-patri…

https://oglobo.globo.com/rio/cais-do-valongo-ganha-titulo-de-patrimonio…

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