VOLTAR

Para captar a riqueza imaterial

JB, Caderno B, p. B3-B4
02 de Nov de 2005

Para captar a riqueza imaterial
Indígenas como os Karajá e os Xavante apropriam-se de vídeo, livros, CDs, DVDs e internet para preservar sua cultura

Bianca Tinoco

Foi-se o tempo em que a divulgação da cultura indígena se manifestava por meio de eventos em museus e pesquisas antropológicas em sítios distantes. Aldeias e comunidades hoje lançam mão dos recursos típicos da ''sociedade branca'' para preservar e transmitir suas tradições. Assim, vídeos, CDs, DVDs, livros e até a internet se transformaram em suporte concreto para preservar seu patrimônio imaterial de rituais, cantos religiosos e lendas.
Um exemplo é a cultura Karajá-Iny, às margens do Rio Araguaia (TO), que acaba de lançar o CD de cantos Iny. O registro foi concretizado em parceria com o Instituto das Tradições Indígenas (Ideti), ong formada por índígenas e presidida por um deles, o agente cultural Jurandir Siridiwê Xavante.
- Um CD não nos descaracteriza, pelo contrário. O patrimônio indígena é de todo brasileiro. Vindo com consciência, todo desenvolvimento tecnológico é bem-vindo - diz Daniel Coxini Karajá, produtor cultural dos Karajá-Iny.
- As aldeias tiveram a invasão do que é pior, como vícios na alimentação. Chegou a hora de incorporar também o que é bom. Analisando-se no vídeo, eles vêem que precisam ser autênticos, tirar o relógio e a sandália pelo menos para os registros de sua cultura - afirma Angela Pappiani, coordenadora cultural do Ideti.
A gravação do CD foi ao vivo, enquanto os índios realizavam rituais, com captação do som por meio de microfones no corpo dos cantores. Segundo Coxini Karajá, o registro é fundamental, sobretudo para as crianças.
- Recuperamos ritos que não realizávamos há tempos e as crianças agora têm do que se orgulhar, não serão influenciadas pelo preconceito e pela desvalorização. Até esse contato com o Ideti, as pessoas só vinham para nossa aldeia comprovar suas teses de doutorado e depois nos abandonavam, não geravam nada em benefício da comunidade. Agora nos sentimos estimulados - acrescenta Coxini Karajá.
O trabalho de preservação da cultura Karajá-Iny começou em 2001, com o projeto Conhecendo o povo indígena da Ilha do Bananal, do governo de Tocantins. Graças à iniciativa, a aldeia foi retratada em livro, revista e vídeo, junto às demais do Parque Nacional do Araguaia. A parceria com o Ideti começou no mesmo ano e, além do CD, abriu para a comunidade a participação no projeto Rito de passagem, de apresentações para a sociedade não-indígena. O espetáculo, que passou pelo Museu da República pela segunda vez no mês passado, reúne também integrantes das comunidades Guarani (RJ), Nambiquara (MT), Pankararu (PE), Kaxinawá (AC), Xavante (MT), Bororo (MT), Krikati (MA) e Mehinaku (MT), e já representou o Brasil na França e na Alemanha.
- Para as próprias aldeias a iniciativa foi ótima para a integração. Até entrar no projeto, não sabia que os Guarani existiam ainda no Rio e em São Paulo - conta Coxini.
O CD dos Karajá-Iny é o terceiro viabilizado pelo Ideti, que registrou um com os cantos Xavante e outro com os dos povos Pataxó, Krekali e Maxakali, de Minas Gerais. Os Xavante também foram parceiros da instituição em um livro, publicado pela Peirópolis.
- Nossa fonte são as comunidades. Registramos todas as produções em nome deles, pois só os índios têm o direito de explorar comercialmente sua cultura - diz Angela Pappiani.
Videomaker há 15 anos, Caimi Waiassé documentou as apresentações do Ritos de passagem no Museu da República. Ele aprendeu a operar uma câmera observando os antropólogos que registravam os Xavante na reserva de Pimentel Barbosa (município de Água Boa, MT), da qual faz parte.
- O mais difícil foi entender como a imagem podia ser roubada e registrada em filme, e também como os não-indígenas faziam para colocar a imagem dentro de uma caixinha (a televisão). O povo índio é muito observador, aprendemos só de olhar os outros - diz.
Caimi Waiassé foi um dos escolhidos pela liderança de sua aldeia para registrar o cotidiano em detalhes - as técnicas da culinária indígena, o trabalho paciente de caça e pesca, a colheita na agricultura, as festas. Hoje, ele acumula prêmios em festivais internacionais de documentário e é professor de vídeo na aldeia. Seu vídeo mais conhecido é Wapté Mnhono - A iniciação do jovem xavante.
- Em contato com sua história, o povo indígena pode vislumbrar seu futuro. A tecnologia facilita o intercâmbio não só entre as comunidades, mas com os não-indígenas. O brasileiro não conhece sua raiz, corta a árvore no meio para não vê-la - diz Waiassé.
O projeto Vídeo nas aldeias, desdobramento das atividades do Centro de Trabalho Indigenista, promove há 18 anos a utilização das tecnologias não-indígenas como ferramenta para o registro das comunidades. A estratégia é espalhar câmeras pelas populações indígenas para que elas gravem seu dia-a-dia e reformulem sua identidade através do reflexo na TV. Segundo o videomaker Vincent Carelli, coordenador do projeto, a produção de documentários tem sido um poderoso passo nesse processo de autoconhecimento.
- Os documentários são a chance que eles têm de não serem transformados em clichê, como quando viram pauta para as equipes de televisão. Segundo (o crítico de cinema) Jean-Claude Bernardet, a linguagem dos vídeos indígenas é rica e aponta para uma renovação do olhar, mais contemplativa, baseada na ação e não no depoimento. A câmera respeita o tempo dos personagens, acompanha o movimento da expressão. É uma produção artística, sem dúvida - afirma Carelli.
O xavante Divino Tserewahú, na pré-produção de seu sexto documentário, ressalta que foram os habitantes mais antigos da aldeia os que mais se animaram com a preservação das tradições por meios não-indígenas.
- Eles sabem o valor dessa transmissão e incentivam os mais novos a estudar e retornar à aldeia, aproveitar os bons conhecimentos dos não-indígenas sem abandonar nossa cultura - afirma.
É o caso de José de Lima Kaxinawá, que edita atualmente seu primeiro documentário, Xinã-bena, sobre a convivência em sua aldeia. Ele não assistiu a muitos documentários não-indígenas e desenvolveu seu olhar a partir da produção de outros índios.
- O documentário indígena é uma construção de toda a aldeia, não apenas do diretor. Planejamos muito antes de fazer qualquer registro. Todas as imagens são de acordo com a comunidade, com a meta de reativar a cultura que quase perdemos - afirma.
A integração entre as aldeias agora se dá até pela internet, em portais como Índios on Line (http://www.indiosonline.org.br). Mantido pela ONG Thydewá, o site integra sete comunidades indígenas no Nordeste: Kirirí, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe, Tumbalalá (os quatro na Bahia), Xucuru-Kariri (AL), Kariri-Xocó (AL) e Pankararu (PE). Cada uma ganhou uma máquina com acesso à internet e representantes delas participaram de um curso de informática de 14 dias, dentro do projeto Pontos de Cultura do Ministério da Cultura. A iniciativa, entretanto, corre o risco de parar no mês que vem, por falta de pagamento do MinC.

Portal indígena ameaçado
- A verba está contingenciada. Vamos crer em Tupã para que saia logo. A internet tem ajudado muito as comunidades, embora gere desentendimentos, afinal falamos de 5 mil pessoas dos Tupinambá de Olivença e 7 mil pankararu. Mas no final todo mundo se entende - diz Ricardo Pamfilio, responsável pela área de educação da Thydewá.
Por meio da ONG, cinco índios estão fazendo um intercâmbio de três meses na França, e a comunidade Truká (PE) está relançando um livro sobre sua cultura com tradução para o francês. A Thydewá também desenvolve projetos de vídeo e CDs. Aguarda patrocínio para lançar o livro Cantando as culturas indígenas, com registros de cantos e danças sagrados das comunidades. Por enquanto, apenas 50 exemplares foram distribuídos entre as sete aldeias. parceira do projeto do livro e professora do ensino fundamental em Palmeira dos Índios (AL), Tânia Xucuri-Kariri diz que o preconceito contra os suportes não-indígenas acabou:
- Com a própria voz registrada no CD, os índios sentem se que seus rituais e costumes são importantes e se esforçam em recuperá-los. O mundo evoluiu, o índio não pode ficar na fogueirinha. Se a tecnologia serve para registrar o que não pode ser esquecido, é um instrumento de sabedoria.

JB, 02/11/2005, Caderno B, p. B3-B4

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.