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Para ambientalistas, aprovação do marco temporal é retrocesso

Valor Econômico, Especial Meio Ambiente, p. F10
05 de Jun de 2023

Para ambientalistas, aprovação do marco temporal é retrocesso
Direito originário dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas antecede a chegada dos portugueses, afirmam

Por Gustavo Rossetti Viana
Para o Valor, de São Paulo 05/06/2023 05h03

A aprovação na Câmara dos Deputados do projeto de lei do Marco Temporal de demarcação de terras indígenas (projeto de lei 490/07) na semana passada causou apreensão entre povos indígenas e ambientalistas, por limitar a demarcação de áreas e, segundo eles, fragilizar direitos. O texto, que agora será avaliado pelo Senado, estabelece que os povos originários só têm direito a terras ocupadas até a promulgação da Constituição, no dia 5 de outubro de 1988, flexibiliza o uso da área e permite que a União retome terras em caso de alterações de traços culturais.

Ainda prevê contrato de cooperação entre indígenas e não indígenas com fins econômicos, possibilita contato com povos isolados, impede a ampliação de terras indígenas (TI) já existentes e retira a responsabilidade da demarcação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), devolvendo o expediente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Há 764 TIs no Brasil, das quais 164 em estudos. Seus 118,3 milhões de hectares correspondem a 13,9% do território nacional, segundo a Funai.

Para o sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), Márcio Santilli, o texto é inconstitucional. "Se se tornar lei nos termos em que foi aprovado, não haverá mais demarcações e os conflitos não resolvidos ficarão em aberto, com grupos indígenas reduzidos à condição de sem-terra. O risco de vida dos grupos isolados ficará potencializado e o assédio de terceiros às terras e aos seus recursos naturais será generalizado", afirma.

O relator, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), disse que o projeto se apoiou em decisão do Supremo Tribunal Federal e defende que o texto traz segurança jurídica para proprietários rurais, inclusive para os pequenos agricultores. "O país não pode viver num limbo de insegurança", afirmou.

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, disse que vai trabalhar contra o texto. Para a especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, o março é um retrocesso, seja na hipótese de aprovação pelo Congresso, seja na definição pela via judicial. "Negam-se direitos de muitas comunidades indígenas que foram expulsas de seus territórios originais e que não vão conseguir comprovar formalmente seus direitos." Ela observa que a Constituição define critérios para caracterizar terras ocupadas tradicionalmente e não inclui delimitação temporal. "Nem mesmo uma emenda à Constituição poderia incluir restrição nessa perspectiva."

A gerente sênior de Pesquisa do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio), Cristina Leme Lopes, concorda que a aprovação do PL representa um retrocesso. "A Carta Magna reconhece que os indígenas possuem o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas, ou seja, um direito que antecede a chegada dos portugueses. Portanto, uma lei não pode restringir os direitos territoriais, instituídos pela própria constituição."

O professor e coordenador do Observatório de Bioeconomia da FGV, Daniel Vargas, avalia que a aprovação foi importante, mas é preciso aprofundar o debate. "Os indígenas brasileiros são marca única da identidade nacional. Merecem todo apoio e reconhecimento. Hoje, a verdade é que vivem afundados na miséria e no abandono. A solução do problema, contudo, não virá pela via da expansão de terras. O caminho é garantir estrutura (saúde, educação, proteção do Estado), com respeito aos diferentes níveis de socialização", disse.

Lideranças indígenas e parlamentares aliados esperam reverter a decisão no Senado e já se reuniram com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MB), para tentar evitar que, assim como na Câmara, o texto tramite em caráter de urgência, com pouco debate. O Senado é visto como uma Casa mais próxima da pauta ambiental. Pacheco já sinalizou que, antes de colocar o projeto em pauta, vai analisar a constitucionalidade e que respeitará o rito do processo, além de assegurar a participação dos povos indígenas na matéria.

Valor Econômico, 05/06/2023, Especial Meio Ambiente, p. F10

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