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Pajelanças enganosas

JB, Sete Dias, p. A16
Autor: NUNES, Augusto
24 de Abr de 2005

Pajelanças enganosas

As pajelanças da semana passada atingiram o clímax com a montagem, no Palácio do Planalto, de um painel surpreendentemente harmonioso: ternos escuros não combinam com cocares multicoloridos. Só no Dia do índio, que juntou em Brasília, caciques das selvas e das cidades. Ranzinza militante, o velho Raoni topou arríar a borduna famosa para sorrir ao lado de Lula, ministros e pajés da Funai. Todos pareciam felizes.
0 presidente da República acabara de homologar formalmente a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. É uma imensidão de terra: 1,758 milhão de hectares. E uma imensidão de problemas: além de 15 mil índios, a reserva abriga uma cidade (contornada pela demarcação) e plantadores de arroz que cultivam, somadas as propriedades, 100 mil hectares. Parece pouco. É o bastante para levá-los a reagir com declarações de guerra.
A terra que sobra no norte falta às aldeias de Dourados, em Mato Grosso do Sul, cenário do silencioso massacre que vem matando crianças em série e transformando adultos em zumbis. Vítimas da fome e da falta de assistência médica, morreram só neste ano mais de 30 crianças. Nenhuma havia chegado ao fim da primeira infância.
Os adultos tiveram a alma assassinada por invasores brancos. 0 confisco de usos e costumes ancestrais abriu passagem a doenças estranhas, ao alcoolismo, à corrupção. As tribos de Mato Grosso não mereceram do governo as atenções prometidas por Lula a Raoni e seus companheiros. Na nova reserva, a paz enfim reinará.
Lula assegurou que dispõe de poderes e instrumentos para prometer um cotidiano tranqüilo aos habitantes dessas terras conflagradas. Além da rebelião dos arrozeiros, a reserva enfrenta a cobiça de garimpeiro à caça de ouro e diamante. Se pode tanto, por que o governo ainda não conseguiu interromper o extermínio em Dourados?
0 fantasioso discurso de Lula corre o risco de colidir com a realidade. Ao longo da semana marcada por contrastes, confirmou-se uma suspeita perturbadora: cinco séculos depois das primeiras caravelas, também o governo Lula não conseguiu definir diretrizes essenciais à montagem de uma política indigenista consistente . Cada caso é um caso, segere a performance da velha e bisonha Funai, que confere tratamentos distintos a problemas idênticos.
Lula acredita ter resolvido a questão indígena. Não tardará a sentir-se perdido na selva.

JB, 24/04/2005, Sete Dias, p. A16

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