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País planta sementes de superpotência

OESP, Economia, p.B6
Autor: MARGOLIS, Marc
29 de Fev de 2004

País planta sementes de superpotência
Agricultores venceram clima e transformaram o cerrado em um império agrícola

MARC MARGOLIS
Newsweek

LUCAS DO RIO VERDE - Ainda não é meio-dia no Estado do Mato Grosso, mas o sol tropical passa através das nuvens como um ferro escaldante. Este é o extremo oeste do Brasil, vastidão territorial plana, sem traços característicos, na embocadura inferior da Bacia Amazônica. O termômetro se aproxima dos 40oC, mas as cerca de 100 pessoas, reunidas num fervente asfalto fresco, nem parecem notar.
Elas vieram aqui para dar uma olhada na MT-449, a mais nova rodovia brasileira. É apenas um pedaço de macadame alcatroado, mas não diga isso aos moradores de Lucas do Rio Verde, movimentada cidadezinha rural no maior cinturão graneleiro do País. Levar a produção ao mercado costumava ser uma jornada épica, sobre trilhas de terra que se desmanchavam a cada estação chuvosa. Agora, todos agradecem, enquanto um padre esparze água benta no concreto imaculado. "Esta rodovia", diz o prefeito Otaviano Pivetta, com um movimento de mão, "é uma redenção".
O Brasil também pode dizer amém. Lucas do Rio Verde surgiu da poeira há 25 anos, quando o governo despachou legiões de agricultores do superpovoado sul para as regiões remotas e vazias do oeste. Os colonizadores derrubaram o matagal raquítico chamada cerrado e encontraram um solo fraco e ácido. O calor era infernal e a chuva vinha em dilúvios. A malária grassava. Um a um, os agricultores fracassaram, alguns trocando os lotes por apenas uma carona de volta para casa. Mas os poucos que persistiram prosperaram e transformaram o vilarejo modorrento numa próspera cidadezinha rural.
Agora um império de soja se estende de horizonte a horizonte.
É mais do que uma bela vista. Aqui, no cerrado do Mato Grosso, e irradiando-se através dos sertões brasileiros, a fronteira está pontilhada de enormes silos, colheitadeiras computadorizadas e plantações do tamanho de um condado. Com a ajuda de agrônomos inteligentes, tecnologias modernas e das mãos calejadas dos pioneiros em dezenas de cidadezinhas como Lucas, o Brasil se converteu na mais nova superpotência agrícola do mundo. No ano passado, enquanto a economia nacional lutava com dificuldades, os agricultores brasileiros colhiam uma outra safra abundante de culturas de primeira necessidade.
A produção de cereais, por exemplo, atingiu 123 milhões de toneladas - o dobro da quantidade de 10 anos atrás. Enquanto a taxa de desemprego no Brasil atingiu 8% no ano passado, o emprego no campo cresceu de 6,5% a 10% nos Estados de Mato Grosso, Tocantins e Goiás.
Há muito que Brasil é um poderoso produtor de café e açúcar. Mas, agora, os agricultores e os agronegócios do País estendem o alcance global, apoderam-se de parcelas de mercado com novas culturas e ultrapassam a concorrência em produtos agrícolas industrializados como suco de laranja, álcool, tabaco e couros curtidos. Liderado pelos pioneiros do cerrado, em 2002 o Brasil ultrapassou os Estados Unidos como o maior exportador mundial de soja, óleo de soja e farinha de soja. Além disso, o País recentemente se tornou o maior exportador mundial de carne bovina, deixando a Austrália para trás.
Tecnologia - A quantidade é importante, a qualidade também. Os rebanhos de gado do Brasil só se alimentam de grama e farinha de soja - e não de ração feita com partes animais moídas, que alguns especialistas suspeitam ser as responsáveis pela disseminação da doença da vaca louca. O agronegócio agora responde por mais de um quarto do Produto Interno Bruto do país de US$ 600 bilhões e emprega cerca de 20 milhões de pessoas, aproximadamente 37% da força de trabalho total do Brasil.
"O Brasil tem tecnologia, luz solar e uma imensa fronteira vazia", diz Amaryllis Romano, analista agrícola da Tendências, consultora financeira de São Paulo. "O resultado agora é esse crescimento explosivo."
Com a produção agrícola aumentando a quase 6% ao ano, alguns especialistas brasileiros afirmam que o País poderá algum dia superar os Estados Unidos como o maior produtor agrícola mundial. Isso não acontecerá tão cedo. O Brasil ocupa um distante 4.o lugar como exportador agrícola. Mas poucos lugares conseguem igualar a produtividade do País. Diferentemente da Índia e China, onde a agricultura familiar de baixa tecnologia e mão-de-obra intensiva é ainda generalizada, o Brasil emprega tecnologia de ponta e métodos modernos, especialmente no plantio direto - semeando campos sem revolver a terra, para evitar a erosão do solo. E mais: o Brasil tem muita terra virgem ainda para cultivar - cerca de 80 milhões de hectares (cerca de 197 milhões de acres), área do tamanho de Grã-Bretanha e da França juntas.
Os agricultores brasileiros dizem que a única coisa que pode atrapalhar a transformação do País em superpotência agrícola é o protecionismo - a cerca de arame farpado de tarifas, burocracia, restrições sanitárias e subsídios que circundam Estados Unidos e Europa. Não é de admirar que, ultimamente, os diplomatas do Brasil estejam participando das negociações comerciais com um ar de caubói. "A agricultura sempre foi tabu nas grandes conferências de cúpula comerciais", diz Marcos Sawaya Jank, analista de comércio agrícola que mantém contatos estreitos com Brasília. "O Brasil quer mudar as regras."
De fato, uma grande batalha em relação aos alimentos já começou. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez da liberalização do comércio agrícola um objetivo do governo dele e do G-20, grupo de países em desenvolvimento que contesta os subsídios agrícolas do mundo rico. Os negociadores comerciais brasileiros criticaram a União Européia na Organização Mundial do Comércio (OMC) por causa dos subsídios aos exportadores de açúcar e protocolou queixa contra os EUA por elevar às alturas as sobretaxas sobre algodão importado. Não é por acaso que dois dos assessores de maior confiança de Lula são o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ele próprio um fazendeiro, e o ministro do Comércio e Desenvolvimento, Luiz Furlan, dono de uma das maiores empresas de empacotamento de carne do continente, a Sadia.
Adaptações - Nem sempre o Brasil foi tão ambicioso. Nos primeiros quatro séculos depois da chegada dos exploradores portugueses, o País viveu de costas para o sertão. A sede de riquezas levou as pessoas a explorar o País para o oeste e ao norte, até a floresta tropical da Amazônia. Mas foi o cerrado - o vasto trecho de savana, vegetação cerrada e baixa na região oeste do Brasil - que chamou a atenção deles e que se converteria no celeiro do Novo Mundo.
Embora o Brasil seja abençoado com um bom clima, as altas temperaturas podem, também, ser uma praga, cozinhando lavouras e espalhando todo o tipo de doenças de plantas. Foram precisos três séculos de tentativa e erro, mas agricultores, cientistas e empreendedores derrotaram a natureza. Boa parte do mérito deve ser atribuído à Embrapa, o instituto de pesquisa agrícola e de pecuária do governo, onde experimentos meticulosos com genética das plantas e controle orgânico das pestes empurraram a fronteira agrícola até o equador.
Uma das primeiras estratégias do instituto foi adaptar a soja, uma cultura de clima temperado originária da China, para os trópicos. Com as novas sementes de soja tropicalizadas, o Brasil transformou o escaldante cerrado num jardim, cultivando duas lavouras de soja por ano, mais safra intermediária de milho, contra uma única lavoura dos produtores do Hemisfério Norte. Tal sucesso transformou a Embrapa num tipo de oráculo para as nações em desenvolvimento, que abrigam dois terços da população mundial e três quartos dos famintos. Dificilmente se passa uma semana sem que autoridades da Ásia, África e América Central entrem em contato com o instituto em busca de consulta, sementes e tecnologia agrícola - uma crescente exportação brasileira.
A Embrapa tem feito muito com pouco dinheiro. Como órgão do governo, é atrapalhada pela crônica escassez orçamentária de Brasília. Os telefones freqüentemente não funcionam e pesquisadores mal pagos têm de poupar e implorar por recursos para pesquisa de campo. O especialista em gado da Embrapa, Judson Valentim ensinou uma geração de criadores de gado da bacia ocidental do Amazonas a triplicar rebanhos sem cortar um único acre adicional da floresta tropical - sem recursos. "Sempre que há uma crise econômica, a pesquisa agrícola sofre", lamenta Valentim.
Na década de 1980, Brasília acabou com o programa de subsídios agrícolas e abriu o País para a competição mundial. De repente, agricultores, boiadeiros e agroindústrias estavam por contra própria. Felizmente, nessa época, veio uma sólida década de investimento público em tecnologia agrícola. Grandes investidores privados como a Cargill, Bunge e o magnata da soja brasileiro, Blairo Maggi (agora governador do Mato Grosso) também contribuíram.
À medida que a generosidade do governo evaporava, os investidores do setor privado investiam pesadamente no processamento de alimentos, transporte e infra-estrutura. Essa combinação ajudou a converter o Brasil numa das economias agrícolas mais competitivas do mundo. "A agricultura conseguiu absorver a tecnologia e os investimentos de uma forma que outros setores não conseguiram", disse o ministro das Finanças brasileiro, Antonio Palocci.
"Este é um modelo para o resto da economia."
Apesar da moderna vitalidade, o área rural brasileira não é uma paisagem imaculada. Entre os silos lustrosos e tratores refrigerados a ar, há extrema pobreza e crueldade descarada. Brasília calcula que cerca de 180 mil trabalhadores rurais sejam tratados de forma considerada desumana em fazendas em todo o Brasil. Mas essa não é a norma geral. Onde foram estabelecidos métodos de cultivo moderno, a mão-de-obra foi ficando cada vez mais especializada e os trabalhadores, mais bem pagos. Enquanto a renda per capita do brasileiro tem se mantido fixa por mais de um ano, os salários rurais subiram 6,9% no ano passado.
Ironicamente, o sucesso agrícola do Brasil vem, em grande parte, sem culturas geneticamente modificadas. Lotes de cultura transgênica comerciais são tecnicamente proibidos - embora dezenas de fazendeiros os cultivem em todos os lugares do Brasil. Uma enorme rixa entre ambientalistas, fazendeiros e grandes agronegócios divide as opiniões e o governo optou por manter a proibição em vigor sobre a plantação de transgênicos, mas permitiu aos agricultores que vendessem as colheitas clandestinas, ao menos até que um comitê de especialistas decidam se os transgênicos são danosos à saúde e ao ambiente.
Neste ínterim, silenciosamente, os agrônomos brasileiros desenvolvem culturas transgênicas experimentais, do algodão ao mamão papaia, que irão produzir espécies de alimentos e produtos agrícolas resistentes a doenças, que poderão impulsionar substancialmente as exportações - se o protecionismo agrícola e a resistências aos alimentos transgênicos na Europa algum dia diminuir.

OESP, 29/02/2004, p. B6

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