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Padre amazonense é refém dos índios em Roraima

A Crítica, Cidades, p. C1-C2
07 de Jan de 2004

Padre amazonense é refém dos índios em Roraima

Gerson Severo Dantas

Sete estudantes e um padre, todos de Manaus, viveram ontem horas de terror na missão católica São José de Surimu, em Vila Pereira, município de Pacaraima, em Roraima. Eles foram feitos reféns por 200 índios macuxis, da aldeia Contão, no mais radical protesto contra a homologação da terra indígena: Raposa/Serra do Sol, anunciada pelo ministro da justiça Mareio Thomaz Bastos para os próximos dias, Além do ataque à missão, índios Macuxis, Uapixanas e Ingaricós fecharam as entra ,das e, saídas terrestres dos municípios de Boa Vista, Uiramutã 'e Pacaraima, numa ação coordenada que deixou, segundo relatos extra-oficiais,,vários turistas manauenses que iam de ônibus para o balneário venezuelano de Margarita parados no meio do caminho.
Para completar o protesto, eles ainda invadiram a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Boa Vista e tentaram manter a advogada do órgão, Ana Paula Souto Maior, prisioneira ,em um prédio vizinho.
Em São José do Surimu, além do padre Ronildo de França, que é manauense e se ordenou na igreja de Santa Luzia, no bairro de mesmo nome, Zona Sul de Manaus, também foram feitos reféns o padre colombiano César Avellaneda, missionário que chefiava o grupo de estudantes, e o irmão franciscano espanhol João Carlos Martinez. Até o fechamento desta edição, os três ainda eram mantidos reféns em Contão.
O tuxaua dos macuxis de Contão, Genival Costa da Silva, disse que a. ação de ontem foi um protesto contra a homologação das terras, cuja área total é de 1,67 milhão de hectares, que causará a expulsão dos habitantes e o fechamento dos municípios de Uiramutã e Pacaraima, cada um com 7 mil habitantes. Ele disse que o protesto em Surimu foi pacífico e que o prejuízo material causado na missão foi necessário para poder tirar os padres, que só serão libertados quando o presidente Lula ou o ministro Mareio Thomaz Bastos forem a Contão para ouvir o outro lado. "Até agora eles só ouviram a Funai, a igreja católica
76 organizações não-governamentais a maioria comandada por estrangeiros, que querem tomar nossas riquezas e trazer- para "esta região uma guerra entre os irmãos indígenas", diz Genival, que garantiu não. ter o grupo dele tocado ou maltratado os estudantes de Manaus. "Não queremos nada com eles. Eles ficaram lá e pelo que sei estão bem", disse Genival, líder de quase mil índios de Contão.
Tensão
Os estudantes de Manaus descreveram como tendo sido de horror e medo as cinco horas em que permaneceram reféns dos macuxis de Cantão. 0 grupo é formado por estudantes de 18 a 25 anos, integrantes de um clube de jovens da paróquia de Santa Luzia. Eles planejaram a viagem durante dois anos para conhecer o trabalho missionário dos padres do Instituto Consolata, que tem sede em Manaus. 0 grupo é formado pelos estudantes Anderson Vasconcelos, 18, Gleidson Lopes, 25, Andreza Araújo Resende, 21, Gilberto Rodrigues, 21, Nárilete Silva, 24, Dulcinéia Souza, 21, e Maik Anderson, 20.
A ação dos macuxis em Surimu, comunidade distante 30 quilômetros de Contão, começou às 3h e encerrou por volta de 8h, quando os dois padres e o irmão foram levados para Contão, onde, conforme eles próprios, foram bem tratados. 'Não temos medo deles, que são pacíficos e estão fazendo isso para defender interesses de rizicultores (plantadores de arroz)", disse João Carlos Martinez.
Andreza Resende,, a responsável pelo grupo após a saída do padre Cesar, disse que as mulheres foram as que mais sofreram durante a ocupação da missão. Ela, Narilete, Dulcinéia e mais uma moça da própria missão estavam dormindo quando foram surpreendidas por batidas e gritos na porta do dormitório feminino. Com medo, todas se esconderam no banheiro, mas os macuxis arrombaram as portas, ordenaram que saíssem e ficassem calmas, pois eles só queriam os padres estrangeiros. "Eles tinham uma fixação nesta coisa do padre estrangeiro. Só perguntavam por isso", conta Andreza. A situação delas ficou pior quando após informarem que não havia padre estrangeiro no lugar, os macuxis descobriram o padre Cesar e o irmão João Martinez. "Eles voltaram e ficaram nos chamando de mentirosas de uma forma ríspida", disse Andreza, que classificou a situação de aterradora. (GSD)
Estradas fechadas
Aproveitando que foi levado para junto das mulheres para servir de prova de que elas estavam mentindo, Cesar Avelianeda orientou-as para que ficassem unidas e caladas para não provocar a ira dos macuxis invasores. 0 padre Ronildo quase escapava dos macuxis, mas foi pego de manhã cedo, quando ainda teve tempo de novamente orientar os estudantes manauenses a se manterem unidos, rezando e esperando pelos padres que seriam enviados de Boa Vista, o que dificilmente acontecerá nos próximos dias devido ao fechamento ` das estradas federais BR-174 e 401 e diversas estradas estaduais.
Os manauenses denunciaram que além da agressão psicológica eles ainda foram assaltados por alguns macuxis que ficaram bebados após o tuxaua Genival ter deixado a missão. "Levaram tudo, até o que não precisavam, como meu celular e uma câmara fotográfica que registrou nossa viagem", disse, Gleidson Lopes, estudante do curso de pedagogia das Faculdades Objetivo. Sem dinheiro, Gleidson disse que a volta a Manaus ficará mais difícil, uma vez que toda a verba quê tinham havia sido conseguida em patrocínios conseguidos com empresas de Manaus. '
Genival Costa nega que os macuxis de Contão tenham roubado qualquer coisa dos manauenses e diz que a bebida espalhada pela missão era dos próprios padres e não dos seus liderados. "Só quebramos algumas portas porque tinhamos a determinação de capturar esses padres, que ficam incitando a guerra contra os não-índios aqui de Uiramutã e Pacaraima".
Narilete disse que ficou muito assustada com a ação dós índios, mas que gostaria de informar aos familiares dos estudantes que a situação já estava controlada. Já Dulcinéia disse que o mais impressionante foi, a ferocidade dos invasores, que estavam armados e pintados para a guerra. Ela contou que estava dormindo um sono profundo e demorou para perceber o risco que correu. "Quando despertei fui logo correndo para o banheiro temendo pelo pior", disse.
0 conflito serviu, conforme Gilberto Rodrigues, morador do bairro do Jorge Teixeira, Zona Leste, para mostrar a verdadeira importância do trabalho dos missionários, objetivo da excursão organizada em Santa Luzia. 'viemos aprender como eles trabalham e vimos os perigos que eles enfrentam', disse.
Em Contão, comunidade dos macuxis contrários à homologação da reserva Raposa/Serra do Sol, os três religiosos disseram que esperam uma longa negociação comandada por Funai, Polícia Federal e Ministério Público. "Estamos bem, privados da liberdade, mas acreditamos que tudo vá acabar bem", disse o padre amazonense Ronildo. Até o fechamento desta edição as três instituições ainda organizavam a melhor maneira de encarar o problema criado em várias partes do Estado de Roraima pelos índios contrários a homologação. (GSD)

Confronto entre irmãos
Demarcação da reserva Raposa Serra do Sol está dividindo a opinião dos índios da mesma etnia em Roraima

A homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol, uma área de 1,67 milhão de , hectares do Estado de Roraima que se estende da aldeia macuxi ' de Raposa, no município de Normandia, até a Serra do Sol, na fronteira do Brasil com a Venezuela, no município roraimense de Pacaraima promete abrir uma guerra fratricida entre 15 mil índios de mesma etnia e opor em uma nova parte do País produtores rurais e garimpeiros á Fundação Nacional do índio (Funai), organizações não-governamentais e a igreja Católica.
O round mais dramático desta luta entre irmãos indígenas aconteceu ontem quando aproximadamente 200 índios fizeram três religiosos de reféns na missão católica de São José do Surimu e simultaneamente, outros 200 índios, às 8h, invadiram a sede da Fundação Nacional do índio (Funai), em Boa Vista. Estes índios não aceitam a homologação, anunciada pelo Ministro da justiça Marcio Thomaz Bastos, nos moldes do decreto que está na mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Da forma como está previsto pelo Ministério da justiça, a reserva será de uso exclusivo dos indígenas e nenhum não-índio poderá entrar nela. Essa decisão, conforme os críticos, envolve a retirada de aproximadamente 15 mil habitantes dos municípios de Uiramutà e Pacaraima. Eles terão que abandonar suas casas, pelas quais receberão indenização, e deixar para trás uma infra-estrutura composta por escolas, hospitais, usinas de luz e sistema de comunicação montado por Estado e municípios desde o início da existência deles.
Eles defendem a homologação, mas não em terras continuas, com espaços abertos para a existência dos municípios com perímetros urbanos determinados e também com a garantia da permanência dos rizicultores (plantadores de arroz).
Tuxaua da comunidade macuxi de Santa Creuza, a 35 quilômetros de Uiramutã, Pedro Celso da Silva, 52, garante que a convivência entre índios e não-índios na região é muito boa e até benéfica para os indígenas, uma vez que existe um comércio muito forte na sede dos municípios, onde eles, podem vender os produtos deles e comprar outros, como, por exemplo, eletrodomésticos.

Prédio da Funai foi tomado pelos índios

A ocupação do prédio da Funai em Boa Vista começou às 8h, quando os funcionários do órgão já estavam alertas para o fato. Conforme a advogada da Funai, Ana Paula Souto Maior, que quase foi feita refém num prédio vizinho, desde a madrugada o clima de tensão era visível na cidade. Ela conta lado do administrador interino da Funai, Manoel Reginaldo Tavares, esteve na sede da Polícia Federal para comunicar a invasão da missão e a tomada dos padres Ronildo de França, César Avellaneda e o irmão franciscano João Carlos Martinez por reféns.
Ao chegar ao prédio, que fica localizado numa das principais avenidas de Boa Vista, ela diz ter percebido a movimentação de veículos e o semblante carregado de alguns índios que se aproximaram. Ultima a sair do local, Ana Paula se escondeu em um escritório e foi cercada por quatro indígenas. Ela teve de pedir auxilio da Polícia Militar para deixar o escritório, quase uma hora depois.
Ana Paula Souto Maior denunciou que o movimento de ontem em todo o Estado de Roraima foi financiado pelos rizicultores (plantadores de arroz), que terão de se retirar das terras que passarão a ser de uso exclusivo dos índios. "Eles estão aqui comandados pelo senhor Paulo Cezar Quartieiro, que desde cedo está rondando o prédio com automóveis e ônibus", disse.
Conforme a advogada, a homologação da reserva Raposa/Serra do, Sol pelo presidente Lula é um ato meramente formal uma vez que desde 1998 ela já é reconhecida como sendo terra indígena por Portaria assinada pelo então Ministro da justiça, Renan Calheiros.
Ana Paula rebate as críticas feitas pelos índios contrários a homologação de que a Funai não tem condições de alavancar o desenvolvimento deles. "Essa será a 33a área indígena de Roraima e em todas a Funai está presente e auxiliando os índios", diz. (GSD)

Homologação interessa poucos

Liderando um grupo de macuxis que invadiram a sede da Funai, Pedro Silva denuncia que a homologação da forma como estabelece o MJ atende apenas aos interesses de. uns poucos índios manipulados por religiosos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à igreja Católica, e de estrangeiros que comandam 76 organizações não-governamentais. "Queremos uma homologação justa e não essa que vai beneficiar gente que não é brasileira e está de olho na nossa riqueza", disse.
Os índios que se revoltaram ontem dizem que sem a infra-estrutura montada pelo Estado de Roraima os produtores e eles não têm como sobreviver, pois a Funai não garante condições para o desenvolvimento das comunidades.
Determinado a enfrentar qualquer coisa para se manter no prédio da Funai em Boa Vista até que a decisão de homologar a reserva em área continuada seja revista, o índio amazonense Humberto '
Teixeira dos Santos, casado com uma macuxi e indicado tuxaua da comunidade dele, defende o mesmo argumento do tuxaua de Santa Creuza e avisa que os guerreiros dele só vão sair do local quando, pelo menos, o presidente da Funai for a Boa Vista dialogar com os descontentes. "Aceitamos a reserva com os municípios e os agricultores", disse. (GSD)

Objetivo é preservar a cultura

Estudantes na missão São José do Surumu, os índios Bleide Ribeiro Souza, da aldeia Aningal, e José Carlos Oliveira Ferreira, de Mutamba, defenderam a homologação como a única forma de garantira sobrevivência dos indígenas de Roraima. Bleide disse que a demarcação em área continuada (sem "ilhas" onde os não-índios possam viver) é necessana para evitara contaminação por vícios comuns em pessoas que vivem na cidade. Ele cita como exemplo o caso do alcoolismo, introduzido entre os índios pelo não-índios. 0 tuxaua Melquiades Peres Neto, 53, diz que é a influência dos "brancos" que está colocando índios da mesma etnia em pé de guerra. "Eles estão saqueando nossas comunidades e corrompendo os irmãos com bebida alcoólica. São políticos e rizicultores que estão comandando este movimento", disse Melquiades, que ontem levou os guerreiros da comunidade dele para proteger a missão em Surumu. "Está é aprova de,que o nosso povo está sendo dividido", diz ao responder o porque da divisão entre os macuxis de sua aldeia e os da comunidade Contão, que seqüestrou religiosos-em Surimu.
Tuxaua da comunidade Mapixana de São Miguel, em Pacaraima, Walter de 'Oliveira Level, 35, diz que é a favor da homologação em terras continuadas para acabar com a incitação à guerra feita pelos rizicultoes e, principalmente, políticos que estão financiando uma série de organizações indígenas de fachadas. "Vejo nisso tudo mais uma agressão aos povos indígenas da Amazônia", diz. (GSD)

A Crítica, 07/01/2004, Cidades, p. C1-C2

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