VOLTAR

Os povos indígenas e o projeto da hidroelétrica de Belo Monte

Associação Brasileira de Antropologia - http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=4256&eid
Autor: João Pacheco de Oliveira
31 de Out de 2009

OS POVOS INDÍGENAS E O PROJETO DA HIDROELÉTRICA DE BELO MONTE

A Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) vem a público expressar a sua profunda preocupação
quanto à forma precipitada com vem sendo conduzidas as discussões e
encaminhamentos oficiais sobre a projetada hidroelétrica de Belo Monte,
inclusive contrariando estudos técnicos e procedimentos legais estabelecidos.

Uma comissão de estudiosos e especialistas de diferentes formações, após
realizar estudos de campo minuciosos, questionou seriamente o projeto,
chegando à conclusão de que os impactos sobre os povos indígenas da região não se limitariam de maneira alguma a chamada "área diretamente afetada", mas
poderiam atingir negativamente os recursos ambientais e as condições de vida
e bem estar de outras terras indígenas, situadas fora daquela faixa estrita. Nas
terras indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande/Maia, Juruna Km17,
Apyterewa, Araweté, Koatinemo, Kararaô, Arara, Cachoeira Seca e
Trincheira Bacajá habitam diversas coletividades cujos modos de vida e
culturas poderão receber impactos negativos, sem mencionar indígenas que
estão nas cidades e os índios isolados. Mais grave ainda que até o presente
momento sequer tais impactos estão adequadamente dimensionados (vide
documento elaborado por Painel de Especialistas, com o apoio da Fundação
Viver, Produzir e Preservar (FVPP) de Altamira, do Instituto Sócio Ambiental
(ISA), da International Rivers, do WWF, da FASE e da Rede de Justiça
Ambiental, disponível em:
www.internationalrivers.org/files/Resumo%20Executivo%20Painel%20de%Espec
ialistas out2009.pdf).

Os estudos técnicos conduzidos por especialistas da própria FUNAI
resultaram em um parecer (vide Parecer Técnico no 21 - Análise do Componente
Indígena dos Estudos de Impacto Ambiental, de 30 de setembro de 2009,
disponível em:
http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/BeloMonteFUNAI.pdf)
que atrela a viabilidade da obra ao cumprimento, entre outros, de três
condicionantes básicos: (1) que se defina uma vazão mínima ("hidrograma
ecológico") que garanta a sobrevivência dos peixes e quelônios e a
navegabilidade das embarcações dos povos indígenas que ali vivem; (2) que
sejam apresentados estudos sobre os impactos previstos no Rio Bacajá, na beira
do qual vive o povo Xikrin, que possivelmente sofrerá graves alterações (a
serem melhor analisadas); e (3) que sejam estabelecidas garantias efetivas de
que os impactos decorrentes da pressão antrópica sobre as terras indígenas
serão devidamente controlados.

Segundo o EIA serão atraídos para a região pelo menos 96.000 pessoas, o
que agravará a pressão sobre os recursos naturais das Terras Indígenas (TIs) -
que já é critica na região por conta de outras obras previstas, como a
pavimentação da Transamazônica BR-163 e a construção da linha de
transmissão de Tucuruí a Jurupari. O aumento populacional que o
empreendimento trará afetará também as comunidades indígenas porque vai
incentivar um consequente aumento da pesca e caça ilegal, da exploração
madeireira e garimpeira, de invasão às TIs e de transmissão de doenças.

A FUNAI, supostamente baseada nestes argumentos, através de um
sumário ofício de 13 linhas, datado de 14/10/2009 e dirigido ao presidente do
IBAMA, assinado estranhamente (em matéria de tal importância) pelo seu
presidente-substituto, emitiu um parecer favorável à viabilidade do projeto
(Disponível em: http://www.amazonia.org.br/arquivos/332621.pdf). Sem a
necessária integração de órgãos e políticas públicas, onde caberia a FUNAI
assumir uma função ativa de coordenar, fiscalizar e normatizar, e não apenas
de encaminhar informações técnicas, a pretendida execução do projeto correria
o risco de não mitigar os efeitos lesivos do empreendimento e não fazer cumprir
as necessárias condições de salvaguarda dos interesses indígenas. Tal
posicionamento, ao abrir mão de sua prerrogativa enquanto agência
indigenista oficial, parece tornar secundárias e quase inócuas as ressalvas
constantes no Parecer Técnico (em anexo) quanto à insuficiência de estudos
sobre os impactos da obra nas terras indígenas, bem como junto aos índios
isolados e também sobre os residentes em Altamira. Pior ainda é que,
contrariamente ao citado Parecer, que agrega diversos anexos com demandas
indígenas por esclarecimentos e alterações no projeto, recomendando
explicitamente a oitiva das comunidades indígenas, o oficio 302/FUNAI
considera que já foram cumpridos os dispositivos necessários no tocante a tais
oitivas.

Devemos aqui sublinhar dois pontos essenciais desta questão. Primeiro, é
fundamental observar que os encaminhamentos e decisões relativas à UHE de
Belo Monte estão descumprindo uma disposição legal, a Convenção 169,
amplamente acatada no plano internacional e incorporada pela legislação
brasileira - a de que as populações afetadas sejam adequadamente informadas
sobre o empreendimento e todas as suas conseqüências, exigindo-se que sejam
antecipadamente consultadas e segundo procedimentos legítimos e probos.
Uma manifestação do cacique Raoni em 14/10/2009 evidencia que o
imprescindível diálogo e interlocução sobre o assunto é ainda bastante
insuficiente, pois esta liderança exige a presença de autoridades para informar
e discutir o projeto. Em caso contrário, ele adverte, os Kayapó irão proceder ao
fechamento do serviço de balsas para travessia do rio Xingu, com a interrupção
do trânsito na MT-322 (antiga BR-80), entre os municípios de Matupé e São José
do Xingu (MT). Em 26/10 foi divulgada uma manifestação de repúdio das
lideranças Kayapó ao posicionamento da FUNAI, rechaçando o projeto e
convocando para a realização de uma grande assembléia nas cabeceiras do rio
Xingu. Em nota datada de 01/11/2009 lideranças Kayapó, Xavante e de povos
do Parque do Xingu reafirmam a sua não aceitação da construção da
hidroelétrica de Belo Monte e comunicam a paralisação das balsas para
travessia do rio Xingu (Carta de Matudjo Metuktire, disponível em:
www.fvpp.org.br).

A compreensível resistência dos povos indígenas, que foram até agora
desconsiderados enquanto parte do planejamento e do processo decisório,
poderá deflagrar conflitos de grande monta, onde a vida dos próprios indígenas
e de funcionários governamentais estarão em risco, bem como o patrimônio e a
segurança de terceiros poderão ser também duramente atingidos. Novas
campanhas difamatórias contra os direitos indígenas virão alimentar-se de
acontecimentos deploráveis que resultam do açodamento, omissão e
descumprimento das normas legais cabíveis.

Segundo, a conceituação de "área de impacto" não pode restringir-se ao
seu componente técnico, ignorando as variáveis socioculturais. A definição de
uma área de "impactos diretos", feita exclusivamente por engenheiros e
especialistas mobilizados por instituições interessadas no empreendimento, não
pode de maneira alguma substituir uma avaliação isenta, de natureza
sociológica e antropológica, das conseqüências que o projeto trará para as
populações que habitam na região, e não apenas em uma faixa restrita dela. O
que exige investigações circunstanciadas sobre as condições ambientais e
socioculturais, presentes e futuras, que afetam o bem estar e o destino das
populações estabelecidas na região.

Cabe alertar a opinião pública e as autoridades máximas do governo
brasileiro para a precipitação com que tem sido conduzida a aprovação do
projeto, dentro de uma estratégia equivoca e sem atenção aos dispositivos
legais. A prosseguir assim se estará configurando uma situação social explosiva
e de difícil controle, o empreendimento podendo acarretar consequências
ecológicas e culturais nefastas e irreversíveis.

Rio de Janeiro, 01 de novembro de 2009.

Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira

Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas (CAI)
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.