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Os mistérios do povo da praia

O Globo, Ciência, p. 34
11 de Nov de 2011

Os mistérios do povo da praia
Pesquisa sobre ocupações do litoral, há 8 mil anos, quer descobrir economia do grupo

Renato Grandelle
renato.grandelle@oglobo.com.br

Lar dos primeiros habitantes conhecidos da costa brasileira, os sambaquis são tema de um novo projeto da Universidade de York, na Inglaterra, financiado pela Comunidade Europeia. O Corebras, como foi chamado o programa, pretende responder dúvidas que sobreviveram a décadas de pesquisas desenvolvidas por aqui. Dos amontoados de conchas e artefatos dispersos pelo litoral - e abandonados há pelo menos 1.500 anos -, ainda seria possível concluir que área ocupava cada comunidade, como era a dieta de seus moradores e qual utilidade davam a suas famosas cerâmicas.
Ainda na fase de coleta de material, o Corebras divulgará resultados prévios em meados do ano que vem. Seus pesquisadores esperam encerrar as atividades meses depois. A aposta do programa são análises isotópicas e biomoleculares de restos humanos, distribuídos pelos sítios arqueológicos.
Os isótopos do carbono e nitrogênio no colágeno humano - cuja origem é basicamente nossa alimentação - permitirão rastrear se a principal fonte de proteínas era marinha ou terrestre. A população dos sambaquis, já se sabe, ignorava a agricultura e dependia basicamente do que caçava e coletava.
- Os estudos dos restos humanos de Santa Catarina, Rio, São Paulo e Maranhão ajudarão a compreender como estes grupos, em termos de dieta, respondiam às diferentes condições ecológicas e climáticas - explica o brasileiro André Carlo Colonese, pesquisador "Marie Curie"
(Comunidade Europeia), do BioArCh Group, da Universidade de York.
Radicado na Europa há 15 anos, Colonese é um dos estudiosos que faz o itinerário entre Santa Catarina (onde há os maiores sambaquis conhecidos, alguns com mais de 30 metros) ao Maranhão, passando por aqueles onde se realizavam as manifestações funerárias mais complexas - Rio e São Paulo.
No caminho, além de ossos e que tais, a equipe colecionou acordos com instituições brasileiras. O Museu de Arqueologia e Etnologia e os institutos de Geociências e Biociências - todos da USP -, o Museu Nacional do Rio (UFRJ), a Fiocruz e o Núcleo de Pesquisas em Educação Patrimonial, da Unisul, forneceram dados cronológicos detalhados dos sambaquis aos europeus.
A partir da linha temporal que está sendo construída, estima-se que os primeiros amontoados de conchas surgiram 8 mil anos atrás. Não é a mais antiga ocupação humana das Américas, mas é onde foram encontradas as primeiras cerâmicas do continente. Os sambaquis ainda eram usados como casas e urnas funerárias até 1.500 ou 2 mil anos atrás.
Ainda não é possível estimar qual era o tamanho de cada comunidade.
Mas, segundo os pesquisadores europeus, muitas seriam populosas - algo surpreendente para uma sociedade que dependia da caça, pesca e coleta, fontes instáveis.
- Estima-se que, em um único sítio na região de Laguna (SC), foram sepultados mais de 40 mil indivíduos durante 800 anos - destaca Colonese. - São esses dados funerários, somados à distribuição dos sítios e ao seu tempo de ocupação, que sugerem uma densidade demográfica alta.
Os isótopos de estrôncio, de acordo com o pesquisador, avaliariam qual era a mobilidade desses grupos. Aliados a outros estudos, seria possível entender quais comunidades de regiões diferentes se relacionaram.
Há evidências de que um grupo de caçadores, por exemplo, teria viajado do Rio ao Uruguai. Esta hipótese, porém, ainda carece de comprovação. A diversidade dos rituais denuncia grupos diferentes; hábitos semelhantes, por sua vez, são um flagrante de que duas comunidades tiveram ao menos alguns contatos - ou até se misturaram completamente.
- Existem afinidades e divergências entre populações de diferentes áreas do litoral brasileiro - ressalta Colonese. - Alguns tipos de artefato e práticas culturais são presentes em áreas muito distantes, o que sugere uma afinidade cultural. Há estátuas associadas a sambaquis encontradas em Iguape, São Paulo, e em zonas do Uruguai. Portanto, a informação circulava por estes grupos, mas ainda não é claro de que modo.
Embora não seja a ocupação mais antiga das Américas, é dos sambaquis que vieram os primeiros restos de cerâmica conhecidos do continente. Não se sabe ainda a função desses instrumentos em um sistema de caça e coleta. Um estudo concluído no mês passado na Europa com vasos de cerâmica provou que, 4 mil anos atrás, a difusão da agricultura não ameaçou a popularidade da pesca. Foi possível chegar a esta conclusão graças a uma forma de carbono, encontrada apenas em organismos marinhos, presente naqueles recipientes.
O auge da sociedade dos sambaquis foi entre 4 mil e 2 mil anos atrás; os 500 anos seguintes ainda são pouco conhecidos. Os sítios monumentais diminuem - a Comunidade Europeia investiga se este fenômeno estaria relacionado a mudanças nos ecossistemas costeiros e à chegada de agricultores.
- Falta saber se os grupos dos sambaquis foram substituídos por ceramistas ou se houve miscigenações - revela.

O Globo, 11/11/2011, Ciência, p. 34

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