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Os boticários da fauna brasileira

OESP, Vida, p. A26
18 de Mar de 2007

Os boticários da fauna brasileira
Centro de Toxicologia Aplicada, criado há oito anos com apoio da Fapesp, já registrou 11 patentes na área

Giovana Girardi

O nome perereca vem do tupi "pererê", que significa saltador, como o saci. Uma pequena representante dessa família de anfíbios, com meros 5 cm, acaba de pular da secura da caatinga onde vive, no Estado de Rio Grande do Norte, direto para as páginas de publicações científicas conceituadas.

A Phyllomedusa hypochondrialis, que teve de desenvolver formas de manter a pele úmida e livre de micróbios nos buracos onde se esconde para se proteger do Sol, produz uma secreção rica em compostos capazes não apenas de envenenar seus predadores, como também de matar as bactérias que poderiam lhe causar infecções.

Observando o comportamento do animal na natureza, um grupo de pesquisadores do Instituto Butantã, de São Paulo, descobriu que algumas moléculas presentes na secreção conseguem destruir também bactérias que atingem o ser humano, como a Escherichia coli, causadora de diarréias, e a Staphylococcus aureus, uma das responsáveis por infecções hospitalares. De quebra ainda foi encontrado um terceiro peptídeo (trecho de uma proteína) que age como anti-hipertensivo.

"Quando estudamos a biologia do bicho, fica muito lógico encontrar essas coisas. Caatinga não é terra para anfíbio, mas a perereca vive lá numa boa. Diante das formas que ela desenvolveu para sobreviver, podemos tirar várias idéias de que seu sistema de defesa ou ataque pode ser útil para nós também", comenta o biólogo Carlos Jared, que há 20 anos estuda o comportamento de anfíbios.

Foi ele quem deu a sugestão para o bioquímico Daniel Pimenta, também do Butantã, investigar a P. hypochondrialis. Sua equipe então isolou os peptídeos e fez testes em laboratório com várias bactérias para ver como eles agiam.

A descoberta, defende Daniel, é bastante promissora para a criação futura de um antibiótico mais potente. Ao contrário dos medicamentos tradicionais, como a penicilina, que interferem no metabolismo da bactéria e ficam sujeitos ao desenvolvimento de resistência (já que a bactéria muta rapidamente), o peptídeo faz furos na parede celular dos micróbios.

"Essa ação é físico-química. Ele faz um buraco na bactéria. Disso ela não tem como escapar", explica. O estudo foi publicado na revista Peptides em dezembro do ano passado e está descrito na edição deste mês da Pesquisa Fapesp (www.revistapesquisa.fapesp.br).

CORRIDA DA PATENTE

Vasculhar a natureza atrás de substâncias medicinais que possam servir de remédio para nós não é novidade entre os cientistas. Já na década de 30 o médico Vital Brazil, fundador do Butantã, havia percebido que o veneno de cascavel diluído aliviava dores crônicas. Mas as habilidades boticárias da fauna brasileira foram desvendadas lentamente.

Para se ter uma idéia, em meados da década de 60 o médico brasileiro Sérgio Henrique Ferreira descobriu que o veneno da jararaca tinha uma propriedade anti-hipertensiva, ao promover a ação de um peptídeo natural do corpo humano, a bradicinina, que diminui a pressão arterial. O achado levou à criação do captopril, um dos remédios mais vendidos no mundo contra pressão alta - mas quem ganhou dinheiro com isso foi um laboratório americano.

Há cerca de oito anos alguns setores da ciência nacional acordaram para a necessidade de defender a propriedade intelectual, a biotecnologia e a capacidade de descobertas dos pesquisadores brasileiros. Foi criado, com financiamento da Fapesp, o Centro de Toxicologia Aplicada (CAT), que fornece não apenas espaço para pesquisa, como verba e logística para a obtenção de patentes de pesquisas sobre toxinas animais.

"Essa é uma cultura que não existia no Brasil. Os cientistas nacionais correm o risco de morrer na praia se ficarem apenas com a mentalidade da academia. É preciso um esforço conjunto para promover a inovação no País", defende Antonio Carlos Martins de Camargo, diretor do CAT. "Em todo o século 20 não houve nenhuma patente no Brasil", comenta.

Desde que o centro foi criado, 11 patentes já foram depositadas. A primeira foi justamente sobre as propriedades anti-hipertensivas do veneno da jararaca. "Hoje já estamos indo além disso. Identificamos novos alvos da molécula e procuramos aplicações cardiovasculares", afirma Camargo.

Com esse apoio, o palpite de Vital Brazil sobre o efeito analgésico do veneno da cascavel foi finalmente comprovado. Uma equipe coordenada por Yara Cury, do Butantã, extraiu uma substância 600 vezes mais potente que a morfina. O analgésico, batizado de Enpak, já foi patenteado, e uma molécula similar foi sintetizada. Isso elimina a necessidade de usar o veneno para continuar os testes e torna o procedimento mais barato e viável para a indústria.

"Testamos em modelos de dores aguda e crônica e ele demonstrou que tem efeito de longa duração e que não causa dependência e tolerância, como a morfina", afirma. Mas ainda estão sendo feitos mais testes para estudar seu metabolismo e eventuais efeitos colaterais. A pesquisadora acredita que, em dois anos, podem começar os testes clínicos com a droga.

Outras linhas de pesquisa conduzidas no Butantã com o apoio do CAT e que já tiveram patentes licenciadas são de antiinflamatórios presentes no veneno do peixe niquim e de anticoagulantes presentes em taturanas, sanguessugas e carrapatos.

O niquim é um peixe que vive em água salobra no Norte e no Nordeste do País. De tanto ver acidentes com seus conterrâneos provocados pelo espinho venenoso (semelhante ao das arraias), a pesquisadora Mônica Lopes Ferreira, de Maceió, resolveu vir a São Paulo para estudar o animal. Encontrou propriedades antiinflamatórias (que já estão sendo testadas pela indústria farmacêutica) e promete para breve a apresentação de novas características nem sequer imaginadas. "Tenho de esperar a patente antes de falar mais alguma coisa."

Já Ana Marisa Chudzinski-Tavassi foi atrás dos anticoagulantes dos animais hematófagos e teve surpresas. "Testamos meio por acaso o efeito do veneno do carrapato-estrela em células normais e tumorais e vimos que ele induzia a morte das segundas. Mas ainda temos muito teste pela frente", diz.

ESCORPIÕES E ABELHAS

Não é só em São Paulo que a bioprospecção (a busca na natureza por substâncias com potencial farmacêutico) tem ganhado força. Em Minas, o bioquímico Adriano Pimenta encontrou um peptídeo com ação anti-hipertensiva no veneno do escorpião amarelo, bastante comum em grandes cidades.

Em Rio Claro, no interior de São Paulo, o destaque são as abelhas, vespas e formigas. Trabalhando com 15 espécies, equipe liderada por Mário Sérgio Palma identificou peptídeos com ação anti-séptica no veneno desses insetos sociais.

"O ninho deles é bastante propício ao crescimento de bactérias: larvas se desenvolvendo, uma pasta protéica dos outros animais que lhes servem de alimento, além de néctar. Tudo junto, no calor, poderia fermentar, mas os ninhos são limpos, porque elas borrifam veneno para todo lado", explica.

"Se eles usam o veneno com esse fim, podemos usar também." Ele testou os peptídeos como antibióticos e obteve bons resultados contra bactérias que atacam o trato respiratório. Assim como ocorre com a perereca, esses peptídeos têm um formato de parafuso que fura a parede da bactéria.

Tais moléculas também foram encontradas na geléia real, que alimenta a abelha rainha e a cria até o terceiro dia de vida. "Se a rainha morre, a colméia morre junto, então ela é super protegida. Por isso imaginamos que a geléia tenha essa capacidade antibiótica." A substância foi testada contra placa bacteriana em dentes artificiais e teve sucesso. "Agora imagine um produto derivado da geléia real que pudesse ser acrescentado à pasta de dente? O pessoal da Odontologia está empolgadíssimo", comenta Palma.

OESP, 18/03/2007, Vida, p. A26

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