VOLTAR

Olhar missionario sobre o Amazonas

JB, Ideias, p.6
Autor: FRANCA, Jean Marcel Carvalho
13 de Mar de 2004

Olhar missionário sobre o Amazonas

Lançado na íntegra o relato da região amazônica escrito na prisão pelo jesuíta João Daniel no século 18
TESOURO DESCOBERTO NO MÁXIMO RIO AMAZONAS
João Daniel
Editora Contraponto
2 vols. (600 e 640 páginas) R$ 45 (cada)
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UNESP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE LITERATURA E SOCIEDADE NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA e OUTRAS VISÕES DO RIO DE JANEIRO COLONIAL
As histórias do livro da América Portuguesa, infelizmente, têm sempre de dedicar um capítulo de considerável tamanho para narrar o destino daquelas obras que, escritas ao longo dos três séculos que antecederam a instalação da tipografia na colônia (1808), tiveram ou um destino trágico, desaparecendo na poeira do tempo, ou uma publicação tardia, por vezes muitíssimo tardia. A lista é realmente grande e inclui, entre dezenas de outros títulos, a carta do escrivão Pero Vaz de Caminha, o Tratado geral do Brasil, de Gabriel Soares, o Diálogo das riquezas e grandezas do Brasil, de Ambrósio Brandão, a História do Brasil, de Frei Vicente de Salvador, a Nobiliarquia Paulistana, de Pedro Taques, o Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa, e as Notícias soteropolitanas e brasílicas, de Luís dos Santos Vilhena.
A lista inclui também o menos conhecido mas igualmente importante Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, um volumoso tratado sobre a Região Amazônica e sua gente, escrito entre 1757 e 1775 por um jesuíta português de nome João Daniel. A obra, que a Editora Contraponto acaba de reeditar, permaneceu totalmente inédita até 1820, quando o bispo Azeredo Coutinho, que encontrou o manuscrito de Daniel, publicou a quinta parte pela Impressão Régia, no Rio de Janeiro. Varnhagen, duas décadas mais tarde, trouxe a público, nas páginas da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a parte segunda e, em 1879, a mesma revista editou a parte sexta. A publicação completa do tratado, que compreende seis partes, deu-se somente em 1976, nada menos do que dois séculos depois da morte do autor, nos Anais da Biblioteca Nacional.
Malgrado a publicação tardia, é de se comemorar que a obra tenha chegado até nós, tamanhas as desventuras que assolaram a vida de seu autor. Conta-nos Serafim Leite, no seu História da Companhia de Jesus no Brasil, que Daniel (1722-1776) nasceu em Travassos, no norte de Portugal, e que, ainda rapazote, entrou para a Companhia e veio para o Brasil (1741), nomeadamente para a Província do Maranhão e Grão-Pará. Importamos aqui saber que o jesuíta viveu na região por quase duas décadas e que daí saiu, em companhia de outros 115 religiosos, em 1759, expulso pelo decreto pombalino que punha termo às atividades da Companhia de Jesus nos domínios portugueses. Ao desterro seguiu-se a prisão. Uma vez em Lisboa, Daniel foi encarcerado no Forte de Almeida e, a partir de 1762, na Torre de São Julião da Barra, onde viria a morrer em 1776.
O livro sobre o Amazonas foi produzido durante os 18 amargos anos de cárcere e, reza a lenda, teve de ser escrito em papéis de embrulho de tabacos e folhas brancas de breviários, pois os religiosos detidos eram totalmente privados de papéis. Acerca do enorme empenho dos jesuítas em burlar tal restrição, relatou o comandante do Forte de Almeida, em carta ao inquisidor Sebastião José: Como lhes falta o papel, porque nem para as fontes lho consinto há muito tempo, vão-se aproveitando dos do embrulho das quartas de tabaco (que já lhes não entra senão em latas), das folhas brancas dos breviários que iam arrancando, dos registros de Santos, e das Bulas feitas em tiras, e escritas com a ponta de um alfinete (...)". Reza a lenda, igualmente, que Daniel, impossibilitado de consultar quaisquer livros, teve de citar de cor os autores de que se serviu na composição da obra - José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, Condamine, Acosta, Manuel Rodrigues, Simão de Vasconcelos e outros -, recurso que não raro o levou a cometer equívocos de ordem histórica e geográfica.
A despeito de tantas e tamanhas adversidades, João Daniel acabou por compor, nas palavras do historiador José Honório Rodrigues, "uma obra enciclopédica", que não somente reúne e complementa os conhecimentos de que então se dispunha sobre o Amazonas, como ainda procura apontar os melhores meios para a exploração das potencialidades econômicas da região.
O Tesouro..., como mencionamos, está dividido em seis partes. A primeira delas Daniel dedicou à descrição histórica e geográfica da região. O leitor encontra aí desde uma breve nota sobre a descoberta e o "batismo" do rio por Pizarro, até uma advertência sobre "a maior prega que criam as matas do Rio Amazonas" -as cobras -, passando pela navegação nas águas do grandioso rio, pela fartura da caça e da pesca da região, pelo clima "não só habitável mas muito sadio" que ali se desfruta e por algumas "cousas notáveis" que se vêem no lugar - como pedras que ressoam como sinos, capelas lavradas em pedra que antecedem a presença dos europeus no continente e mesmo indícios da passagem do apóstolo São Tomé pela região.Os índios, seus hábitos e costumes, seus vícios e virtudes, ocupam a segunda parte do tratado de Daniel. A variedade de aspectos aí abordados também é grande: o desapego dos selvagens às riquezas, suas habilidades,sua religião, sua "enorme ingratidão" - sobretudo em relação aos missionários -, seu condenável hábito de comer carne humana e sua fecundidade. Há, nesta segunda parte, uma passagem que ilustra de maneira lapidar o estilo solto e um tanto irônico de Daniel. 0 fragmento, retirado de um capítulo dedicado a discutir o polêmico hábito dos selvagens de comerem-se uns aos outros, traz o seguinte comentário sobre o destino das índias "mais gordinhas" que caíam nas mãos do inimigo: "só reservam as moçatonas, e mais formosas, para abusarem delas, exceto se elas estão gordas e têm bom toucinho, porque então nem a mesma formosura as isenta da morte de bezerra".
A terceira parte do Tesouro..., reservou Daniel para inventariar as muitas e enormes riquezas do Amazonas. É pena que se tenha perdido a quase totalidade do tratado primeiro desta parte, tratado que o jesuíta dedicou à descrição das minas de ouro, prata e diamantes da região. As poucas linhas existentes indicam que Daniel, na segunda metade do século 18, comungava ainda com a opinião dos seus antecessores dos séculos 16 e 17 e considerava provável a existência do
"lago de Ouro" e da "cidade de Manoa". Restaram desta terceira parte cinco tratados, todos versando sobre as riquezas vegetais (frutas, madeiras, plantas medicinais, tinturas etc.) da região.
A quarta parte trata das riquezas geradas pelas atividades do colono, relatando; entre outros aspectos, os métodos de cultivo da terra desenvolvidos por índios e colonos, a maneira de pastorear o gado, as atividades comerciais da região, as técnicas de navegação, a produção de louça e as práticas missionárias de portugueses e espanhóis. A quinta e sexta partes vêm complementar as duas partes anteriores, discorrendo sobre os meios para bem extrair as múltiplas riquezas do Amazonas, sobre o melhor método de civilizar o gentio, sobre a mais eficiente técnica de colonizar e fundar povoações e, ainda, sobre as "indústrias" necessárias à população local. Ao que parece, Daniel, atento à necessidade de dar um caráter prático ao seu extenso tratado, depois de buscar abrir os olhos de seus contemporâneos e conterrâneos para as infinitas riquezas do Amazonas, quis também ensiná-los a explorá-las "racionalmente".
Entre as muitas recomendações que, ao longo de seu livro, o jesuíta dá ao colono novato - recomendações arrojadas para o tempo, segundo Serafim Leite - está a adoção de uma economia sem escravos, tema que o jesuíta trata com cautela mas incisivamente, ao ponto de advogar que tal medida colocaria fim a uma enorme injustiça, a saber: "em boa consciência obrigar os índios nas suas mesmas terras a servir aos brancos sem mais causa do que sair dos matos, e fazerem-se cristãos".
A volumosa obra de Daniel, em suma, traça um amplo panorama do Amazonas com tudo que sobre ele se sabia, panorama, talvez, menos preciso - menos "científico", como então se começava a dizer- do que aquele traçado, em 1745, por seu contemporâneo Charles-Marie de Ia Condamine (1701-1774), mas suficientemente detalhado para ocupar um lugar de destaque entre os escassos escritos sobre o Amazonas produzidos ao longo dos séculos 16, 17 e 18: Lamentavelmente, a sua grandiosa obra dedicada a "descobrir" para os leitores o "máximo dos rios" ficou encoberta para os homens do setecentos.

JB, 13/03/2004, p. 6

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.