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O paradoxo das ONGs

CB, Brasil, p.7-8
20 de Jun de 2005

Estudo da UFSC mostra o grau de dependência das organizações não-governamentais dos recursos do Estado. Mais de 54% de um total de 189 instituições têm forte participação da União em seus orçamentos
O paradoxo das ONGs
Hercules Barros
Da equipe do Correio
As organizações não-governamentais vivem um paradoxo.
Embora o termo ONG signifique não estatal, a maioria tem dependência direta ou indireta de recursos provenientes do governo. Ao recorrer à parceria governamental, as organizações se tornam subordinadas aos interesses do Estado. Por outro lado, o poder público depende das ONGs para levar os programas sociais onde sozinho não teria como chegar. A conclusão é da pesquisa Associativismo civil e Estado:um estudo sobre organizações não-governamentais (ONGs) e sua dependência de recursos públicos, realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O estudo tem por base pesquisa iniciada ainda em 2003 que dividiu em quatro grupos 126 ONGs com fontes de recursos de origem governamental, em um universo de 189 entidades pesquisadas. De acordo com a composição orçamentária das ONGs, mais de 54% apresentaram dependência média, forte e fortíssima de recursos governamentais, contra 46% com pouco uso de verba do governo.
Os critérios de definição dos grupos levaram em conta níveis em percentual de uso de recursos públicos. É considerada ONG de dependência fortíssima das verbas do Estado aquela que utiliza mais de 75% de recursos públicos para conduzir seus projetos. Se usa menos de 75% e até 50% a classificação indica forte dependência.
Aquelas que dependem de menos de 50% a 25% foram enquadradas como média dependência. Se depende menos de 25% de recursos públicos é considerada de fraca subordinação. As entidades analisadas fazem parte da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), composta, atualmente, por 270 instituições.
Saúde
De acordo com o estudo, as organizações voltadas à Saúde estão entre as que mais dependem de recursos públicos, seguidas daquelas que atendem à Educação de crianças e adolescentes e as focadas em questões femininas e sexuais.
O estudo não traz valores totais do investimento do governo no setor, mas levantamento feito pelo Correio nas áreas onde as ONGs mais dependem de recursos mostra que, em 2004, o governo federal desembolsou R$ 108,22 milhões em convênios.
O Ministério da Saúde lidera a lista. Fechou 663 convênios com repasse de R$ 91,8 milhões. O Ministério do Meio Ambiente repassou R$ 11,5 milhões para 70 convênios.
O orçamento mais modesto foi da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que dispôs de R$ 4,92 milhões para assinar 71 convênios com ONGs. Apesar de o setor educacional constar na pesquisa como área com maior número de ONGs dependentes de recursos do governo, o Ministério da Educação não informa o número de convênios e recursos firmados entre a pasta e instituições. Até o fechamento desta edição, o MEC não informou à reportagem do Correio quantos convênios foram assinados com ONGs, nem mesmo quais foram os valores.
O grau de comprometimento por conta da necessidade de recursos federais pode desvirtuar o papel institucional das organizações não-governamentais. Essa dependência de recursos governamentais muda o discurso das ONGs e pode comprometer os seus propósitos sociais”, explica o doutorando em Sociologia Política, Rodrigo Rossi Horochovski, autor da pesquisa. Ele refez — a pedido Correio — o levantamento sobre os recursos repassados pelo governo às ONGS, a partir de dados de 2005 e concluiu que não houve mudanças no perfil da origem dos recursos que as sustentam.
Em seu estudo, o pesquisador privilegiou o tema de atuação e deixou de lado os beneficiários das ações para ressaltar quais setores são mais dependentes. Horochovski é cientista social do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da UFSC. Desde 2003, ele estuda a definição do papel das ONGs e a relação com o poder público.
Fortalecimento
No Brasil, as organizações são as principais responsáveis pelo fortalecimento da sociedade civil na participação das decisões na esfera das políticas públicas, mas o aporte financeiro atrelado ao Estado conduz o trabalho das ONGs em função do interesse estatal. Nos anos 70 e 80, essas organizações eram opositoras do sistema. Dos anos 90 para cá, adotaram uma posição gerencial como estratégia, desenvolvendo atividades fins”.
O coordenador do escritório da Abong em Brasília, Alexandre Ciconello, pondera. As ONGs nasceram em rejeição a um governo militar.
A democratização do país mudou essa relação e legitimou a parceria.” Ele cita os programas de combate à Aids como exemplo. Os profissionais do sexo e o público da noite só se relacionam com grupos aos quais atribuem credibilidade”, diz. Essa aceitação é fruto do contato direto, comum aos movimentos sociais. A Abong considera o termo ONG muito genérico. Em tese, qualquer instituição sem fins lucrativos e de assistência social se intitula ONG.

Parecerias milionárias
Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais adverte para que entidades não virem meros prestadores de serviços” do Estado
O coordenador do escritório da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) em Brasília, Alexandre Ciconello diz que organizações não-governamentais devem ficar atentas para não virarem meras prestadoras de serviços na parceria com o governo federal. O pesquisador Rodrigo Rossi Horochovski, do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da UFSC, também adverte sobre certa interferência.
E cita o caso da Pastoral da Criança. Nos primeiros números de seu informativo, apareciam sempre crianças magérrimas pelos efeitos da desnutrição e de doenças. Este tipo de imagem foi desaparecendo das publicações, à medida que eram selados convênios com o governo”, argumenta.
A coordenadora nacional da Comissão Pastoral da Criança, Zilda Arns, reconhece a necessidade de firmar convênios com o governo para manter os projetos sociais funcionando e atendendo às comunidades. No ano passado, dos R$ 31,4 milhões que a instituição movimentou, R$ 22,8 milhões (72%) vieram dos governos federal, estadual e municipal. Só com o Ministério da Saúde o convênio firmado foi de mais de R$ 21 milhões. É o nosso maior parceiro. Os recursos parecem altos, mas atendemos a mais de 1,8 milhão de crianças. Para cada uma delas, dispomos de apenas R$ 1,37 por mês”, justifica.
Zilda Arns afirma que a Comissão Pastoral não tem intenção de ser opositora do governo. E, ao contrário da constatação da pesquisa, ela afirma que a instituição é quem influencia as políticas públicas do país. O fato de receber dinheiro do governo nunca nos amarrou. Nem na época da ditadura militar”, rebateu. O trabalho da Pastoral da Criança surgiu em 1983.

De críticos a aliados
O pesquisador Rodrigo Rossi Horochovski não considera a subordinação de algumas ONGs um problema. Mas sim as estratégias de adaptação e sobrevivência ao que chama de neoliberalismo. O Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (Gapa) é apontado como um deles. Teria passado de uma posição mais crítica para o diálogo, à medida que foram definidas parcerias com o os governos.
O Estado procura resultado a curto prazo e o Gapa chega em segmentos que a burocracia estatal tem pouco acesso, como travestis e usuários de drogas injetáveis”, analisa. Ele diz que a Viva Rio tem perfil semelhante. O discurso da Viva Rio também era opositor no início. Hoje, tem uma tendência mais para a livre iniciativa. As ONGs foram se adaptando aos interesses imediatistas do Estado para garantir os investimentos”, diz o pesquisador.
Diretor-executivo do Viva Rio, o sociólogo Rubens César Fernandes afirma que faz parte da filosofia da ONG funcionar seus projetos como piloto para que o governo os adote como política pública, caso sejam bem-sucedidos. Segundo Fernandes, foi assim com a Campanha do Desarmamento. Desde 1994, o governo do Rio de Janeiro apoiava a iniciativa. Em 1999, chegou a proibir a venda de arma no estado. Pouco tempo depois, o governo federal lançou a campanha nacional”, conta. Segundo relatório anual da Viva Rio, em 2004 a ONG dispôs de R$ 19 milhões para a executar programas de combate à violência e promoção da segurança. Mas 47% do valor vêm dos governos brasileiro e estrangeiros, e 53%, de instituições privadas.

CB, 20/06/2005, p. 7-8

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