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O nascimento de uma nação caipira

GM, Relátorio da GM, p.14-15
23 de Jan de 2004

O nascimento de uma nação caipira

José Antônio Severo
de São Paulo

São Paulo orgulha-se de ter nascido em volta de uma escola, o colégio dos jesuítas que ainda está lá no Pátio do Colégio. É, de fato, um berço diferente, pois a maioria das grandes cidades do mundo, especialmente as que vieram depois dos Descobrimentos, formaram-se a partir de fortes militares ou entrepostos comerciais. De um educandário, talvez seja a única. Mas, isto é uma simples visão poética que os paulistas têm de sua capital, porque na verdade, desde seu nascimento São Paulo foi um centro gerador de política. Poucas cresceram e se desenvolveram com destino manifesto tão marcado, expresso desde seus primeiros momentos, quando ainda não passava de um aglomerado de palhoças, e que a acompanhou ao longo dos séculos, trazendo-a até estes dias em que chega como uma das maiores, mais ricas, mais cultas cidades do planeta.
Essa marca ela sempre teve, como um sinal de nascença de uma nova etnia, seus primeiros habitantes, os mamelucos, fruto do cruzamento de homens portugueses com mulheres indígenas, recém-nascidos no Planalto de Piratininga. Das partes que se soldaram para constituir a unidade nacional.; brasileira de hoje, foi o legado dos paulistas a que mais lhe acrescentou em território, população e recursos naturais.
Não há documentos que comprovem, mas é bem possível que os jesuítas tivessem pensado em construir uma nação na hinterlândia sul-americana. Isto deve ter-lhes ocorrido tão logo os primeiros missionários foram devorados pelos seus anfitriões de Piratininga,, quando os padres notaram que aqueles índios eram diferentes das demais almas que encontravam e . ao longo da costa. Ouvindo e interpretando suas histórias, atualmente confirmadas pelos arqueólogos, souberam que eles descendiam de um povo que vinha do norte da América do Sul, desceu até o atual Paraguai singrando os rios, e dali espalhara-se para o litoral paulista e para a margem esquerda do Rio Uruguai. Estavam em fase de expansão quando foram contatados. Nesse avanço, expulsaram os Incas das planícies do leste sul-americano e fechando a estrada que ligava Potosi, na Bolívia, ao atual porto de Itajaí, em Santa Catarina. Os portugueses tentaram percorrê-la mas foram dizimados na medida em que chegaram aos territórios ocupados pelos ferozes guaranis.
Aliados e protagonistas
A redução dos índios paulistas pelos padres portugueses foi o grande diferencial no relacionamento dos conquistadores europeus com os nativos americanos, porque de uma forma geral os guaranis não aceitaram a pacificação. Eles se acomodaram como aliados ou, como no caso de São Paulo, como protagonistas. Anos depois, seguindo o exemplo, os mesmos jesuítas, com missionários espanhóis, conseguiram catequizar guaranis nos vales dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, ocupando com suas missões um território que ia do sul da Bolívia até o noroeste da atual República Oriental do Uruguai. Ali também constituíram uma nação autônoma, apenas teoricamente submetida a Madri, mas que entrou em guerra com Portugal e Espanha quando quiseram enquadrá-los, mais de duzentos anos depois.
As aventuras dos paulistas com suas entradas, bandeiras e tropeadas chegaram à História como vulgares expedições de rapina, porque a História escrita pelos colonizadores portugueses não lhes reconhece um projeto político, inconsciente para seus autores, mas que teve como resultado rasgar o Tratado de Tordesilhas e acrescentar aos domínios portugueses quatro quintas partes do império herdado pelo Brasil.
No Sul, a redução dos índios genericamente chamados de guaranis na Bacia do Prata fica como um esforço para assegurar a soberania espanhola na região. Entretanto, do ponto-de-vista indígena, as lutas entre bandeirantes paulistas e missioneiros do alto Uruguai pode muito bem ser admitido como a disputa pela hegemonia entre os guaranis.
Se foi assim, não pareceria tão tresloucada a reivindicação desses territórios, como legado colonial, pelo paraguaio Solano Lopez, que se julgava herdeiro dessa nacionalidade. Assunção seria a sucessora da posse dessas terras. Ao Paraguai caberia completar a suposta obra geopolítica de Raposo Tavares ou Sepé Tiarajú e construir uma unidade política nesses espaços. É significativo como Solano, já no Século XIX, voltou a expressar esse projeto ao dissidente argentino, coronel Horacio Lopez, filho do caudilho de Santa Fé, Estanislao Lopez, único oficial argentino a desertar (El Traidor), lutando, até ser fuzilado, a seu lado na Guerra contra a Tríplice Aliança, formada por Argentina, Brasil e Uruguai.
A aldeia esquecida
O que era São Paulo quando ali se estabeleceram os primeiros portugueses? Uma aldeia insignificante, sem qualquer interesse econômico ou estratégico. Para os portugueses, os pontos de apoio ficavam no litoral, seguindo a experiência africana anterior. Bahia, Olinda e São Vicente eram portos ideais para realizar o comércio com os nativos, como faziam na outra costa do Atlântico com os estados africanos. Mas essas perspectivas revelaram-se nulas, pois os silvícolas não tinham o que oferecer. Então por que os padres, em vez de construírem seu colégio no litoral, fortificado e com infra-estrutura, foram para cima da serra, um obstáculo tão difícil que era chamada de muralha? Com certeza foi a percepção de que aqueles índios ferozes, atrasados, que em sua maior parte ainda não ultrapassavam a fase dos caçadores-coletores, seriam a porta de entrada para as almas daquele gentio que se espalhava pelo continente a dentro.
Refúgio dos excluídos
Não tardou aquele povoado já fora do alcance das autoridades vicentinas transforma-se em refúgio para os excluídos do forte português e adquire uma característica própria, nova na recém-fundada colônia de além mar. Em texto atribuído pelo Barão do Rio Branco ao segundo-tenente alemão Barão Carlos von Fock, ou a Carl de Leenhof, autor anônimo que se intitula "Uma Testemunha Ocular" do livro "História da Guerra entre Brasil e Buenos Aires", editado pela tipografia G. Reimer, de Berlim, em 1834 (tradução de Bertoldo Klinger), fala destes primeiros tempos da formação de São Paulo: "Assim, pouco a pouco, foram aparecendo, no litoral, os primeiros núcleos de povoamento - Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro (sic). Mais difícil, porém, pelos perigos apontados, a colonização da hinterlândia, onde poucos se aventuravam a penetrar, surgindo daí a idéia de se canalizarem para essas regiões levas de malfeitores degradados. Para este fim, destinou-se o alto da serra, hoje Província de São Paulo (...) Os adventícios que ali ficaram uniram-se às tribos indígenas de origem guarani, de que resultou a raça dos mamelucos, denominação que se dá em todo o Brasil ao produto do branco com a índia, também pelos espanhóis chamado de mestiço".
Pandiá Calógeras no seu livro "A Política Exterior do Império", já acrescenta elementos para se compor um quadro mais preciso do que foi a fusão político-cultural do europeu com o indígena: "Fácil o é apreciar o poder seletivo dos mais fortes e dos mais aptos assim criado, do ponto-de-vista da formação de uma sociedade que não viesse a representar mero prolongamento das crenças e dos instintos dos selvagens; de uma sociedade que fosse uma projeção do modelo europeu". Isto é, o paulista não era mais nem um nem outro, mas absorvera de ambos. Tinham um pé em cada lado, cultural e politicamente. Eram parte do recém chegado mundo lusitano, mas também faziam parte de uma política indígena própria, preexistente ao Descobrimento.
Continuando com Calógeras: "O meio, por todas as suas energias, tenderia a destruir os intrusos. Matava-os ou levava-os ao suicídio. Absorvia-os, por vezes, e mais freqüentemente do que parece. Como os white men turned red (brancos indianizados) que tanto mal fizeram à penetração dos colonos nos Estados Unidos, no Brasil portugueses adotaram o viver e o sentir do indígena, partilharam seus ódios e suas fainas guerreiras, moraram nas tabas e fundaram descendência de mamelucos".
Os conquistadores guaranis
A assimilação do europeu pelo índio trouxe grandes vantagens estratégicas para os índios de São Paulo. Antes da descoberta, as etnias a que se chama de guaranis (mais uma língua-tronco do que uma homogeneidade racial), esses indígenas encontravam-se em franca expansão. Como demonstram os mapas publicados pelo historiador da Universidade de Passo Fundo (RS), Tau Golin, em sua obra monumental "A Guerra Guaranítica", saídos do interior, do que hoje seria o Paraná-Paraguai, espalhavam-se em direção ao litoral e ao Sul. Vindos do norte da América do Sul, chegaram ao Paraguai e daí se expandiram em duas colunas, uma para o litoral paulista, outra para a margem esquerda do rio Uruguai, no atual oeste do Rio Grande do Sul. Embora muito primitivamente, tinham uma organização política insipiente, o cacicado, que admitia algum tipo de chefia durante as campanhas guerreiras. Diferentemente do estado, que se apropria do excedente, os guaranis distribuíam-no. Com isto, segundo André Luiz R. Soares, no livro "Rio Grande do Sul, 4 Séculos de História", "os guaranis teriam optado pela sociedade contra o estado, buscando na figura consensual do cacique a manutenção dos valores da sociedade. Embora esta visão seja bastante controvertida, o que podemos afirmar com segurança é que o modo de viver guarani, o Ñande Reko, apoia-se em diversos pilares básicos da organização que permitiu uma expansão em todo o Sul da América do Sul, sendo somente bloqueados pelos conquistadores ibéricos".
Com a chegada dos portugueses, com a mestiçagem mas, principalmente, pela incorporação de novas tecnologia e formas de organização, os mamelucos e seus primos guaranis adquiriram uma súbita superioridade bélica sobre os demais silvícolas. As armas de fogo, as táticas de combate e, principalmente, os rudimentos de estado introduzidos pelos novos habitantes conferiram-lhes essas grandes vantagens relativas. É verdade que isto, mais adiante, abriu caminho para sua reassimilação pelo europeu, como diz Calógeras: "Mas o fenômeno se fez sentir mesmo nos primeiros dias da conquista. João Ramalho e Diogo Alvares são, entre outros menos retumbantes, exemplos típicos dos europeus assimilados, mais tarde fatores de vitória dos elementos estrangeiros sobre esse mesmo ambiente que os havia absorvido".
A gramática de Anchieta
A presença européia mais consistente era a dos padres jesuítas, catequizando os índios silvícolas e educando a juventude mameluca. Isto porém, não se dava na língua portuguesa, mas numa linguagem nova organizada por eles, especialmente pelo padre José de Anchieta, fundador de São Paulo, que criou o que se chama de Tupi-Guarani, um idioma comum possível de ser entendido, falado e escrito pelas diversas etnias, denominada "língua geral". São Paulo não falava português. Este era o idioma do litoral. No interior, praticava-se em língua geral.
Assim também era nas missões jesuíticas do Sul, igualmente patrocinadas pelos padres jesuítas. A diferença é que nas Missões não havia o cruzamento de nativos com europeus, permanecendo os índios em estado puro, misturando-se somente entre si (tapes, charruas, minuanos, kaigangues etc.) com hegemonia étnica, cultural e política dos guaranis. Mas os padres faziam toda a educação nos idiomas americanos, não lhes ensinando o espanhol. Liam e escreviam pela gramática do padre Anchieta.
Essa questão do idioma, um fundamento da cultura paulista que se mantém até hoje, espalhando-se como a fala nacional pelo Brasil inteiro, mas principalmente para o sul, é explicado no trabalho acadêmico de Gerson Guerra, o Tuta da dupla caipira Tuta e Tota, intitulado "Folclore Brasileiro - Trabalho sobre a Música Sertaneja, Violas e Violeiros", tese de mestrado para a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Diz, falando da criação da língua geral: "O Tupi, e muito menos o seu dialeto Guarani não tinham escrita. Tiveram, então (os jesuítas), que escrever os sons que ouviam diretamente dos índios. Um dos problemas encontrado foi que nem o tupi e nem o guarani possuíam sons referentes às letras F, L, LH, RR, V, Z. (...) Mas o índio falava algo parecido com o fonema Y. (...) O mestiço (criado pela mãe índia) e o próprio índio começaram a substituir o som das letras LH pela Y, que ele conhecia, e desta forma a palavra mulher passou a ser muyé (...) No que se refere ao R, o índio sempre pronunciou uma -forma branda e apassivada deste som, porque ele não pronunciava o R forte RR (ao pronunciar Araraquara, nós também usamos o som da letra R de uma forma branda e apassivada). Destas duas substituições se originou o sotaque caipira. Os Bandeirantes, partindo sempre de São Paulo, falando este dialeto o disseminaram em suas viagens por quase todo o Brasil". A obrigação se ensinar o português só veio mais tarde, com a expulsão dos jesuítas pelo Marques de Pombal, com substituição de professores e punições (castigos físicos e prisão) para, os que usassem a língua geral, obrigando a fala e a escrita do português.
Ainda os guaranis, como grupo líder ou, de outra forma, detentor da hegemonia anterior à chegada do conquistador, acabou sendo o povo escolhido para ser o instrumento da transição. Mais por sorte, do que por decisão. Os portugueses escolheram São Vicente, para seu porto, em função de vantagens estratégicas e adequação operacional para abrigar seus navios. Lá em cima estavam os guaranis que caminhavam celeremente para a hegemonia em toda a costa atlântica.
No Sul, deu-se o mesmo, pois os espanhóis, para dominarem os rios interiores da Bacia do Prata, seguiram o mesmo caminho, aliando-se aos Guaranis através dessas pontes como a religião e, logo em seguida, a economia. Assim, 100 anos depois, as regiões controladas por esse desenvolvimento entram em choque, São Paulo contra as Missões Jesuíticas. Mas estamos falando dos primeiros tempos.
Legalização das Bandeiras
A História do Século XVI fala desses tempos lembrando as entradas e bandeiras organizadas, já com o beneplácito da Coroa Portuguesa. Mas o governo o que fez foi legalizar as expedições que mamelucos e indígenas realizavam pelo interior a dentro. Foi uma conseqüência de ações que já estavam fora de controle produzindo fatos políticos que obrigaram às autoridades da nova colônia a conferir-lhes alguma forma de legalidade, no caso introduzindo a Bandeira, como símbolo de um estado, e mandando os padres junto, o que completava sua legalização. Falando da absorção das bandeiras pelo estado, diz Calógeras: "Sairia por ordem ou com o consentimento das autoridades regulares. Levaria clérigos para as necessidades das almas. Seus chefes teriam poderes para atos civis imprescindíveis em expedições de tanto perigo". Ou seja, os portugueses regularam uma coisa que já existia, usando-a a seu favor.
As penetrações faziam parte de uma guerra indígena anterior ao descobrimento, que se virou a favor dos paulistas (ou das tribos de Piratininga) com a chegada de novas armas de combate e vantagens estratégicas, que foram a introdução de plantas e animais domésticos. As armas e a organização das forças para o combate deram vantagens táticas sobre as tribos que lutavam anarquicamente.
O cacique era uma força aglutinadora, mas não exercia um comando tático no campo de batalha; a introdução de alimentos cultivados numa economia de caçadores-coletores, que dominavam uma agricultura incipiente limitada ao cultivo da mandioca, enriqueceu-os, perto do que havia antes, criando um excedente para financiar a guerra, como ainda deu-lhes vantagens logísticas, pois dispunham da carne dos animais e dos cereais, principalmente, que vieram com os europeus. Os objetivos, no entanto, eram os mesmos de antes do Descobrimento: submeter e exterminar ou escravizar seus inimigos.
Ai se inicia a supremacia paulista sobre as demais tribos.
O casamento dos aventureiros
O europeu subia a serra e se homiziava entre os indígenas de Piratininga. Dizem os documentos que eram degredados e desertores, ou seja, homens que por algum motivo tinham problemas com a lei ou militares que escapavam. Mais adiante, a História já os trata como "aventureiros". Lá em cima, eram bem recebidos pelos caciques, pois traziam os conhecimentos de que precisavam para sua "segurança nacional": os degredados de origem rural sabiam plantar, criar e manejar os animais vindos de além mar; os desertores conheciam tudo sobre armas e táticas guerreiras. Sua integração, isto é mais do que sabido, dava-se pelo casamento. Nos primeiros tempos, normalmente, com princesas, como foi o caso de João Ramalho, casando-se com Bartira. Pela poligamia ampliavam seus laços familiares, o que era uma vantagem de parte a parte. Com isto, integravam-se na sociedade, pois não havia qualquer outra instituição para dar suporte a essas alianças.
O aventureiro interessava-se pelas riquezas que pudesse saquear, aproveitando-se dos objetivos estratégicos dos indígenas. Seus descendentes mamelucos, que deram continuidade a essas entradas, já continham entre seus propósitos a política de seus ancestrais maternos. Porém, como disse Calógeras em citação anterior, esses seres anfíbios acabaram por acoplar os interesses dos dois lados, indígenas e portugueses, criando uma política externa daquela São Paulo.
"Não era uma política, sim um estado social", como observa Calógeras. De fato, Dom João III procurava conter os portugueses dentro dos limites do Tratado de Tordesilhas. "O que se chamava Peru, isto é, a colônia pertencente a Castela, começava às portas de São Paulo. Tatuí e Curitiba talvez já estivessem fora da linha de demarcação", diz, esclarecendo que a frase muitas vezes repetida de ter a expedição seguido até o Peru, pertencente à Espanha, não significa forçosamente ter-se internado muito".

O nascimento de uma ...
À exemplo dos índios, as expedições passaram a destruir os inimigos
"As entradas e bandeiras, entretanto, não haviam constituído direito", alerta Calógeras. A expedição de Aleixo Garcia, de 1526, chegou a estabelecer um acordo com os guaranis do Paraguai, radicando-se perto de onde hoje está a cidade de Assunção, mas foram massacrados pelos índios, temerosos de que seus primos do litoral planejassem exterminá-los, como era a praxe das guerras indígenas.
Daí para a frente, as expedições não mais tentaram fixar-se no território, preferindo seguir o costume da destruição dos inimigos. Uma delas é célebre, quando os paulistas atacaram as reduções guaranis ao Sul, nas terras do Guairá.
Como narra Júlio
Quevedo, chefe do Departamento de História e vice-coordenador do Mestrado de Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS), no seu trabalho "A Ocupação Ibérica do Rio Grande: A Conquista e a Colonização Espanhola", a partir de 1635 as expedições chefiadas por Raposo Tavares iniciaram "um processo de destruição, pilhagem e rastro de sangue de 30.000 indígenas catequizados e reduzidos. Os povoadores recrudesceram, mas pouco adiantou ante a ferocidade dos pilhadores bandeirantes. Em 1640 os bandeirantes organizaram a expedição que foi derradeira às Reduções. Entretanto, a retaguarda indígena estava muito bem organizada e em 1641 essa Bandeira foi derrotada em M'bororé, pequeno afluente do Rio Uruguai, coibindo definitivamente a ação dos bandeirantes das região do Tape".
Uma integração imprescindível
Logo em seguida o rei espanhol autorizou a formação de uma milícia indígena. Aí começa a acoplagem dos projetos indígenas com os dos colonizadores. Os bandeirantes integrando-se à política externa portuguesa e os missioneiros aos espanhóis, fundindo-se com suas metrópoles as quatro correntes que atuavam na Bacia do Prata: Portugal e São Paulo; Espanha e jesuítas. Até que o Tratado de Madri, cem anos depois, reacendeu a guerra entre as quatro potências. Completa Quevedo: "A vitória das tropas guarani-missioneiras na Batalha de M'bororé é o marco de uma nova fase do processo histórico missioneiro, pois demonstra a capacidade de resistência dos jesuítas". A partir daí, os guaranis do Sul integram-se como parte da política espanhola.
A contrapartida foi a doação de terras e a criação de fazendas paulistas nos territórios além da linha de Tordesilhas. As duas facções autóctones integravam-se à geopolítica de suas coroas. Os mamelucos transformavam-se em luso-brasileiros.
A integração definitiva dos paulistas, já então um colonizador que havia se espalhado por todo o território, integrando ao País o Centro-Oeste, Norte e o Sul, dá-se na guerra contra as Missões. Os paulistas formaram como grupo independente nos exércitos do Tratado de Madri, composto por forças das metrópoles ibéricas e unidades regulares dos exércitos coloniais.
O exército de Gomes Freire era composto de quatro regimentos regulares, o Regimento Velho (infantaria); o Regimento Novo da Praça de Santos, o Regimento de Francisco Antônio Cardozo, o Regimento de Dragões do Rio Grande, e o Corpo de Aventureiros Paulistas e Lagunistas, comandados pelo capitão Francisco Pinto Bandeira. Ou seja, a unidade paulista era de "aventureiros", um ente aparte que lutava sob a bandeira da Coroa.
Essa conquista e sua herança foi o papel mais importante de São Paulo na História do Brasil e que resultou de uma vocação expansionista dos primeiros habitantes da cidade. Dessas primeiras tropelias até sua integração aos exércitos D'el Rey com seu regimento de "aventureiros" os paulistas evoluíram. Aos objetivos iniciais de simplesmente destruir seus inimigos e capturar escravos, passaram a trazer para a cidade e a vender para os colonos couro de gado e erva-mate. Depois, aos poucos, foram se fixando naqueles territórios, estabelecendo-se com fazendas de criação, montando uma economia que não parou de evoluir e que assegurou, no fim do Século XVIII a posse dessas terras para Portugal e ao Brasil, quando se demarcaram as fronteiras com as repúblicas vizinhas, do Uruguai à Venezuela, assegurando ao País as terras que percorreram.
Sem espaço para ditadores
No espaço político, foi em São Paulo, às margens do Ipiranga, que foi proclamada a independência. Por mais que se argumente, não há como negar a esse fato histórico sua importância decisiva. E se foi ali era porque não teria o príncipe Dom Pedro condições de chegar à cidade se não produzisse um fato dessa relevância. Mais tarde a República nasceu entre os paulistas. O golpe militar que destronou o imperador não conseguiu estabilizar o novo regime até que o poder chegasse a seus inspiradores. Foi com Prudente de Morais que o regime se consolidou e o País foi pacificado, extinguindo a guerra civil que ensangüentara os três estados do Sul.
Durante trinta anos o poder esteve em mãos de ex-alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uns mineiros outros paulistas, mas todos formados ali naquela escola. Se a política do café com leite significava a alternância do poder entre Minas e São Paulo, também era unificado entre homens de uma mesma formação acadêmica e ideológica, menos Hermes da Fonseca, que era militar.
Ainda em tempos recentes, é preciso não esquecer que o primeiro comício das Diretas Já, o movimento cívico que inviabilizou a ditadura militar, foi na Praça da Sé, a pouco mais de 100 metros do Pátio do Colégio.
O papel de São Paulo na construção da América do Sul moderna será o de coluna mestra da integração do continente, como seu principal pólo produtor e consumidor. O expansionismo paulista não foi uma política de governo nem uma empreitada comercial em busca de pedras e escravos, mas um processo político que não foi registrado porque seus protagonistas desconheciam a escrita na época em que se desencadeou. O português, quando chegou e ocupou essa região, reconheceu e se incorporou, dando-lhe uma força desmedida para época, o que resultou, hoje, numa fonte autônoma de geração de poder e cultura. Isto é São Paulo. Que precisa ser estudado, explorado e desenvolvido em todos os ramos das ciências sociais, para explicar como uma cidade produziu tamanha quantidade de fatos. São Paulo nunca deu ditadores. Seus políticos, desde José Bonifácio de Andrada e Silva até Luiz Inácio Lula da Silva, sempre governaram dentro da lei.
A Cidade do México, como única capital de um estado pré-colombiano terá uma expressão única neste hemisfério ocidental. Nos Estados Unidos, Nova York foi a capital do governo colonial, perdeu a hegemonia política daquele País mas continua a ser seu principal gerador de cultura, seguida de perto por Los Angeles desde que a indústria do cinema e das artes audiovisuais passaram a predominar como formadoras de costumes e opinião do mundo moderno.
No Brasil, a cidade de Salvador, na Bahia, foi sede de vice-reinado e é admitida como foco gerador da cultura brasileira. As cidades de Belém e Rio de Janeiro também foram sedes de vice-reinados e são indiscutíveis geradoras de cultura para todo o Brasil.
O ideal do brasileiro
São Paulo, entretanto, não é reconhecida como formadora da cultura brasileira, pois oficialmente Brasil é o litoral português e estatal. São Paulo indígena e privada não conta para o Brasil burocrático e cartorial que administra até hoje a cultura. Mas assim como os mamelucos e os guaranis do Século XVI obrigaram os colonizadores europeus a seguir-lhes os passos, colocando-lhes uma bandeira na mão para
legalizar suas conquistas, a cultura "paulista" que vem se afirmando e ocupando espaço no Brasil moderno segue aquele modelo de suas intervenções decisivas na História: independência, abolicionismo, república, diretas-já, só para citar alguns.
O paulista trabalhador e incansável versus o burocrata ocioso e espirituoso dos anos 30/40 é hoje o ideal do brasileiro. Suas artes, mesmo ainda combatidas e estigmatizadas, como sua música, forçam a porta de entrada e os seus artistas começam a ser bem mais reconhecidos.
A viola caipira, instrumento que desaparecera, é hoje executada em salas de concerto até na Europa e será, com certeza, o instrumento símbolo dessa civilização que nasceu sapateando o cateretê dos primeiros missionários.
(Relatório da Gazeta Mercantil Um País chamado São Paulo)

GM, 23-25/01/2004, Relátorio da GM, p. 15

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