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O mundo é das ONGs

Veja, Entrevista, p.11, 14-15
Autor: CLINTON, Bill
17 de Ago de 2005

O mundo é das ONGs
O ex-presidente dos Estados Unidos quer ser o campeão do mundo pós-globalização apostando nas ONGs e descrendo dos políticos

Entrevista: Bill Clinton

Euripedes Alcântara

Bill Clinton entrou com força na luta para ser o melhor ex-presidente dos Estados Unidos, posto que vem sendo ocupado por Jimmy Carter. No próximo mês, ele vai sediar em Nova York a primeira reunião mundial da Clinton Global Initiative (CGI), uma super-ONG com objetivos grandiosos, como o de promover o crescimento econômico sem impacto ambiental e conciliar as diferenças religiosas como forma de acabar com o terrorismo. Aos 59 anos, plenamente recuperado de uma operação de revascularização cardíaca, Clinton espera juntar quase 1 000 líderes empresariais, trabalhistas e políticos de todo o mundo em uma reunião em Nova York a ser realizada pelos próximos dez anos, sempre coincidindo com a cerimônia de abertura dos trabalhos da Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas. "Não é um encontro como o de Davos ou da própria ONU, mas um fórum de ativismo do qual cada participante sairá com uma lista de tarefas a ser cumpridas", diz o ex-presidente. "Quem não cumprir não voltará no ano seguinte." Na casa dele e da senadora Hillary Clinton, em Chappaqua, estado de Nova York, Clinton deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja - Há duas semanas, enquanto o Exército Republicano Irlandês (IRA) renunciava ao uso da força depois de 36 anos de guerra, Londres estava ainda abalada pelo segundo ataque terrorista de origem islâmica. O que essa coincidência nos ensina sobre o mundo em que vivemos?
Clinton - Em primeiro lugar, penso que o IRA renunciou ao uso da força em parte porque o povo irlandês não quer um futuro violento. Isso mostra o que uma década de paz pode fazer. Tivemos o cessar-fogo em 1994 e o acordo de paz em 1998. Nesse período a Irlanda do Norte experimentou um rápido crescimento econômico, e toda a comunidade, não importam suas diferenças, se sentiu sócia de um só futuro. Por isso, quando o IRA anunciou a deposição das armas, estava refletindo a vontade pública. Em segundo lugar pesou o fato de a Irlanda do Norte ter uma liderança religiosa responsável. O IRA aceitou que sua desmobilização fosse monitorada não apenas pela comissão internacional que ajudei a organizar em 1998 mas também por líderes das igrejas Católica e Protestante. Essa é uma história. O que ocorreu em Londres é outra. Pelo visto alguns jovens profundamente desiludidos, pessoas que não se sentiam parte da comunidade e sem futuro, foram influenciados por religiosos radicais e acabaram seguindo um caminho totalmente diferente. O que a coincidência nos mostra? Que podemos ter terror globalizado em uma sociedade aberta. Mostra que a influência religiosa pode ser positiva, mas também negativa. Quando alguém se acha dono de toda a verdade e transforma isso em programa político, esse alguém acha que pode matar quem discorda dele. Isso é o mal. O bem é acreditar que Deus é amor e que é preciso buscar um caminho pacífico de conciliação das diferenças. Então, acho que vimos esses dois caminhos, o bom e o mau, acontecendo ao mesmo tempo quase no mesmo lugar. Vimos não apenas o horror e a morte em Londres, mas o caminho para um futuro melhor sendo trilhado na Irlanda do Norte.
Veja - O terror de origem religiosa pode ser erradicado?
Clinton - A coisa mais importante a meu ver é manter a esperança acesa no coração das pessoas. Quando se tira a esperança de alguém, tudo o que sobra é a violência. Pessoas que acordam de manhã sentindo-se plenas, que têm experiências positivas de vida, seja no trabalho, na comunidade, seja na escola, não se tornam terroristas. O terrorismo é produto do isolamento e da sensação de alienação da cultura que se quer bombardear. A religião pode e deve ser parte importante do caminho para o futuro comum que queremos construir. A elevação do padrão de vida nos países pobres é outra.
Veja - Elevar os padrões de consumo de centenas de milhões de pessoas na Ásia e na África não apressaria o esgotamento dos recursos naturais? Se todos os terráqueos atingissem o mesmo padrão de consumo dos moradores da Califórnia haveria um colapso ambiental, não?
Clinton - A resposta mais curta é sim. Mas a mais longa é que é possível criar riqueza sem destruir o meio ambiente. Esse é o grande desafio. Em todo o mundo as reservas de água estão diminuindo, os solos férteis estão sendo erodidos e a produção de grãos apresenta tendência de queda. A América do Sul é uma das poucas regiões do mundo que conseguiram aumentar a produção de soja e de outros grãos graças à tecnologia e à abundância de terras férteis. Mas isso é exceção no mundo. A regra é a escassez de água e de terras cultiváveis. Portanto, um dos objetivos mais caros da minha iniciativa é encontrar maneiras de fazer da preservação do meio ambiente um caminho para atingir a prosperidade econômica. De outra forma, a reação das pessoas, digamos na China e na Índia, pode ser muito negativa. Elas podem pensar que a preservação ambiental é uma cilada de americanos e europeus para impedir o crescimento econômico de seus países. Por isso temos de incentivar o uso da energia solar, da energia eólica, e ajudar a popularizar técnicas de cultivo de alta produtividade, que nos auxiliem a preservar o solo e a água. Assim, as pessoas vão entender que preservar as torna mais ricas e não mais pobres. Outro efeito benéfico de elevar o padrão de vida e o consumo das populações nos é mostrado pelas estatísticas: à medida que os países se enriquecem, o crescimento populacional diminui de intensidade. Quando se sabe que o maior impacto populacional do planeta está nos países que abrigam as grandes reservas florestais, fica clara a importância de ajudá-los a enriquecer.
Veja - O senhor foi para muitos um símbolo do lado positivo do processo de globalização da economia. Recentemente o senhor disse que o mundo precisa entrar na fase pós-globalização. Em que consiste essa fase?
Clinton - A globalização da economia teve efeitos muito positivos, mas muita gente não se beneficiou. A única maneira de ampliar esses efeitos benéficos é trazer para a cena a sociedade civil. Acho que chegou a hora de as organizações não-governamentais, as empresas, as entidades de trabalhadores e as organizações internacionais tentarem desenvolver uma política social e ambiental que esteja à altura dos desafios e oportunidades levantados pela globalização. O sistema econômico global sozinho não tem como resolver todos os problemas, nem local nem globalmente. Questões como a degradação ambiental e o aumento da pobreza e da desigualdade não podem ser enfrentadas apenas pelas forças de mercado. Portanto, acho pouco realista imaginar que possamos ter uma economia globalizada sem a contrapartida de uma ação global social. Minha idéia é basicamente contribuir para a criação de uma sociedade civil global com parcerias que transcendam as fronteiras nacionais e regionais.
Veja - Parece uma iniciativa muito louvável, mas o senhor não está sendo otimista demais com os resultados práticos que ela possa trazer?
Clinton - Acho que unidos podemos produzir resultados reais em um prazo mais curto do que se imagina. A sociedade civil global está se expandindo rapidamente desde o fim do comunismo real. Se você olhar o que aconteceu no mundo desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, verá que três grandes e pouco celebrados fenômenos estão dando forma ao mundo contemporâneo. O primeiro é o fato de que pela primeira vez na história mais pessoas vivem sob governos democráticos do que sob ditaduras. O segundo é a expansão geométrica da internet. O terceiro é a consolidação das ONGs como organismos de ação de amplitude mundial.
Veja - Tirando o fato de que só em raras ocasiões as nações democráticas fazem guerra entre si, que outras oportunidades foram abertas pelo fenômeno que o senhor descreve?
Clinton - A explosão do uso da internet como uma ferramenta da cidadania tem sido vital. Os chineses, por exemplo, usaram a internet para obrigar seu governo a reconhecer a gravidade da doença conhecida como sars, a gripe asiática, e tomar as medidas necessárias para impedir o avanço da epidemia. Depois do terrível tsunami que arrasou o sudeste da Ásia no fim do ano passado, 30% dos americanos fizeram doações às vítimas. Metade das doações foi feita via internet.
Veja - São dezenas de milhões de pessoas. Isso é muito interessante...
Clinton - É inacreditável. Junte-se a isso a capilaridade das ONGs nos países em desenvolvimento e nos países ricos e temos um cenário bastante otimista. A explosão das ONGs vai desde a fundação do Bill Gates, que gasta bilhões de dólares em tratamentos de saúde na Índia e na África, até as organizações menores que dão microcrédito na América Latina, na África e no sul da Ásia. Bem, o que acho que posso fazer para ajudar é proporcionar a toda essa gente a chance de focar suas ações de modo que elas se tornem mais efetivas. Espero criar um ambiente em que líderes empresariais, líderes trabalhistas, políticos e ONGs possam se sentar juntos e dizer: bem, essas são as coisas que precisamos começar e terminar no prazo de um ano, essas são as áreas que achamos vitais para o nosso futuro comum.
Veja - Grandes projetos costumam ser muito convidativos para a ação dos corruptos. O senhor não teme que isso ponha tudo a perder?
Clinton - Não é preciso que os projetos sejam grandes. Eles precisam ser funcionais. O Brasil tem pelo menos dois casos de sucesso e que podem servir de exemplo para o mundo. Um deles é o programa de distribuição de medicamento antiviral para portadores de aids. O medicamento chega até mesmo às populações mais distantes, inclusive a pacientes indígenas que nem sequer falam português. Isso é uma coisa extraordinária. Nenhum outro país do mundo tem um projeto comparável ao do Brasil. Outro programa do qual os brasileiros podem se orgulhar é aquele em que as mães de famílias pobres recebem periodicamente uma quantia em dinheiro como incentivo para manter seus filhos na escola. Acredito que haja diversas maneiras de financiar projetos sem correr o risco de alimentar a corrupção. Para isso a qualidade das pessoas é fundamental. Em muitos países do extinto bloco comunista, existem às vezes vinte ou cinqüenta pessoas realmente capazes no governo em meio a uma burocracia apodrecida e que não funciona mais. O que podemos fazer? Identificar as boas pessoas e ajudá-las. Concordo que quando o governo é desonesto a ajuda equivale a jogar dinheiro no ralo.

Veja - A idéia de que algumas boas pessoas no lugar certo podem fazer a diferença é reconfortante, não?
Clinton - Sim. Mesmo em países sem uma governança muito efetiva existem pessoas desamparadas mas inteligentes que estão conseguindo sobreviver com tudo conspirando contra elas. Quando uma boa rede de ONGs chega a um lugar assim, o trabalho delas pode salvar muitas vidas, abrir empresas e promover o crescimento econômico.
Veja - A ajuda que seu governo deu ao Brasil nos anos 90 impediu que o país quebrasse e fez do senhor a segunda personalidade internacional mais admirada pelos brasileiros, atrás apenas do papa. O atual presidente americano, George W. Bush, é visto no Brasil de maneira bem menos lisonjeira. Como o senhor explica essa diferença de percepção?
Clinton - Tenho certeza de que os brasileiros também não concordaram com todas as decisões que eu tomei como presidente. É impossível que as pessoas concordem integralmente com as decisões tomadas por um líder de um país grande e influente como os Estados Unidos, que tem responsabilidades e interesses em diversas partes do mundo. Mas eu sempre me preocupei em demonstrar que estava do lado das pessoas e me preocupava com seu bem-estar. Acho que consegui deixar a imagem de alguém que trabalhou pela construção de um mundo que fosse melhor para todos. Acredito também que os Estados Unidos devem estar sempre prontos a ajudar as pessoas quando elas estão dispostas a fazer a coisa certa. Quando ajudamos o Brasil no fim dos anos 90, o país caíra vítima de uma crise financeira internacional, quase uma crise de pânico, pela qual os brasileiros não tinham nenhuma responsabilidade. Por isso, achamos nosso dever impedir que os brasileiros sofressem com a crise em um momento em que tinham um bom governo e uma política econômica correta. Acho que o presidente Bush está aos poucos concordando com esse tipo de abordagem. Quando mandamos soldados não para lutar numa guerra mas para ajudar as pessoas depois do tsunami, a aprovação dos Estados Unidos nos países muçulmanos da Ásia subiu de 36% para 60%. A idéia predominante deve ser a de que compartilhamos o mesmo planeta e o mesmo futuro. Portanto, nosso poder e riqueza devem ser usados para ajudar as pessoas que precisam de nós.
Veja - O senhor se imagina voltando à Casa Branca na condição de "primeiro-marido"?
Clinton - Não sei nada sobre isso. Você conhece minha mulher. Tenho muito orgulho dela, que vem fazendo um trabalho excepcional no Senado americano. Ela vai tentar a reeleição por Nova York em 2006. Antes de pensar em qualquer outra coisa, ela precisa enfrentar essa campanha. O que posso dizer é que estou muito feliz com o trabalho da minha fundação, tentando salvar vidas e resolver problemas. Agradeço todos os dias pela vida que levo e pelo trabalho político de minha mulher. Não posso dizer mais nada sobre isso agora.

Veja, 17/08/2005, Entrevista, p. 11, 14-15

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