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O mercúrio maldito

CB, Brasil, p. 18
14 de Abr de 2005

O mercúrio maldito
Pesquisa com 700 garimpeiros do Pará atesta que pelo menos 50% deles estão com problemas de saúde por causa do metal, que degrada o meio ambiente. Ingestão de peixes do Tapajós é perigosa, diz MCT

Ullisses Campbell
Da equipe do Correio

O município de Itaituba, no Pará, já foi o maior produtor de ouro no mundo. Com a maioria das minas esgotadas, os 96 mil habitantes da cidade convivem hoje com uma herança maldita deixada pela época gloriosa dos garimpos. O Ministério de Ciência e Tecnologia divulgou ontem uma pesquisa feita pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem) e Instituto Evandro Chagas (IEC) que revela o alto índice de contaminação por mercúrio dos peixes do leito do Rio Tapajós, principal fonte de alimentação para os habitantes da região. O metal líquido é o principal insumo utilizado na lavra manual de ouro em toda a Amazônia e hoje passou a ser uma ameaça a quem nunca chegou perto de um garimpo.
O estudo feito pelo Cetem e IEC foi dividido em duas etapas. O primeiro analisou a contaminação no meio ambiente. Os pesquisadores retiraram centenas de peixes de 30 espécies diferentes, todas bastante consumidas na Amazônia. Em 65% das amostras, havia índice de contaminação pelo metal acima do aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é 0,5%. Os peixes foram coletados em duas comunidades onde há maior concentração de garimpos, São Chico e Creporizinho. Em determinadas áreas pesquisadas, o teor de mercúrio encontrado em peixes chega a ser 40 vezes maior do que o estipulado pela OMS. "Tomara que ninguém coma esses peixes", avisa a pesquisadora do Cetem, Zuleica Castilhos.
Na outra etapa do estudo, feito pelo Instituto Evandro Chagas, órgão do Ministério da Saúde, os resultados são mais alarmantes. De 700 pessoas examinadas, 50% delas continham mercúrio no organismo em índices superior as níveis aceitos pela OMS. "O maior problema dessa contaminação é que nem a ciência conhece direito como o mercúrio age a logo prazo no organismo", alerta o pesquisador José Maria Bouth, da Universidade de Brasília (UnB).
Ciclo perigoso
Sabe-se, com certeza, hoje, que para chegar ao organismo, o mercúrio percorre um longo caminho. Segundo estimativas do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), só na década de 80 os garimpeiros que atuavam no leito do Tapajós despejaram 600 toneladas de mercúrio nas águas do rio. O metal, no fundo das águas, transforma-se em várias formas orgânicas que são absorvidas por diversas espécies de algas marinhas, que servem de alimentos para peixes menores. Já os pescados maiores, que geralmente são carnívoros, alimentam-se das espécies menores que já estão contaminadas (leia mais no quadro ao lado).
Em Itaituba, o levantamento envolveu garimpeiros e ribeirinhos, como são chamadas as pessoas que moram às margens dos rios na região amazônica. No estudo do Instituto Evandro Chagas, além de contaminação pelo mercúrio, os pesquisadores constataram cinco novos casos de hanseníase. "Essa informação é considerada grave, porque mostra que o bacilo da doença não está sob controle e vem circulando na região", atesta Iracina de Jesus, pesquisadora do IEC.
No relatório do Cetem, a pesquisadora Zuleica Castilho mostrou que a contaminação pelo mercúrio é bem mais perversa do que se imaginava. Isso porque a maioria dos garimpeiros que seguiram para Itaituba saiu do Nordeste, principalmente do Maranhão. E esses migrantes não têm o hábito de comer peixe de rio, como traíras e curimatãs. "Com isso, a maioria das pessoas contaminadas é da região. São pessoas humildes e que dependem desse peixe para sobreviver", atesta a pesquisadora.
Queixas e cobranças
A presidente da União dos Garimpeiros do Brasil, Jane Resende, disse que o governo já divulgou mais de dez pesquisas revelando que os garimpeiros estão contaminados por mercúrio e até agora não tomou nenhuma providência. "Os médicos vão lá, coletam sangue, levam fios de cabelos e pedaços das nossas unhas para fazer exames. Depois reúnem a imprensa para dizer que nós estamos contaminados. Nós, garimpeiros e pacientes, sequer recebemos o resultado desses exames", critica Jane Resende.
O pesquisador Saulo Rodrigues, um dos coordenadores do estudo, garante que desta vez os pacientes receberão os resultados dos exames de sangue. Ele ressalta que realmente já foram divulgados dez estudos semelhantes na última década. "Enquanto o governo não regularizar essas áreas de garimpos, os estudos servirão apenas para fazer alardes", reage a presidente do sindicato dos garimpeiros.

Risco para os índios
Não é a primeira vez que o Instituto Evandro Chagas (IEC) encontra índices alarmantes de mercúrio em pessoas que moram em área de garimpo na Amazônia. No ano passado, médicos do órgão do governo federal fizeram uma pesquisa em duas aldeias indígenas de Rondônia e descobriram que os índios Pakaanóva também estão expostos a um alto nível de intoxicação pelo metal.
Nas pessoas analisadas, foi constatado um índice médio de exposição a esse metal 40% acima do tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No caso mais grave, o de uma criança indígena, essa concentração era 14 vezes maior do que os níveis aceitáveis pela OMS. "Os sintomas mais freqüentes incluem alterações na coordenação motora e diminuição da acuidade visual", ressalta Iracina de Jesus, pesquisadora de meio ambiente do IEC e principal autora do estudo.
A área habitada pelos Pakaanóva, nos municípios de Guajará Mirim e Nova Mamoré (RO), está sob a influência da bacia do rio Madeira, onde é feito o garimpo de ouro. Desde o final dos anos 70, a atividade é responsável pela emissão de mercúrio no ambiente. O ouro de granulação fina é recuperado do leito dos rios pela formação de uma amálgama com a forma metálica do mercúrio.
Crianças
A população indígena nos municípios estudados é estimada em 2,1 mil indivíduos. Os técnicos do IEC pesquisaram 910 deles, que moram em nove aldeias. As medições, feitas pela análise de fios de cabelo, revelaram um teor médio de mercúrio de 8,37 microgramas de mercúrio por grama de cabelo (mg/g). A OMS considera como limite de tolerância biológica 6 mg/g.
Tanto nas aldeias indígenas quanto nas comunidades de não-índios, as crianças apresentaram exposição ao mercúrio maior que a dos adultos. Por conta desse fato, os pesquisadores concluíram que a contaminação por esse metal é cumulativa. É possível que haja exposição intra-uterina e pela amamentação.
A tese da contaminação intra-uterina também foi comprovada em 2003, quando outro levantamento do IEC atestou que 60% dos bebês que nasceram nas maternidades públicas do município de Itaituba (PA), entre fevereiro e dezembro de 2002, sofreram os impactos da contaminação. Depois que a mina de ouro de Serra Pelada se exauriu, no final dos anos 80, Itaituba passou a ser o maior produtor de ouro garimpado manualmente do país.(UC)

CB, 14/04/2005, Brasil, p. 18

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