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O laboratório da floresta

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
30 de Jul de 2004

O laboratório da floresta

Washington Novaes

Talvez a definição sobre os rumos da Amazônia tenha encontrado seu "turning point" com os debates que ocorreram nas duas últimas semanas, na 56.ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Cuiabá - relatados neste jornal com muita propriedade por Evanildo da Silveira - e em Brasília, onde se apresentaram os resultados dos trabalhos de 800 cientistas de várias partes do mundo no âmbito do Experimento em Grande Escala da Biosfera/Atmosfera na Amazônia (LBA).

Em Mato Grosso - que é hoje o Estado campeão do desmatamento -, o presidente da SBPC, Ennio Candotti, propôs para a Amazônia "uma moratória: parar de derrubar árvores para boi pastar e plantar soja". Se não for possível, disse ele, "a vida civilizada nessas terras será impossível". Além de indicar a alternativa para a sojicultura e a pecuária - aproveitar os 631 mi km2 já desmatados na região -, Candotti foi ao ponto crucial. "Na sociedade do conhecimento, todos os povos gostariam de ter um laboratório desses: uma floresta em pé."

De fato, esse bioma, segundo os pesquisadores do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), tem de 5 mil a 7 mil espécies de animais, de 15 mil a 20 mil plantas superiores, talvez 100 mil espécies de microorganismos e milhões de invertebrados. Quanto vale esse patrimônio? Se se admitirem os cálculos do cientista R. Constanza e outros na Universidade da Califórnia, os serviços prestados gratuitamente pela natureza (fertilidade do solo, regulação do clima, serviços hídricos, aplicações da biodiversidade, etc.) podem valer até três vezes mais que o PIB mundial; e nesse caso a Amazônia certamente vale mais que o PIB brasileiro.

E há muitos indícios nessa direção. Por exemplo, a recente notícia de que o Instituto Butantan, de São Paulo, identificou no veneno da cobra cascavel um analgésico 600 vezes mais potente que a morfina, sem causar dependência. Ali mesmo já fora descoberto um betabloqueador da pressão arterial humana muito mais eficaz que os conhecidos. E mesmo estes partiram da descoberta de um cientista brasileiro, Sérgio Ferreira, que identificou no veneno da cobra jararaca uma substância capaz de bloquear a pressão. Mas não teve recursos para desenvolver seu trabalho no Brasil, precisou aceitar convite de um laboratório dos EUA - e hoje o Brasil paga fortunas para reproduzir aqui essa descoberta.

Chega-se aí a um dos nós da questão: o Brasil investe muito pouco em pesquisa e desenvolvimento científicos. Como desatá-lo? Principalmente, como desatá-lo fazendo da biodiversidade, em especial na Amazônia, a base mais segura para outros formatos de desenvolvimento?

A Amazônia, diz-se, representa 8% do PIB brasileiro. Mas só recebe 2% dos investimentos nacionais em ciência. Por isso, mostrou na reunião da SBPC Adalberto Luís Val, do Inpa, de cada cinco artigos científicos sobre a região, quatro são de pesquisadores estrangeiros. O próprio Inpa, por falta das verbas mais corriqueiras, vive às voltas com crises, sem dinheiro para pagar a conta de energia ou papel das impressoras de computador.

O problema não está só no caso específico da Amazônia. Levantamento recente em artigos científicos publicados pelas revistas conceituadas da área mostrou que o Brasil ocupa o 24.o lugar entre 31 países. Nenhuma das fundações de apoio à pesquisa nos Estados brasileiros recebe tudo o que a lei manda (em geral, 1% a 2% da receita orçamentária). As que estão em melhor situação, em São Paulo e na Bahia, têm de contar-se com 20% a 50%.

E, se a biodiversidade é provavelmente a nossa maior chance de um desenvolvimento sustentável, deveríamos "fazer no setor farmacêutico o que a Embrapa fez no agronegócio", disse na SBPC o professor João Batista Calixto, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Até por questões de soberania e segurança nacional, afirmou ele, o Brasil precisa desenvolver uma política competente na área de fármacos e medicamentos (Estado, 22/7): "O Brasil não pode ser eternamente, como é hoje, um embalador de sais, dependente de outros países." Por isso mesmo, julga acertada a decisão governamental de colocar os fármacos como uma das quatro prioridades da política industrial.

Sempre é tempo de reparar os descaminhos da política, como o abandono da Central de Medicamentos, confundindo o bebê (a pesquisa e o desenvolvimento farmacológico) com a água do banho (as denúncias de corrupção). Ou o despreparo com que as lideranças políticas da época, no começo da década de 1990, aprovaram a lei da propriedade industrial (reconheceram "direitos" que deveram ter sido mais discutidos, desprezando a opinião contrária da SBPC e da Associação Brasileira da Indústria Química Fina), ou a nossa diplomacia aceitou os termos do acordo sobre comércio de propriedade intelectual (TRIPS), no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC).

As conseqüências estão aí: as empresas no Brasil só investem 0,64% de sua receita líquida em pesquisa e desenvolvimento; nas empresas nacionais com mais de 500 empregados, só quatro, em média, trabalham nessa área, contra 17 nas transnacionais (Estado, 13/7); entre 1994 e 2002, dos 185 mil pedidos de registro de inovação, invenção ou design no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, 113 mil (61,1%) eram de empresas estrangeiras, só 71 mil (38,3 %) de nacionais. Em 21 anos, as universidades brasileiras só pediram 1.012 registros de patentes.

O ministro da Ciência a Tecnologia, Eduardo Campos, anunciou na SBPC que o estudo dos biomas brasileiros (Amazônia, cerrado, mata atlântica), Pantanal, semi-árido e plataforma marítima será um dos eixos da política científica, que terá R$ 37,6 bilhões em investimentos (foram apena R$ 24,4 bilhões de 2000 a 2003). É uma boa notícia. Para ser conferida: afinal, até aqui, como disse o representante do Ministério do Meio Ambiente, Antônio Carlos Hummel, nossas políticas públicas "favoreceram e ainda seguem favorecendo o desmatamento na Amazônia".

Resta, então, ver como se comportarão no caso da Amazônia (cerrado é caso perdido) ministérios como o da Agricultura e o do Desenvolvimento. A palavra da ciência está dada.

OESP, 30/07/2004, Espaço Aberto, p. A2

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