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O "koatiá" e as crianças

Adital - http://www.adital.com.br/
Autor: Egon Dionísio Heck
29 de Abr de 2010

O documento, papel, denominado genericamente pelos Kaiowá Guarani de koatiá, tornou-se hoje uma espécie de extensão da voz, com o qual buscam chegar aos senhores que decidem, à alma do poder. Razão pela qual não se cansam de fazer documentos sobre a dramática situação em que vivem ou suas reivindicações mais imediatas de sobrevivência. Buscam entregá-los a alguma autoridade que possa resolver o problema. A Aty Guasu é também uma espécie de desaguadouro para onde fluem inúmeros documentos, levando os gritos de socorro para mãos, mentes e corações que os acolham e respondam. As pastas das autoridades que comparecem à grande Assembléia Guarani retornam engravidadas de clamores e pedidos que garantam a vida e dignidade das comunidades/aldeias.

A benção

Os documentos, além de receberem o apoio da Assembléia e assinatura dos presentes, é também abençoada pelas lideranças religiosas (nhanderu e nhandesi) presentes. Aspergidos com água do compromisso são abençoados ao som e ritmo de cantos rituais. Como uma espécie de porta voz da esperança, são também abençoadas as crianças. Ritual muito bonito, emocionante, que faz verter lágrimas e sentimentos de profunda crença num futuro melhor para as vidas frágeis ungidas com a água e fé.

Anastácio, liderança que representa os Kaiowá Guarani na Comissão Nacional de Política Indigenista, desta vez teve uma missão especial. Entregar o koatiá da Aty Guasu pessoalmente ao presidente Lula, na comemoração da homologação na Raposa Serra do Sol, em Roraima. Vê-lo com uma criança no colo segurando o documento, não contendo as lágrimas, foi um dos momentos fortes deste grande encontro Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

No documento destacam algumas das exigências "Queremos reposta decisiva e eficaz com a punição dos assassinos de dezenas de nossas lideranças. Exigimos esclarecimentos porque não tem nenhum assassino de índios na prisão enquanto as cadeias estão cada vez mais cheias de nossos parentes. Achamos muito estranho a atuação da justiça, rápida nas ações contra nós indígenas e extremamente lenta quando se trata dos nossos direitos. São muitas as injustiças nas decisões contra nossos direitos à terra. Consideramos isso uma violação da Constituição".

Memória das lutas e lutadores

Um dos momentos fortes foi quando as lideranças mais idosas fizeram o relato do processo de lutas pela reconquista de seus tekohá (terras tradicionais) a partir do início da década de oitenta. Os relatos foram se sucedendo com detalhes impressionantes sobre o planejamento e estratégias que garantiram o retorno e permanência em mais de uma dezena de terras, sem derramamento de sangue. Situação muito diversa da que tem marcado os últimos anos quando inúmeras lideranças foram assassinadas pelos pistoleiros e jagunços dos fazendeiros. Em suas falas as lideranças, especialmente das cinco terras indígenas do município de Paranhos, destacaram sua angustia e revolta por não terem suas terras de volta. Apesar de todas já estarem em diversos estágios do processo de regularização, as terras, em sua grande maioria, continuam nas mãos dos fazendeiros, como é o caso de Arroyo Korá onde se realiza a Aty Guasu. É uma área já demarcada de mais de 7 mil hectares dos quais a comunidade está apenas de posse de setecentos hectares.

É também nesta região de recentemente foram assassinados os professores Guarani Jenivaldo e Rolindo quando voltaram à sua terra tradicional do Ypo'i. Nesse processo de luta mais recente um dos primeiros a derramar seu sangue foi Marçal Guarani em Campestre/Nhanderu Marangatu. Com muita indignação foram sendo lembrados os lideres que tombaram, e a impunidade dos assassinos. A partir de amanhã está previsto o início do julgamento dos assassinos de Marcos Verón. O julgamento será em São Paulo, para onde o processo foi desaforado, a pedido do Ministério Público Federal. Esperam a condenação deste crime e que não continue a impunidade que estimula o assassinato das lideranças e lutadores desse povo heróico.

Um aspecto importante debatido e assumido foi a criação do Conselho da Aty Guasu como instancia operacional de organizar não só os grandes encontros, mas também encontrar respostas para os diversos desafios que vão emergindo no andar da luta.Foram escolhidos dois representantes por cada uma das seis regiões em que se organizou as comunidades/aldeias. Também foram assumidos gestos concretos de solidariedade com várias situações de fortes ameaças a lideranças e comunidades, como no caso de Kurusu Ambá e de extrema precariedade como nos casos dos acampamentos Laranjal Takuara (Jardim) e Laranjeira Nhanderu (Rio Brilhante).

Campanha/Movimento Povo Guarani Grande Povo
Cimi Dourados 11 de abril de 2010

Documento da Aty Guasu de Arroyo Korá

ATY GUASU KAIOWÁ GUARANI EM ARROYO KORÁ

Declaração pela terra e fim da impunidade

Nós lideranças Kaiowá Guarani de mais de 30 comunidades de terras e acampamentos indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul, reunidos em mais uma Grande Assembléia para discutir nossos problemas e tomar as decisões tomadas em conjunto pelos mais de quinhentos participantes, com especial destaque para os Nhanderu e Nhandesi, nossos lideres espirituais, nossos estios, que nos guiam no rumo da terra sem males

Viemos para cá para dar força aos nossos parentes que tiveram liminarmente suspensa a homologação de sua terra pelo ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal. O mesmo aconteceu com a terra indígena Nhandu Marangatu, já em 2007 e até hoje não foi julgado pelo STF.Não entendemos por que continuam fazendo essas injustiças com o nosso povo. Estamos na região de fronteira. Para nós essas decisões incentivam organizações criminosas na fronteira, de pistoleiros, traficantes de armas e drogas. A terra indígena demarcada traria mais segurança para a região de fronteira.

Estamos também aqui para dizer "basta de derramar sangue para recuperar nossas terras!" Os professores Genivaldo e Rolindo, retornaram com sua comunidade à terra tradicional de Ypo'i. Genivaldo foi cruelmente assassinado, tendo possivelmente o mesmo acontecido com Rolindo, com o agravante de que o seu corpo até hoje não foi localizado. Um silêncio mortal continua a afligir os pais, filhos e esposa, sem que tenham qualquer resposta e sequer empenho em elucidar os fatos.

Em nossa última Aty Guasu damos mais um prazo de 30 dias para que a FUNAI desse respostas com relação à publicação dos relatórios de identificação de nossas terras. Depois desse prazo comunidades voltaram a seus tekohá. Foram expulsos a bala, índios foram feridos e assassinados. Kurusu Ambá também voltou pela quarta vez à sua terra. No momento pesa sobre a comunidade mais uma expulsão. O mesmo acontece com a comunidade Terena de Cachoeirinha, que nesses dias da Aty Guasu recebeu a polícia que veio expulsar a comunidade da retomada. A comunidade de Laranjeira Nhanderu continua jogada à beira da estrada numa situação de calamidade absurda sem que se de qualquer solução.

Essa é uma situação inconcebível, num Brasil que tanto se propõem no cenário internacional e não se dispõem a resolver questões elementares de direitos constitucionais e humanos.

Queremos reposta decisiva e eficaz com a punição dos assassinos de dezenas de nossas lideranças. Exigimos esclarecimentos porque não tem nenhum assassino de índios na prisão enquanto as cadeias estão cada vez mais cheias de nossos parentes. Achamos muito estranho a atuação da justiça, rápida nas ações contra nós indígenas e extremamente lenta quando se trata dos nossos direitos. São muitas as injustiças nas decisões contra nossos direitos à terra. Consideramos isso uma violação da Constituição.

Na próxima semana está previsto o julgamento dos assassinos do líder Kaiowá Guarani Marcos Verón, assassinado quando voltou à sua terra tradicional de Takuara. Esperamos que seja feito justiça e que os assassinos paguem por esse crime.

Estamos cansados de ser tratado com assistencialismo, que nada mais é do que uma forma de calar nossa boca, tentar silenciar e abafar nossa reivindicação da terra. Queremos diálogo, participação e protagonismo na definição das políticas públicas que nos dizem respeito. Apesar de alguns esforços constatamos um retrocesso neste sentido.

Exigimos do governo brasileiro atuação urgente para a conclusão da identificação de todas as terras Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul. Não agüentamos mais essas demoras e paralisações do trabalho, despejos e violências, racismo, discriminação e genocídio.

Já fizemos centenas de documentos, estabelecemos inúmeros prazos, andamos em várias regiões do país e do exterior levando nosso grito de socorro. Nossa voz parece não ter resposta. Talvez só nos resta ir para os tribunais e solidariedade internacionais para que nossos direitos sejam respeitados, nossas vidas e cultura preservada, nossos sonhos e luta pela terra sem males tornada realidade.

Acima de tudo acreditamos no poder de nossa união, na força de nossas raízes e cultura, na firmeza de nossos lideres religiosos e no sangue derramado pelos nossos lideres. Seguiremos com a mesma disposição e certeza com que nos fez viver e sobreviver a mais de 500 anos de invasão, destruição e guerra.

Terra Indígena Arroyo Korá, 10 de abril de 2010

* Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=47344

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