VOLTAR

O índio restaurado

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: MAGNOLI, Demétrio
13 de Dez de 2007

O índio restaurado

Demétrio Magnoli

Evo não é Hugo. A nova Constituição boliviana, ao contrário do falido projeto constitucional chavista, não é a pedra da lei de uma ditadura. A única ruptura com a regra da divisão de Poderes é a determinação da eleição direta de juízes dos altos tribunais, que submete o Judiciário às oscilações de maiorias circunstanciais. Fora isso, artigo por artigo, a Constituição equilibra os poderes do presidente e do Parlamento e consagra as liberdades políticas, os direitos civis e os direitos humanos. No sonho de Hugo, a Venezuela é uma emanação da sua vontade revolucionária. No sonho de Evo, a Bolívia é a moldura para o renascimento das 'nações indígenas originárias'.

O Estado liberal boliviano inscreveu nas leis a igualdade política dos cidadãos, mas, como nos tempos coloniais, os índios continuaram a ser tratados como não-cidadãos. Sob um apartheid implícito, eles não tinham direito de voto, por serem analfabetos, viajavam amontoados em vagões ferroviários de terceira classe e eram expulsos a pontapés das calçadas das praças. A nova Constituição, que define a Bolívia como um 'Estado Unitário Plurinacional', representa uma renúncia ao princípio de direitos universais. No seu lugar, os constituintes estabeleceram direitos coletivos singulares para as 'nações indígenas' nos campos da representação política e da administração da justiça.

Uma revolução nacionalista sacudiu a Bolívia em 1952. O levante dos mineiros de estanho desmantelou o Estado liberal quase fictício, que apenas chancelava os negócios da 'rosca', o cartel minerador dominado pela família Patiño. O poder caiu nas mãos do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e, no seu efêmero período heróico, a revolução nacionalizou as minas, implantou o sufrágio universal, deflagrou a reforma agrária e introduziu a educação rural. Os operários das minas eram indígenas, mas a sua revolução não reconhecia diferenças étnicas ou culturais entre os bolivianos. A nova Constituição de Evo Morales representa uma renúncia à nação única dos revolucionários de 1952. As carteiras de identidade poderão trazer a 'identidade cultural' dos cidadãos e as entidades autônomas indígenas escolherão deputados ao Parlamento segundo procedimentos tradicionais de 'democracia comunitária'.

Entre os 9,1 milhões de bolivianos, os índios são cerca de 5 milhões. Quíchuas e aimarás somam 90%, mas existem outros 34 grupos lingüísticos. No último meio século a população urbana da Bolívia saltou de 34% para 65% do total. Hoje, metade dos índios vive nas cidades. O espanhol, antes idioma exclusivo dos brancos e mestiços, converteu-se na língua de 80% dos bolivianos e entre os índios é tão falado quanto o quíchua e o aimará. El Alto, na periferia de La Paz, que tinha 3 mil habitantes em 1950, tornou-se a maior cidade indígena do mundo, com mais de 870 mil habitantes, superando a própria capital. A cidade funciona como nexo político e cultural entre as comunidades aimarás do interior, La Paz e as correntes de informação globais.

Ironia da história. Quando os índios bolivianos eram índios, não existia uma 'questão indígena' na tela da política da Bolívia. Hoje, quando as identidades indígenas tradicionais se dissolvem nos caldos transculturais da globalização, a Constituição restaura um índio imaginário, ancestral e originário. Nas entidades autônomas indígenas, o novo texto constitucional determina a vigência exclusiva da 'justiça indígena originária', exercida por autoridades tradicionais.

Não foi Evo Morales e muito menos as comunidades indígenas do interior que ergueram a bandeira do Estado Plurinacional. Há duas décadas, os únicos que falavam numa 'questão indígena' eram os kataristas, um pequeno movimento político de aimarás urbanos. O tema explodiu no cenário nacional em 1992, com a aliança eleitoral entre o MNR e os kataristas que levou ao poder o governo ultraliberal de Sánchez de Lozada, cujo vice-presidente era o intelectual aimará Victor Cárdenas. Sob aquele governo, uma alteração constitucional definiu a Bolívia como país multiétnico e concedeu participação da 'sociedade civil' (leia-se ONGs) nos governos locais. A nova Constituição radicaliza o experimento, permitindo que municípios e regiões se declarem indígenas por decisão de maioria. No Altiplano, em cidades e áreas mistas, minorias brancas e mestiças podem ver-se excluídas do sistema nacional de justiça, bem como do direito de eleger representantes pelo voto direto.

Evo Morales emergiu como líder sindical dos cocaleros e, fiel ao paradigma da nação única, enxergou-se a si próprio e à sua base social como camponeses bolivianos, não como indígenas originários. Só mais tarde, no limiar do poder, para capturar a bandeira do MNR e dos kataristas, descobriu-se como índio e passou a descrever a Bolívia nos termos elaborados pelos intelectuais do multiculturalismo. A operação propiciou-lhe um novo campo de alianças, com líderes políticos e ONGs internacionais que apostam nas políticas étnicas e manipulam o critério da ancestralidade como veículo para a criação de centros regionais de poder. Em contrapartida, custou a dissidência de nacionalistas como o ex-ministro dos Hidrocarbonetos Andrés Soliz Rada, que acusa o partido de Evo de receber financiamentos do magnata George Soros, sócio da Apex Silver na exploração de minas de prata no Altiplano, e de ONGs americanas e européias.

Em nome de uma história mítica, a Bolívia abdica da sua própria história. A Constituição plurinacional atira o país na fogueira das políticas de identidade. As elites dirigentes da Meia-Lua, no próspero oriente boliviano, só se opõem à nova Constituição porque as autonomias departamentais não lhes entregam uma parcela majoritária das rendas do petróleo e do gás. No mais, estão de acordo com a supressão do conceito de direitos universais e com a separação legal e territorial dos bolivianos de ancestralidade indígena.

Do jeito deles, também são multiculturalistas.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

OESP, 13/12/2007, Espaço Aberto, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.