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O guardião dos povos invisíveis

Terra, p. 74-81
30 de Abr de 2005

O guardião dos povos invisíveis

Sydney Possuelo

Neste momento há centenas de índios vivendo em solo brasileiro que jamais viram a civilização branca. Não sabemos quem são, quantos são ou como vivem. E, se depender deste homem, nunca saberemos
"Vou sobrevivendo ao caos", diz o sertanista Sydney Possuelo numa tranqüila e ensolarada tarde de quinta-feira. Mesmo a resposta a um trivial "como vai?" pode ganhar contornos dramáticos na boca deste homem. O caos a que ele se refere é o da cidade, dos entraves burocráticos do governo, das verbas escassas, dos computadores lentos e obsoletos com os quais Possuelo nunca aprendeu e nem pretende aprender a lidar. Nos corredores do prédio da Funai, a Fundação Nacional do Índio, não raro se ouve esse senhor de 64 anos xingando em alto e bom som qualquer que seja a pedra no meio do seu caminho. Já vai longe o dia em que entrou para o rol do funcionalismo público, mas as quatro décadas de trabalho em Brasília não lhe roubaram a capacidade de indignação. Apenas acrescentaram a ela um toque de rabugice.
Andando pela capital com seu traje cáqui, os cachos grisalhos da barba e do cabelo ligeiramente desgrenhados e os gestos bruscos e imprevisíveis como os de um animal em alerta, Possuelo é uma espécie longe de seu hábitat. Embora saiba comportar-se como um cavalheiro, seu lugar é a floresta, distante do calor seco e ardente do asfalto brasiliense. Em centenas de expedições sob o abrigo das imensas árvores da Amazônia, ele construiu uma carreira dedicada à proteção dos povos indígenas isolados, aqueles que em pleno século 21 conseguiram a façanha de manter-se completamente alheios à civilização branca.
São homens, mulheres e crianças espalhados nos rincões mais impenetráveis da selva, vivendo sem conhecer a existência de um país chamado Brasil. Sobreviveram miraculosamente a 500 anos de resistência, fugindo como bichos acuados, evitando a todo custo o contato com o mundo exterior. Até hoje, não sabemos quem ou quantos são, a que etnia pertencem, que língua falam, quais os seus costumes. E se depender de Possuelo, continuaremos não sabendo.
Desde o início da década de 90, ele inaugurou um novo capítulo na história da política indigenista brasileira: nada de buscar integração ou aproximação de qualquer tipo com os índios isolados. "A Funai não poderia continuar com aquela postura de forçar índios a serem civilizados", explica. A decisão de deixá-los em paz veio depois de mais de 20 anos de profissão e seis primeiros contatos com tribos isoladas, nos quais Possuelo pôde constatar como a presença dos brancos era nociva para os nativos. Muitas etnias acabaram totalmente dizimadas por doenças como a gripe, altas taxas de alcoolismo e até mesmo suicídio. Calcula-se que metade da população de uma tribo morre depois dos primeiros meses de contato com os brancos.
"O governo só tem a ganhar com o isolamento deles. Se não, teria que dar assistência, protegê-los, dar remédios. Se estão isolados é porque querem, então temos que respeitar," acredita Possuelo. Mas respeitar é bem mais complicado do que parece: significa defendê-los de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, missionários, traficantes, exploradores de petróleo, antropólogos e curiosos em geral. Como? Demarcando a área onde vivem sem chegar ao tête-à-tête, de preferência e impedindo a ferro e fogo a entrada de toda essa gente.
Pode parecer mentira, mas Possuelo passa a vida tentando proteger pessoas que ele nunca pretende encontrar. Curiosidade ele tem, mas não é maior que a vontade de preservar a vida e a cultura desses homens invisíveis. Não deixa de ser uma tarefa sem garantias, pois mesmo um idealista como Possuelo sabe que ser humano algum conseguirá deter para sempre o processo de aculturação desses índios. "Eu quero ganhar tempo", diz. "Não para que eles continuem a viver no paraíso. Mas para que o homem branco possa repensar as condições injustas que impôs historicamente a esses povos."
Sem falsa modéstia, Possuelo faz questão de frisar o reconhecimento internacional pelo seu trabalho. Em 1998, recebeu das mãos do rei da Espanha o prestigioso prêmio Bartolomé de las Casas. No ano passado, ganhou a medalha da Royal Geographic Society, uma das mais tradicionais instituições de apoio às ciências geográficas. Defender os índios da ocupação branca rende louros, mas também inimigos e situações arriscadas. Só a malária o atacou 39 vezes. De tanto escapar da morte, há quem diga que ele tem alma de gato.
Em fevereiro de 2000 ele enfrentou uma das piores emboscadas de sua vida. Na época, a Funai estava prestes a demarcar a Reserva Indígena do Vale do Javari, o que interrompeu a pesca predatória, o corte ilegal de árvores e a caça deixando, portanto, muita gente irritada. "Os políticos regionais, o Congresso Nacional, senadores e um bando de canalhas, ladrões de terras e dos bens dos índios queriam paralisar o processo de demarcação", conta. Certo dia, 300 homens armados com espingardas, revólveres e coquetéis molotov invadiram o posto da Funai. Possuelo estava na mira, mas foi salvo graças a uma intervenção da Polícia Federal.
Em outra ocasião esta há mais de 30 anos , um fazendeiro enfiou-lhe uma arma na boca. Possuelo estava tentando apaziguar uma briga entre os índios do Xingu e os moradores de um povoado próximo. Saiu de lá com os três dentes da frente quebrados. Até os próprios índios, seus maiores protegidos, já o seqüestraram. Mas, de modo geral, ele diz ter sofrido mais nas mãos dos brancos que dos chamados "selvagens".
Quando adolescente, Possuelo encantava-se com as incríveis histórias dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas que lia na revista O Cruzeiro. Descobriu o endereço dos sertanistas mais celebrados do Brasil e, com a audácia de um menino de 17 anos, foi atrás de seus ídolos. Logo começou a freqüentar a casa de Orlando. "Eu era o garoto que ia comprar cigarro pra ele toda hora." Pouco a pouco, começou a ajudá-lo em pequenas tarefas. Conseguiu um emprego. "Ficava como carrapato no Orlando, fazendo só trabalho burocrático, mas feliz porque estava ao lado do meu herói." Em 1959, fez sua primeira expedição à Amazônia. O escritório definitivamente não era o lugar daquele garoto.
Hoje, à frente da Coordenação Geral de Índios Isolados, Possuelo tem sob sua batuta um território de aproximadamente 11,5 milhões de hectares. É uma terra do tamanho de Portugal graças, em parte, a ele próprio. De 1991 a 1993, anos em que esteve na presidência da Funai, a área de reservas indígenas demarcadas praticamente dobrou. A primeira a ser homologada durante sua gestão foi a ianomâmi, até hoje a maior do país. A capacidade de negociar tornou-se com o tempo um dos fortes desse homem. No contato com índios e brancos ao longo dos anos, ele aprendeu a lidar com diferenças de códigos, regras sociais e tradições que, por vezes, agridem profundamente os princípios da civilização que conhecemos. Como o costume que algumas etnias têm de matar recém-nascidos com deficiências ou sem condições de serem criados.
Certa vez, quando era diretor do Parque Indígena do Xingu, Possuelo viu uma índia grávida aproximar-se do posto da Funai. Ela estava em trabalho de parto e precisava de ajuda. Mas o filho não tinha pai e, portanto, seria enterrado vivo, como rezava a tradição. Possuelo propôs um trato: ficaria com a criança e, em troca, daria à mãe redes e uma espingarda. A índia topou, mas com a condição de amamentar o bebê. Meses depois, a mãe deixou a criança e foi embora. Alguns dias se passaram e ela retornou. Queria-o de volta. A estratégia de Possuelo funcionara: depois de ter o filho em seus braços por meses, ela não podia mais desvencilhar-se dele.
A última vez que Possuelo resolveu aproximar-se de uma tribo isolada foi em 1996. A situação era a seguinte: ou a Funai tomava providências, ou eles seriam dizimados nos conflitos com a população. Tratava-se dos índios corubos, chamados de "caceteiros" devido à forma com que matavam os adversários: uma paulada na cabeça. Na terceira expedição, após cinco meses na floresta, a equipe de Possuelo acampou a 2 quilômetros das malocas. Uma semana depois, dois índios foram avistados. Primeiro houve uma longa troca de gritos. Mas, como Possuelo sempre leva nativos de várias etnias em seu grupo, logo pôde estabelecer uma conversa na língua de um deles. Não se sabe quem ficou mais maravilhado com quem. Os índios riam, batiam palmas, passavam a mão no cabelo daqueles homens estranhos, davam uma espiadela dentro de suas calças para ver o que escondiam lá dentro. Um instante mágico em que se ergueu uma estreita ponte entre dois mundos.
Uma ponte muito frágil, porém. Dez meses depois, quando os corubos e a Funai já mantinham uma relação cordial, uma triste surpresa. "Nós ficávamos de um lado do rio e eles do outro. Quando precisavam de alguma coisa, normalmente remédio para malária, eles gritavam." Um dia, os índios chamaram e os funcionários atravessaram o rio. Sem motivo aparente, cinco corubos atacaram com flechas e lanças. Raimundo Batista Magalhães, o Sobral, colega de Possuelo por 17 anos, morreu na emboscada. Até hoje ninguém sabe por quê.
Nem mesmo episódios como a morte de Sobral abalam a paixão de Possuelo por sua profissão e, sobretudo, pelos índios. Tanta dedicação aos povos desconhecidos teve um preço alto na sua vida pessoal. Meses e meses em expedições levaram embora três casamentos. Soraya, a quarta esposa, diz não ter mais ilusões: "A prioridade dele sempre foi e sempre vai ser o trabalho".
Quando Possuelo some na floresta, ela fica em casa, preocupada. Sabe que o tempo é implacável e que o marido já não tem a mesma destreza. Diversos acidentes deixaram seqüelas e andar por horas dentro da Amazônia começa a tornar-se cada vez mais penoso. Possuelo se recusa a dar o braço a torcer, mas confessa a inquietação com a falta de continuidade de sua obra. Parece que os sertanistas são uma espécie ameaçada de extinção. "Hoje na Funai há meia dúzia de funcionários e um monte de estagiários. É uma rapaziada que fica seis meses e vai embora. São poucos os que realmente amam a coisa e fazem disso uma bandeira."
A sorte é que, de seus seis filhos, um abraçou a causa. Com 8 anos, Orlando Possuelo começou a acompanhar o pai em viagens às bases da Funai. Participou de expedições e deixou-se envolver pela paixão aos povos isolados. Hoje aos 20, Orlando trabalha em São Miguel do Guaporé, em Rondônia, na Terra Indígena Massaco. "Foi a primeira terra homologada sem ter contato com os índios", diz o filho, orgulhoso. "A gente sabe que eles estão lá, mas fica apenas protegendo a natureza." Orlando já se vê brigão como o pai e diz ter garra suficiente para levar em frente a defesa de gente que ele espera jamais conhecer.

No rastro dos povos isolados
Quando foi criada, em 1987, a Coordenação de Índios Isolados começou a juntar informações sobre regiões que poderiam abrigar etnias escondidas. Eram histórias de ribeirinhos, de sertanistas e de outros índios. Hoje a Funai admite a existência de 41 pontos habitados por tribos desconhecidas. Para se confirmar se existem mesmo índios morando nesses lugares, faz-se primeiro um sobrevôo em busca de malocas e de sinais da presença humana. Algumas vezes, é preciso também determinar com precisão qual a área em que os índios se movem o que só é possível por meio de expedições.
A última grande expedição, realizada em setembro de 2002 no Vale do Javari, percorreu
2100 quilômetros de barco e a pé, em 110 dias. O grupo era formado por 35 pessoas, e dois terços eram índios. Cada um levava nas costas uma
carga aproximada de 38 quilos, com alimentos, facões, machados, materiais para caça e pesca, redes, rádio, pilhas e provisões em geral. Possuelo era o único que carregava uma arma de fogo, no caso de qualquer emergência.
Numa expedição dessas, os primeiros trechos são feitos em barcos grandes, mas é preciso construir canoas para penetrar nos igarapés (foto acima). O feitio de uma canoa demora 15 dias. Quando a expedição se aproxima do local onde moram os índios, é hora de caminhar. O dia começa às 4 e meia da manhã e termina por volta das 3 da tarde. Come-se de tudo. Macaco, mutum, jacu, tatu, porco-do-mato, anta. Dia e noite, os olhos devem estar atentos para qualquer sinal dos índios: galhos quebrados, restos de plantações, malocas, fogueiras. São essas informações de ocupação territorial que tornam possível a criação de uma reserva.

Meio de transporte
Para navegar os igarapés amazônicos, é preciso construir canoas no meio da expedição. Cada barco leva 15 dias para ser feito.

Depois de 20 anos como sertanista, Possuelo viu como nosso contato com os índios podia ser nocivo. Metade da tribo morria logo após conhecer nosso mundo

Os melhores guias
Nas expedições às terras das tribos isoladas, Possuelo sempre leva índios de várias etnias. Além de conhecer a floresta como poucos, eles ajudam a caçar as refeições (à esq.). Se o grupo topar com integrantes de uma tribo desconhecida, só os índios podem estabelecer diálogo.

Seu trabalho é demarcar as terras de gente que ele jamais pretende encontrar. O preço é alto: além de enfrentar fazendeiros, torna-se alvo de índios avessos a intrusos

Homem da selva
Embora tenha um importante papel nos escritórios da Funai, Possuelo gosta mesmo é de exercer seu ofício na floresta, liderando as arriscadas expedições.

O próximo sertanista
Possuelo já tem discípulo. Dos seus seis filhos, Orlando (à dir.) segue os caminhos do pai. É um dos poucos herdeiros da profissão inaugurada pelos célebres irmãos Villas Bôas.
"Eu quero ganhar tempo. Não para que eles continuem a viver no paraíso. Mas para que o homem branco repense as condições injustas que impôs a esses povos"

Floresta adentro
As expedições de Possuelo duram meses. Começam sempre nos rios e, quando o grupo se aproxima do território indígena, embrenham-se a pé mata adentro (abaixo).

É preciso cuidado Sucuris são apenas uma das ameaças de se percorrer os trechos mais inóspitos da Amazônia. Outra são os próprios índios isolados, que não relutam em atacar estranhos.

Brasileiros anônimos
A Funai detectou 41 pontos na Amazônia brasileira habitados por índios isolados. O desafio é mantê-los lá.

O primeiro contato
No final dos anos 80, Possuelo travou contato com os índios zo'é do norte do Pará. Mas não pôde evitar seu rápido processo de aculturação.

Terra, abr. 2005, p. 74-81

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