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O enigma de Buenos Aires

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
17 de Set de 2004

O enigma de Buenos Aires

Washington Novaes

Mesmo com tufões, furacões e cheias devastando a Ásia, partes da América do Central e do sul dos Estados Unidos, o Brasil assistindo a um número recordes de queimadas na Amazônia e no Centro-Oeste, o nível de umidade do ar nesta última parte do País baixando a níveis inéditos e alarmantes, ainda assim não se conseguem passos importantes em direção a medidas concretas para enfrentar o drama das mudanças climáticas. Ao contrário, a Rússia recuou outra vez e anuncia que só depois da próxima reunião das partes da convenção do clima, em dezembro (Buenos Aires), tomará sua decisão sobre ratificar ou não o Protocolo de Kyoto. E assim, pelo menos até lá, ele não entrará em vigor, pois a única outra hipótese para isso seria a de ratificação pelos EUA - que continua fora de cogitação, embora George W. Bush esteja pressionado pelo governo britânico a ratificá-lo e, em relatório ao Congresso, o Executivo norte-americano tenha admitido que as ações humanas são a única explicação plausível para o aumento da temperatura do planeta.
Parecem já não comover apelos como o do diretor-geral do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Klaus Toepfer, lembrando que os gases poluentes da atmosfera respondem por 3 milhões de mortes de pessoas por ano. E que a situação vai piorar, pois a demanda de energia no mundo continua crescendo 1,7% ao ano e assim seguirá até 2030, com a queima de combustíveis fósseis respondendo (nos padrões atuais) por 90% do aumento da oferta. Nada a estranhar, já que só os países desenvolvidos subsidiam esse tipo de energia com US$ 73 bilhões anuais e os investimentos em energias renováveis estão caindo em porcentagem do total.
É certo que o Japão vai propor em Buenos Aires que todos os países se comprometam a adotar, a partir de 2013 (o compromisso de Kyoto encerra-se em 2012), tecnologias capazes de reduzir suas emissões. Não está claro, mas há quem interprete como uma adesão japonesa à tese das emissões de poluentes proporcionais à população em cada país (nesse caso, o Brasil, com cerca de 3% da população mundial, teria "direito" a emissões nessa proporção sobre o total mundial admitido - mas já está um pouco acima).
Enquanto isso, cresce no mundo a pressão em favor da retomada da energia nuclear, principalmente depois de conhecida a tese de James Lovelock (criador da Teoria Gaia) de que não se pode mais contemporizar e seria essa a única forma de reduzir imediatamente as emissões pela queima de combustíveis fósseis. Tese surpreendente e discutível, quando nada porque em média uma usina nuclear leva 15 anos para ser implantada. E não há solução à vista para nenhum dos gravíssimos problemas que a energia nuclear encerra.
Ainda há poucas semanas, houve um vazamento de vapor na usina de Mihama, Japão, exatamente no aniversário da bomba de Nagasaki, o segundo artefato nuclear despejado pelos EUA sobre o Japão em 1945 - repondo em evidência o drama da insegurança nas usinas nucleares.
Poucas semanas antes, um juiz federal norte-americano trouxe para as manchetes o segundo ângulo: cassou a licença concedida pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) para a implantação do depósito de lixo radiativo sob a Yucca Mountain, na Serra de Nevada. Contestada por geólogos e hidrólogos, além do governo do Estado, o depósito, a 300 metros de profundidade sob a base da montanha, segundo a EPA, ofereceria segurança contra vazamentos e infiltrações de água durante 10 mil anos. Mas o juiz lembrou que daqui a 100 mil anos ainda haverá material ativo ali depositado.
E o depósito fica a cinco quilômetros do ponto onde houve há poucos anos um tremor de terra de 5,3 pontos na Escala Richter, como um geólogo do Departamento de Energia dos EUA confirmou ao autor destas linhas no local, em 2000.
Por mais que o lobby da energia nuclear no mundo (e no Brasil) se empenhe em testar afastar temores, os fados parecem conspirar contra. Ainda há poucos dias, a BBC britânica noticiou que cientistas do Instituto de Pesquisas Rothamstead e da Universidade de Southampton encontraram em território inglês resíduos da explosão do reator de Chernobyl (1986), dos testes nucleares norte-americanos no Deserto de Nevada (1952 e 1953) e dos testes no Atol de Bikini (1946). Por essas e outras, recentemente a International Comission on Radiological Protection propôs que os limites radiativos tolerados sejam reduzidos de 40 vezes na Grã-Bretanha e de 100 vezes nos EUA.
Não é tudo. O Parlamento britânico está muito preocupado com os relatórios que mostram que desde 2001 mais de cem vezes houve alertas de que aviões estavam perigosamente próximos das 19 instalações nucleares do país. Nos EUA, outro relatório, sobre o Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México, apontou "falhas de segurança" alarmantes para uma instalação que trabalha com armas nucleares. Em 1999, foram de lá contrabandeadas para a China tecnologias de armas nucleares. Agora, desapareceram dois discos de arquivo com informações "ultra-secretas". O laboratório "está fora de controle", assegura Peter Stockton, pesquisador de uma ONG que trabalha no setor. "O que aconteceu ali nos últimos cinco anos é inacreditável."
Ainda assim, seguem as pressões por aqui em favor de mais uma usina nuclear.
Sem responder o que se pretende fazer com o lixo radiativo das duas já existentes - que continua depositado nas próprias usinas. E sem responder a quem lembra que seus reatores PWR são do mesmo modelo do utilizado pela Tokyo Electric Power, que teve de fechar 17 usinas no ano passado para corrigir problemas com fissuras e buracos nas tubulações de seus reatores - problemas que admitiu haver suprimido de seus relatórios de segurança durante anos.
O que se fará em Buenos Aires?

Washington Novaes é jornalista

OESP, 17/09/2004, Espaço Aberto, p. A2

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