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O corpo, o legado e o futuro do Brasil

O Globo - https://oglobo.globo.com/
Autor: LEITAO, Miriam
27 de Out de 2022

O corpo, o legado e o futuro do Brasil
Um indígena insepulto, o último de seu povo, é a prova da perversidade de um governo que é contra os direitos humanos e contra a natureza

Miriam Leitão

27/10/2022

O corpo de um indígena, o último da sua etnia, está insepulto em Rondônia. É pura maldade. Ele decidiu ficar longe de nós. De todos nós. Essa foi sua decisão, quando o seu povo foi dizimado por grileiros e madeireiros. Sobrevivente do massacre, único do seu mundo, afastou-se de tudo e ficou assim por um quarto de século. Ele fazia suas casas com buraco no meio. Ninguém sabe o motivo, seu idioma ninguém sabe, seus costumes, sua cosmogonia, tudo sempre será mistério. Mas é fácil imaginar que ele queria, ao morrer, descansar na terra onde viveu, onde caçou, onde morou, onde enterrou os seus. Ele permanece insepulto e isso pesa sobre cada um de nós.

Não é nem mais um corpo inteiro. Suas partes foram separadas e colocadas em caixas. Ultraje. Ao persistir em seu território ele fez o favor de proteger esse pedaço da Amazônia para todos nós. É o território Tanaru, ao sul de Rondônia, um oásis. Fez, portanto, um enorme favor ao país inteiro de preservar a mata com a sua própria existência. Ao não desistir da terra, ela ficou protegida temporariamente. Em resposta ao bem que ele nos fez, o governo Jair Bolsonaro, através do presidente da Funai, Marcelo Xavier, tem adiado a entrega dos seus restos à terra que ele amou. Ele foi encontrado há dois meses pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) da Funai. Estava deitado em sua rede ornado de penas de araras como se preparado para a morte. O corpo foi levado para Brasília para estudos, voltou para Rondônia, e acabou prisioneiro de quem, em vida, o desprezou.

As pessoas que me leem podem pensar. O que tem tudo isso a ver com o momento presente tão cheio de emergências? Afinal, dentro de alguns dias iremos às urnas na mais eletrizante e decisiva eleição do período democrático. E ademais, uma jornalista de economia devia estar explicando por que os juros não subiram ontem, se a inflação vai se elevar quando a gasolina for descongelada, quais são os cenários fiscais do país.

Eu, sinceramente, acho que o assunto desta coluna tem tudo a ver com a análise do nosso futuro político, econômico, ambiental e civilizatório. O corpo da pessoa conhecida como "índio do buraco" nos condena. Por tudo. Porque seus parentes morreram, porque nunca soubemos seu nome, porque não nos revoltamos contra a perversidade final de um governo que detesta os indígenas, que desmontou a Funai, que permitiu que o crime avançasse sobre suas terras e os colocasse em risco extremo.

O indivíduo que vivia em Tanaru escolheu o isolamento e se assim o fez não é para ficar exposto em caixas em alguma prateleira da burocracia. Os indígenas isolados estão longe e perto de nós. Longe porque preferiram se afastar, perto porque fazem parte do sistema nacional de proteção do meio ambiente. O indígena de Tanaru também integrava a imensa rede que tem protegido a floresta amazônica.

No momento em que fomos mais sábios, escrevemos na Constituição, artigo 231: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." No momento em que erramos mais, aceitamos um presidente da República que ataca esses direitos constitucionais.

Tanaru insepulto é uma amostra deste tempo infeliz. Bruno e Dom morreram no Vale do Javari e um dos suspeitos do assassinato, o Colômbia, já está solto, apesar de o crime não estar esclarecido, de haver risco de fuga do suspeito, e de a polícia admitir não ser capaz de monitorá-lo. Os Yanomami continuam ameaçados pelo garimpo, os Munduruku, também. As tragédias desses quatro anos são muitas. Foram escolha deste governo.

Escolher a proteção dos povos indígenas e da floresta é a única forma de garantir que o Brasil tenha futuro. E aí, depois de longa caminhada, eu chego no que uma jornalista de economia pode assegurar. Não haverá futuro para o Brasil sem a proteção da Amazônia, ficaremos distantes dos fluxos de capital, seremos párias nos acordos multilaterais, vamos destruir nossa capacidade de produção.

É para o futuro de proteção da floresta que o indígena de Tanaru nos apontava com seu silêncio, sua obstinação e sua resistência. Aos brasileiros cabe honrá-lo. Seus restos devem ser devolvidos à sua terra, e a mata de 8.000 hectares deve ser protegida. Ela é o legado que ele nos deixou.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)

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