VOLTAR

O cirugião ambiental

JB, JB Ecológico, p. 16-19
Autor: CARVALHO, José Carlos
08 de Dez de 2003

O cirurgião ambiental

Hiram Firmino

Duas vezes presidente do Instituto Estadual de Florestas (IEF) e, também pela segunda vez, secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), antes com o hoje senador Eduardo Azeredo e agora com o governador Aécio Neves, o ex-ministro e antecessor de Marina Silva na pasta do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, está a apenas seis meses de concluir o que ele chama de "uma cirurgia no coração" do sistema ambiental. Unir e transformar os diversos órgãos ambientais do seu Estado, nos moldes de agências de meio ambiente e desenvolvimento sustentável do Primeiro Mundo. Desburocratizá-los para não funcionarem mais como "cartórios" verdes. E introduzir o auto e declaratório licenciamento ambiental por parte das empresas, as quais responderão penalmente - e como! - se descobertas na malha fina como danosas ao meio ambiente. São estas as "cirurgias" que Carvalho vem estudando com os empresários e ambientalistas mineiros e pretende também sugerir ao Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), como um meio de extirpar o preconceito de que a questão ambiental entrava o desenvolvimento econômico quando, na verdade, "é a única maneira de ele acontecer de maneira sustentável, não predatória e sem exclusão social', garante nesta entrevista.
JB Ecológico - O senhor vem prometendo rever até junho de 2004 - quando da comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente - todo o sistema legal de licenciamento ambiental que vigora, em Minas, desde 1990, portanto, desde antes da Rio/92. Como será isto?
José Carlos Carvalho - De maneira democrática, com ampla discussão e participação dos segmentos produtivos, dos ambientalistas e da sociedade civil organizada, o que implica diretamente no envolvimento e crivo do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) antes de virar sugestão do Conama, como vimos trabalhando de maneira parceira com os nove Estados da Federação.
Juntos, vamos fazer a indispensável cirurgia no coração do sistema. As iniciativas previstas não só procuram atualizar a política ambiental oficial, como também incorporar novas dimensões conceituais que foram surgindo ao longo dos anos, principalmente nessa última década, e que ainda não fazem parte das políticas públicas de meio ambiente. O objetivo maior é desburocratizar e simplificar o sistema de licenciamento ambiental vigente em Minas e no Brasil. E o momento eletrônico e político é este.
JBE - Como assim?
José Carlos - Em Minas, nossa expectativa é de que, até junho de 2004, todo o sistema esteja informatizado. Quando isto ocorrer, teremos completado uma verdadeira revolução em termos de descentralização de ações, pois onde houver um computador ligado à Internet, aí o cidadão comum terá acesso ao Sistema Estadual de Meio Ambiente e a todos os seus órgãos vinculados, e poderá receber orientação quanto a licenciamento e fiscalização. Isso, falo sem ufanismo, mas com orgulho, pois é fruto de sacrifícios e alto nível de envolvimento de nossos funcionários, é um fato inédito não só em termos nacionais, mas também de América Latina. Vamos, com esse sistema, operar verdadeiro "Eia/Rima" do território do Estado (Eia é a sigla de Estudo de Impacto Ambiental e Rima, de Relatório de Impacto Ambiental, itens obrigatórios, por lei, na obtenção de licenciamento ambiental de grandes projetos). Nós vamos simplificar, de maneira extraordinária, o modo como se aceita e acompanha a proposta de desempenho de toda atividade industrial. Com a informatização acabaremos com a via crucis, a corrida de obstáculos e as montanhas de papel em que se transformou a via crucis de licenciamento de atividades potencialmente poluidoras nesse País. Teremos uma base de dados unificada e geo-referenciada, contendo todas as informações necessárias (rede hidrológica, cobertura vegetal, relevo etc) para decidir sobre os aspectos locacionais do empreendimento.
JBE - E o momento político?
José Carlos - O clima político também é favorável. Nunca tivemos uma integração tamanha com a sociedade civil, as entidades do setor privado, as ONGs ambientalistas. E um governador que, dentre as dez prioridades do Estado elegeu o meio ambiente, e sua transversalidade junto à máquina do Estado, em quarto lugar. É isso que nos anima a desmontar o atual sistema cartorial que virou o meio ambiente na rede oficial, angustiando tanto os técnicos quanto os empresários que precisam de licenciamento ambiental, e ainda hoje se empenham em obtê-la, no Brasil. Chega de acharmos que estamos em barcos diferentes.
O técnico do Governo e o da iniciativa privada têm de trabalhar juntos na solução dos problemas, com os mesmo objetivos. O atual sistema o que faz? Ele transforma o técnico do governo em um burocrata e o técnico empresarial em despachante. É esse modelo que queremos acabar, fazendo com que o licenciamento ambiental e o monitoramento se transformem em instrumentos vinculados à meta de qualidade, tendo como referência espacial a bacia hidrográfica.
JBE Qual a saída para isso?
José Carlos - Adotarmos para os empreendimentos classes I e II, de pequeno porte e impacto insignificante, o autolicenciamento com responsabilidade civil. E obviamente, iremos graduar a sofisticação das exigências à medida que o empreendimento, realmente, tiver grande impacto sobre o meio ambiente. Isto significa que iremos rever também a estrutura de cobrança deste tipo de licenciamento.
JBE - Como será?
José Carlos - A cobrança certa é a que indeniza custos. É com essa filosofia que vamos trabalhar. Se o nosso custo for maior do que o de outro Estado, será vis a vis a qualidade do serviço ofertado, porque temos de comparar banana com banana. Não podemos comparar banana com abacaxi. Por outro lado, com esta nova estrutura, haverá uma redução significativa dos custos de licenciamento para os pequenos e médios empresários, corrigindo, assim, uma antiga injustiça. Metade das informações que eles teriam de colocar em seus relatórios ambientais, para aprovar seus projetos, a um custo altíssimo de serviços de consultoria, já estará, via on line, no sistema ambiental do Estado. Ou do País.
JBE - Poderia explicar?
José Carlos - A tradição da legislação ambiental brasileira é do licenciamento por fonte. Ela ainda não incorporou a visão nova da gestão territorial na qual o meio ambiente e natureza têm de ser vistos no seu conjunto. O licenciamento vai sendo feito por fonte, seguidamente, tipo cachorro correndo atrás do rabo. E ninguém avalia o impacto sinergético. É o que ocorria, por exemplo, com o setor hidrelétrico. A Anel (Agência Nacional de Energia Elétrica) colocava em licitação um empreendimento hidrelétrico. Ela fazia o inventário técnico e econômico. Mas não se dedicava à análise da questão ambiental, nem do empreendimento em si, menos ainda dos efeitos combinados de um conjunto de hidrelétricas numa mesma bacia hidrográfica.

JBE - E aí?
José Carlos - Uma vez adquirido o empreendimento o dono é que tinha de pedir a licença, começando toda a burocracia da licença prévia, depois de instalação etc. Uma coisa de louco, principalmente por se tratar de um empreendimento com investimentos estrangeiros. Como podemos querer que um empreendedor estrangeiro ou brasileiro entenda, que recebeu do governo um potencial para exploração hidrelétrica não licenciado? E mais, como vai entender que, uma agencia oficial comercializou um projeto que ainda não pode ser construído? A resposta para isso, que serve todos os empreendimentos de infra-estrutura, é o Estado brasileiro decidir previamente se o empreendimento tem viabilidade ambiental. Se tem, o empreendedor fica seguro e entra nele. O resto é agilizarmos os procedimentos, desde que respeitando a lei. Se a fase de avaliação previa indicar que os custos ambientais inviabilizam o empreendimento, ele deve ser considerado inviável.
JBE - Para isso, o governo teria de contratar mais funcionários, mais técnicos, já que é notória a falta de pessoal para fiscalizar o meio ambiente do País?
José Carlos - Tradicionalmente, é sempre assim que pensamos: em aumentar o tamanho do Estado. Essa, inclusive, é a clássica resposta do setor público brasileiro sempre que se aponta sua ineficiência em algum setor. Deixar tudo como está e pressionar o governo, seja estadual ou federal, para contratar mais pessoal para administrar o setor ambiental. Uma solução, portanto, não sustentável, na medida em que o custo recai sobre o contribuinte. O governo não tem dinheiro. Ele apenas administra o dinheiro do povo, que é quem paga a conta. É essa consciência que ainda falta ao brasileiro. A de saber que o governo não é uma árvore de natal, de onde sai dinheiro para o que quer, da forma que se quer, como se quer, sem considerar a eficácia do sistema de gestão que está-se buscando.
JBE - Qual a proposta, enfim?
José Carlos - Com a informatização do sistema e o autolicenciamento ambiental, vamos desocupar 6o% do tempo dos nossos técnicos, orientando-os para o que é realmente mais importante e fundamental em termos de fiscalização e aplicação da lei. Ao invés do técnico do Estado direcionar seu tempo ao exame do licenciamento ambiental de um posto de gasolina, nós preferimos que ele se ocupe e se concentre naquelas atividades que têm, efetivamente, efeito poluidor, com alto grau de risco para o meio ambiente e a saúde da população.
JBE - O senhor poderia exemplificar uma situação dessa?
José Carlos - Sim. Hoje, em Minas, nós trabalhamos com o cadastro, recentemente concluído, de 1.305 indústrias com potencial poluidor. Esses dados nos permitem saber que apenas 35 destas indústrias respondem por 91% do total de resíduos sólidos gerados no meio ambiente. É esta a situação. O que queremos é algo mais inteligente e menos oneroso para os cofres públicos: direcionarmos nossos olhos para estas 35. Porque, na hora em que acompanharmos para valer o que estas empresas estão fazendo ao meio ambiente, estaremos fiscalizando 90% de toda a produção de resíduos sólidos que existe e que pode poluir o ambiente.
JBE - Com a unificação dos órgãos ambientais (IEF, Feam, Igam etc) através de um Sistema de Informação Ambiental, mesmo para simplificar e baratear o licenciamento, o Estado não corre o risco de diminuir a qualidade do diagnóstico que é feito pelos Eia/Rimas convencionais?
José Carlos - Vamos ser sinceros. O Eia/Rima hoje é um belíssimo diagnóstico com cinco, ou mais compêndios muito bem elaborados, cinco volumes de diagnósticos setoriais e... meia página de prognóstico. Ora, esse diagnóstico já está todo no computador. O empreendedor contrata uma empresa de consultoria, paga de R$ 5mi1 a R$ 50 mil, para que elas coloquem o nome de uma equipe técnica na capa de algo que já está pronto. Ou seja, nós recebemos um volume de diagnóstico dez vezes maior que de prognóstico, quando este é o que importa realmente, pois aí é que estão as sugestões de solução. Ou seja, o que nós queremos saber, o que realmente conta são as ações para mitigar ou evitar a poluição decorrente de uma atividade efetiva ou potencialmente poluidora, não tem ali o merecido destaque e espaço. Esse é o ponto que queremos atacar. Um sistema só será proativo se ele contribuir para isso. Do mesmo jeito, qualquer gestão ambiental moderna e eficaz, capaz de levar nosso País ter condição efetiva de conter a degradação do meio ambiente, deve vir cada vez mais da pactuação com todos os envolvidos. E não apenas do governo, dos seus órgãos, de cima para baixo. Temos de ser diversos, tal como a natureza, nem que para isso precisemos extirpar gorduras no coração do sistema.

JB, 08/12/2003, JB Ecológico, p. 16-19

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.