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O cinza dos mais pobres

JB, Cidade, p. A17-A18
13 de Jun de 2004

O cinza dos mais pobres
Relatório em CD-ROM da UFRJ revela que populações carentes são as que mais sofrem com poluição no Rio

Gustavo de Almeida

As populações de baixa renda no Estado do Rio de Janeiro são as mais afetadas pelos conflitos ambientais entre o poder público e indústrias poluidoras. Esta é a principal e mais preocupante conclusão do estudo intitulado Mapa da Justiça Ambiental no Estado do Rio de Janeiro, que foi enviado na semana passada em formato CD-ROM às principais autoridades na área de meio ambiente (Ministério Público estadual, comissões legislativas, secretarias estaduais e organizações não-governamentais) e em breve estará disponível na internet. O trabalho, coordenado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, levantou nada menos que 251 registros de conflitos ambientais ocorridos em 49 municípios do Estado, entre 1992 e 2002.
A Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) e o Ministério Público Estadual tiveram ampla participação na elaboração do trabalho, apoiando os pesquisadores da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), organização não-governamental que trabalhou em duas frentes. Ao ar livre, fotografando e verificando locais de despejos de resíduo ou mesmo de desastres ambientais, e destrinchando processos e ações civis públicas nos ministérios públicos estadual e federal. A Feema e a Divisão de Recursos Minerais do Estado do Rio também abriram seus arquivos, revelando registros de centenas de problemas ambientais.
O trabalho começou na gestão de Liszt Vieira na Secretaria Estadual de Meio Ambiente, em 2002, com verbas de medidas compensatórias da Petrobras (ainda relativas ao acidente de 18 de janeiro de 2000). O ex-secretário, hoje presidente da Fundação Jardim Botânico, lembra que a conclusão é velha, mas a forma de apresentá-la é extremamente inovadora.
- Desde que me elegi deputado federal em 1982 pela primeira vez, ainda trabalhando na área ambiental, defendo a tese de que os ricos se protegem mais da poluição do que os pobres. O grande mérito deste trabalho da UFRJ foi mapear tudo usando uma metodologia científica. As decisões do poder público e das indústrias são sempre no sentido de colocar atividades poluentes na periferia. Ninguém vai colocar uma indústria no Leblon - ironiza Liszt.
A navegação no CD-ROM é feita através de um mapa do Estado, dividido em municípios. Há quatro seções iniciais: Atividades Industriais, Ausência de Saneamento, Atividades Industriais com Ausência de Saneamento e Outros. Na categoria Outros, estão incluídas a favelização em área de risco e as tentativas que empresas fazem para retirar populações inteiras de logradouros para a implantação de empreendimentos como o Parque Ecológico da Barra da Tijuca. É exatamente o caso descrito no Processo 1.30.001.000326/2000-41, de uma ação aberta pelo Ministério Público Federal. O processo, aberto em janeiro de 2000, revela que, desde 1985, 170 famílias do Morro do Coroado, em Vargem Pequena, na Zona Oeste, são pressionadas a se transferirem para uma área plana de 10 mil metros quadrados em Vargem Grande. A empresa que pleiteava o terreno onde moram as famílias alegava que o local era Área de Preservação Ambiental (APA). Uma equipe do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) esteve no local e constatou que a alegação não era verdadeira. As famílias, portanto, permanecem até segunda ordem no local.
Porém, o bem e o mal se confundem nesse caso. Ao mesmo tempo em que buscam ajuda contra o poderio das empresas, em relatórios desenvolvidos pelo Ibama, os moradores do Coroado aparecem como vilões. Os técnicos que estiveram no local em 28 de agosto de 2002 constataram diversas modificações como movimentação de terra e desmatamentos de vegetação primária de Mata Atlântica.
Além disso, os rios Marinho e Ubaetê, que circundam o morro, recebiam esgoto in natura. Segundo estudo do ex-subsecretário de Meio Ambiente do Estado (na gestão do secretário André Corrêa), Antônio da Hora, a falta de urbanização das favelas cariocas e o despejo de esgoto nos rios são as maiores ameaças à eficácia de qualquer plano para despoluir a Baía de Guanabara.
- Os afluentes acabam conduzindo o esgoto para a baía. Aí o trabalho leva ainda mais tempo - diz Antônio, que é engenheiro e professor da Universidade Federal Fluminense.
A Feema vem tentando controlar o despejo, com programas de saneamento.
Para o professor Henri Acselrad, diretor do Ippur, o trabalho realizado ao longo de 15 meses pelos pesquisadores abre novas frentes na luta pelo cumprimento do licenciamento ambiental.
- O mapa dos conflitos mostra que os licenciamentos não são mera barreira burocrática ao desenvolvimento. Ao contrário, consideradas as dificuldades das agências públicas em fiscalizar o respeito às normas, os licenciamentos mostram-se, com freqüencia, necessários e mesmo insuficientes para proteger a população. E quando se fala em população, destacamos principalmente aqueles de menor renda.
Presidente da Comissão de Meio Ambiente da Alerj, o deputado estadual Carlos Minc (PT) já recebeu o CD-ROM.
- É um trabalho excepcional e será usado pela comissão - diz Minc, que tem números confirmados pelo estudo do Ippur e vai mais longe:
- Que a degradação ambiental atinge mais as pessoas com baixa renda, é indiscutível. Basta lembrar que já tivemos, há 20 anos, 450 mil pequenos agricultores no Rio de Janeiro, e hoje, depois de anos de queimadas, temos apenas 150 mil. A mesma queda aparece quando analisamos a situação da pesca artesanal. Há 20 anos tínhamos 120 mil e, depois do despejo de esgoto, resíduos industriais e lixo na Baía de Guanabara, temos 40 mil.
Para o parlamentar, o lançamento do Mapa da Justiça Ambiental ajuda a trazer à tona a discussão do novo papel do movimento ambientalista no Brasil.
- A ecologia não pode mais ficar restrita àquele movimento do sujeito que se preocupa se a praia em frente à casa dele está limpa. Hoje, a preocupação também tem que ser com a qualidade de vida do trabalhador, dos menos favorecidos. É preciso cair aquela imagem de ecologista que não quer a fábrica. Na verdade, queremos as fábricas, a geração de empregos, mas com tecnologias limpas. Há muito ecologista que não liga, por exemplo, para o fato de que 600 operários já tiveram superexposição ao benzeno, que quebra os glóbulos brancos, dentro da Companhia Siderúrgica Nacional. Temos que acabar com o maniqueísmo - diz.

Alguns dos casos de conflitos que são narrados no CD-ROM
Mau ambiente
Ratos na rua
Em março de 2002, a Feema descobriu em Água Santa, na Zona Norte do Rio, uma série de frascos de biocidas (inseticidas, raticidas) despejados na rua. Todos sem prazo de validade. Ao lado deles, o horror: ratos mortos em vidros, conservados com formol. Ninguém descobriu a procedência do crime ambiental.
Fósforo aceso
Em 30 de junho de 2000, os moradores do bairro de Trindade, em São Gonçalo, pediram socorro a autoridades municipais. Na Rua Joaquim Lemos, um depósito clandestino de lixo queimava, produzindo fumaça preta, principalmente de sacos plásticos. Alguns moradores denunciavam que caminhões despejavam resíduos industriais todos os dias no local. Era fósforo de uma fábrica.
Perigo de desastre
O aterro sanitário de Gramacho, em Caxias, onde é despejado o lixo dos cariocas, foi construído em cima de um manguezal, que é um ecossistema necessário para a sustentação dos terrenos e propagação de flora e fauna. O aterro deve encerrar as atividades em dezembro, o lixo será jogado em Paciência, na Zona Oeste do Rio. Mas houve denúncias de que o terreno corre risco de rachar. O rompimento acarretaria no despejo de toneladas de lixo na Baía de Guanabara e no Rio Sarapuí - que encheria, alagando Duque de Caxias e Belford Roxo.
Água privatizada
No bairro Jacaré, em 1998, na Região Oceânica de Niterói, moradores denunciaram que o ocupante de uma casa privatizou uma parte do rio que leva o nome do bairro. A obra prejudicou o fluxo, provocando assoreamento em alguns trechos. Descobriu-se que o morador na verdade estava engarrafando a água do rio e vendendo, dizendo que era "tratada pela Cedae". O Ministério Público estadual ainda atua no caso, mas sabe-se que a população em volta da casa do futuro vendedor de águas tem poder aquitivo muito mais baixo que o dele. O caso só terminou com a saída voluntária do ocupante, apesar de o MP ter feito pressões. A secretaria municipal, à época, enviou 14 técnicos que "não constataram irregularidades"
Ventos e velas
Em março de 2001, a Delegacia de Meio Ambiente investigou denúncias de moradores de São João do Meriti. Segundo eles, a fumaça preta de uma fábrica de velas era levada pelo vento, acabando com a saúde. Descobriu-se um tanque de 2.500 litros de parafina, que vazava. O caso continua na Feema.
Estudo abre debate sobre acordos
CD-ROM será exibido em audiências públicas na Alerj e nos MPs

O coordenador da Tutela Coletiva do Ministério Público estadual, promotor Vicente Leal Cavallero, acredita que um dos benefícios que o Mapa da Justiça Ambiental pode trazer é o debate sobre a eficiência dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), ou seja, sobre os acordos regidos pelos MPs e pela Justiça em casos de conflitos entre comunidades e agentes poluidores.
- O trabalho ainda não nos foi apresentado oficialmente, mas acredito que vá contribuir para uma nova discussão. Hoje, alguns TACs acabam ocasionando em mudança de benefícios no caso das medidas compensatórias. A minha posição é a de que a recomposição tem que ser feita in natura, isto é, os recursos têm que ser dirigidos diretamente para a área atingida. Por exemplo, se um rio for afetado, não queremos que a medida compensatória seja a cessão de computadores para o município. Se o agente poluidor quiser ceder, tudo bem. Mas o importante é que a medida compensatória seja um investimento no próprio rio que sofreu a ação da poluição - explica o promotor, acrescentando que esta é uma posição já defendida em diversos seminários anteriores.
A ONG Fase tem como coordenador o francês Jean-Pierre Leroy, que é relator nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente. Todos os anos Leroy apresenta relatórios à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os conflitos no Brasil, particularmente no Estado do Rio, onde mora há 12 anos. Como um dos coordenadores (ao lado do professor Henri Acselrad) do Mapa da Justiça Ambiental, ele classifica o quadro descrito no CD-ROM como ''filme de catástrofe''.
- Se fôssemos comparar com um roteiro cinematográfico, seria desta forma. Mas o trabalho dos pesquisadores mostrou que a Feema está informada e está correndo atrás, fazendo seu trabalho. Precisamos apenas rever os TACs, pois eles são um acordo de cavalheiros, ou seja, um acordo moral. O problema é que, quando a empresa poluidora não cumpre, pouco acontece - diz Leroy.
A data de 28 de junho está agendada para a apresentação do Mapa da Justiça Ambiental a promotores do Ministério Público estadual ou do Ministério Público Federal - ainda será discutido quem verá o trabalho oficialmente primeiro. Na Alerj, o deputado Carlos Minc promete exibir o estudo em audiência pública, a ser pedida ainda pela comissão de Meio Ambiente.
As zonas de sacrifício
Em no máximo um mês, o trabalho do CD-ROM Mapa da Justiça Ambiental estará disponível nos sites http://www.fase.org.br e http://www.justicaambiental.org.br. Além de milhares de dados, o trabalho ainda tem fotos tiradas pelos pesquisadores e vídeos com entrevistas feitas em locais degradados.
Quem conseguir uma cópia do CD ou mesmo quem acessar a internet poderá conhecer o conceito de Zona de Sacrifício, criado pelos ambientalistas modernos para situar os locais onde a desregulamentação favorece os interesses econômicos predatórios.
- Nestas áreas, observa-se que os agentes políticos e econômicos estão empenhados em atrair para o local investimentos de todo tipo, qualquer que seja seu custo social e ambiental - critica o professor Henri Acselrad, do Ippur/UFRJ.
Das 251 conflitos listados no CD-ROM, 18 serão estudados de forma mais acentuada e publicados em um livro, que será escrito pelos pesquisadores da Fase, entre eles o jornalista Felipe Caixeta, que participou dos 15 meses de prospecção de dados. Os 18 temas ainda não foram divulgados, mas é certo que os problemas de saneamento em Itaguaí, causados pelo abandono de resíduos tóxicos da Ingá Mercantil, serão abordados, bem como o caso do distrito de Adrianópolis, em Nova Iguaçu, considerado uma Zona de Sacrifício em que a população corre graves riscos. Ali, há um grande depósito de ascarel, cortado por gasodutos e linhas de transmissão e energia. No ano passado, o que era ruim ficou pior: foi implantado um aterro sanitário, depois de uma batalha judicial entre os moradores da região e a Prefeitura de Nova Iguaçu.
A região entre a RJ-113 (antiga Rio-Santos) e o Rio Iguaçu acabou se tornando uma Faixa de Gaza da poluição na Baixada. Além dos riscos do ascarel e dos resíduos do aterro, há despejo de resíduos industriais que ameaçam nada menos que a água do lençol subterrâneo - aquela que, em muitas casas, ainda é tirada de poços e usada para beber.
A injustiça ambiental dos pescadores
O trabalho do Ippur/UFRJ é baseado em um conceito que surgiu nos EUA na década de 1980: a Justiça Ambiental.
- Foi quando os ambientalistas americanos descobriram que a poluição não é democrática, ela atingia mais as pessoas sem poder aquisitivo - explica o deputado estadual Carlos Minc (PT).
No Brasil, o tema da justiça ambiental ainda é recente. Os adeptos acreditam que o movimento deve unir as carências de saneamento ambiental no meio urbano com o tema das terras usadas para acolher assentamentos de reforma agrária. ONGs como a Fase trabalham nesse sentido, e sabe-se que há debates em correntes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Vazamentos e acidentes na indústria petrolífera, a morte de rios, lagos e baías, as doenças e mortes causadas pelo uso de agrotóxicos e outros poluentes e a expulsão das comunidades tradicionais pela destruição dos seus locais de vida e trabalho são as ocorrências onde os simpatizantes do conceito de Justiça Ambiental costumam atuar.
O professor da Uerj e ambientalista Sérgio Ricardo de Lima, ex-conselheiro estadual de Meio Ambiente é um dos que mais atuam.
- O que está em jogo é saber se o nosso país vai optar por uma política industrial e um modelo econômico menos poluente, à base de energias renováveis e de tecnologias limpas - diz Sérgio Ricardo, que vem atuando no momento em defesa dos pescadores da colônia de Tubiacanga, na Ilha do Governador.
Sérgio foi um dos que mais comemoraram a chegada do Mapa da Justiça Ambiental.
-O mapa demonstra que o Brasil, e em especial o Estado do Rio, pela ausência de políticas ambientais sérias e efetivas, é tratado como lixeira.
Após a publicação do relatório da CPI do Plano de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), a meta de Sérgio é solicitar ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) um painel de inspeção para verificar o uso das verbas.
- Criou-se no Rio uma espécie de indústria da poluição. Ganha-se com a não resolução de conflitos ambientais históricos. Nos anos 80, despoluir a Baía de Guanabara custaria US$ 800 milhões. O PDBG fracassou, desperdiçaram-se US$ 300 milhões, a baía continua poluída. Já os pescadores artesanais estão mais empobrecidos, sem trabalho. Alguns casais até se separaram - lamenta.

JB, 13/06/2004, Cidade, p. A17-A18

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