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O caminho da roça

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
14 de Mai de 2004

O caminho da roça

Washington Novaes

Vai-se tornando obsessivo na sociedade, na política e na comunicação o tema do emprego e de sua relação com o mercado interno, ao mesmo tempo em que se consolida a visão de que o crescimento econômico que venha a acontecer, por si só, não terá como atender nem ao contingente anual de pessoas que chega ao mercado de trabalho (1,5 milhão a 1,8 milhão), muito menos ao déficit de empregos já existente (10 milhões, pelo menos) - sem falar nos números impressionantes da informalidade (24,2% da população economicamente ativa sem carteira de trabalho assinada, 22,3% trabalhando por conta própria, 4,2% apenas para consumo próprio e 11,7% sem rendimento monetário).
Muitas fórmulas têm sido propostas. Uma das mais recentes tenta mexer num desses nós górdios da questão, que é o mercado informal. Sugestões da Associação Comercial de São Paulo levadas ao presidente da República propõem criar a figura do "empreendedor pessoa física" - que passaria a registrar suas contas num livro-caixa e pagar impostos sobre as sobras, sem ter de registrar uma empresa e arcar com os custos.
Seriam muitas as vantagens, sugere-se. Esse empreendedor contribuiria para a Previdência Social, aumentando em 30% o número de contribuintes e reduzindo o déficit; poderia ter crédito bancário e financiamento de imóvel. Seria possível, assim, formalizar 10 milhões de pessoas. Mas há problemas do outro lado. Provavelmente a Previdência teria dificuldades à frente, com maior número de beneficiários e sem que estes tenham a contribuição patronal. Só a prática mostraria se os informais estariam dispostos a pagar contribuições e impostos sobre o lucro líquido. Também seria problemático registrar um empregado .
Quase ao mesmo tempo, surgiu outra fórmula, do ministro José Dirceu - logo endossada pelo presidente da República -, de desvincular o aumento do salário mínimo (para que este possa ser maior) do que é pago a aposentados que recebem até esse nível, e que hoje são 13,5 milhões.
Como lembrou um leitor deste jornal, Arnaldo Ravacci (5/5), seria inconstitucional conceder benefício abaixo do mínimo - que é o que aconteceria com os aposentados. Estes teriam a mesma trajetória dos que hoje têm aposentadoria acima do mínimo: uma perda progressiva de valor. Num caso que o autor destas linhas conhece de perto, depois de contribuir durante mais de 20 anos para a Previdência sobre 20 salários mínimos, o interessado viu esse teto ser reduzido do dia para a noite para 10 salários mínimos (sem que lhe devolvessem o que contribuíra acima disso). Quando requereu a aposentadoria, como esta era calculada sobre a média das últimas 36 contribuições, sem correção monetária (numa época de inflação alta), o benefício foi fixado inicialmente em 6,5 salários mínimos. Como, entretanto, ao longo dos anos foi corrigido por índices abaixo do que corrige o salário mínimo, a aposentadoria hoje equivale a 4,5 salários mínimos.
Uma terceira proposta, do ministro Ricardo Berzoini, também não parece eficaz: reduzir a carga previdenciária sobre a folha de pagamentos das empresas. Significaria, mais à frente, agravar de novo o déficit da Previdência.
Já se lembrou, neste espaço, que os detentores de poder deveriam prestar atenção às idéias que têm sido expostas pelo professor Ignacy Sachs, co-diretor do Centro de Pesquisas do Brasil Contemporâneo, em Paris, uma das pessoas que mais conhecem a realidade dos países ditos emergentes. Ele tem proposto, com abundância de argumentos e números (citados neste espaço em 19/3 - A corrida contra a crise), que a ênfase brasileira - para crescimento econômico e para gerar emprego - seja colocada no mercado informal de trabalho e na pequena e microempresa.
"O Brasil precisa se transformar numa gigantesca fábrica de empregos", escreve ele em trabalho mais recente (Inclusão social pelo trabalho decente:
oportunidades, obstáculos, políticas públicas), ao lembrar que temos de gerar de 2 milhões a 2,5 milhões de postos de trabalho por ano para atender aos que chegam ao mercado a cada ano e ao déficit de mais de 10 milhões.
Segundo levantamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), só a modernização tecnológica de 1990 a 2000 significou a perda de 12,3 milhões de postos de trabalho. Mesmo com um saldo positivo na década, de 3,24 milhões, esteve-se longe de dar trabalho aos que chegaram ao mercado (15 milhões, pelo menos). E de 2001 para cá o saldo continuou negativo.
Coloca o professor Sachs a necessidade - além dos estímulos à pequena e microempresa (mencionados no artigo anterior) - de um "novo ciclo de desenvolvimento rural", em que haja forte apoio à agricultura familiar, ainda responsável por 37% da produção agrícola e por 77% das pessoas ocupadas no campo em 84% dos 5 milhões de estabelecimentos. Em cada um deles, um financiamento do Pronaf garante três empregos, mais a geração de 0,58, em média.
"O progresso da agricultura brasileira", escreve ele, "requer soluções intensivas em conhecimento e trabalho, porém poupadoras de capital, energia fóssil e recursos naturais escassos (como a água no semi-árido). Esta equação difere da dos países industrializados, empenhados numa agricultura intensiva em capital e poupadora de mão-de-obra. (...) O não-aproveitamento desta reserva de desenvolvimento constitui um grave erro de estratégia, já que o êxodo rural prematuro e excessivo gera problemas de difícil solução no meio urbano."
Segundo o professor Sachs, precisamos de uma "industrialização sem descamponização", um desenvolvimento rural, e não apenas agrícola, fundado na agroindústria, no artesanato, em pequenas indústrias descentralizadas, na prestação de serviços técnicos em várias áreas. Foi por caminhos como esses que a China, entre 1985 e 2001, criou 140 milhões de postos de trabalho em atividades não-agrícolas nas zonas rurais. E isso é possível com um tripé - biodiversidade-biomassas-biotecnologias - dando força aos setores de alimentos, rações animais, bioenergias, fertilizantes, materiais de construção, matérias-primas para indústrias (fibras, celulose, óleos, resinas, etc.), fármacos e cosméticos.
É um guia muito útil, que passa longe das fórmulas que pretendem tudo resolver eliminando impostos e reduzindo a receita de um poder público já semifalido.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 14/05/2004, Espaço Aberto, p. A2

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