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O apocalipse do cerrado

Valor Econômico - https://valor.globo.com
03 de Mai de 2024

O apocalipse do cerrado
O mínimo que se exige é o cadastro dos perímetros e seus responsáveis validados. Não existe desculpa para os poderes públicos não realizarem isso de imediato

Pedro de Camargo Neto

03/05/2024

Apesar do Brasil ter índices de vegetação preservada e um arcabouço legal representado pelo Código Florestal, melhor que a maioria dos países, continua pressionado na questão ambiental. Falta credibilidade basicamente pela questão do desmatamento. Acalmaram com a Amazônia. Agora é a vez do cerrado.

Verdade que ocorreu redução significativa do desmatamento na Amazônia, infelizmente ainda distante de estar controlado, pois persistem o garimpo ilegal, extração madeireira ilegal, o grilo de terras. Agora, ONGs ambientalistas e o governo, que muitas vezes se confundem, denunciam o aumento do desmatamento no cerrado.

Compreender alterações, estudar seus efeitos, avaliar o futuro, evoluir, é sempre uma obrigação. Um debate técnico que exige credibilidade, que ainda infelizmente não foi construída. Apresentam sempre em conjunto dados do desmatamento legal com o ilegal. Em termos de emissão de carbono, efeitos na biodiversidade e clima são iguais, porém politicamente devem ser tratados de maneira distinta, pois requerem ações distintas.

O necessário debate e compreensão do que ocorre no cerrado somente será obtido após o enfrentamento do desmatamento ilegal, muito superior ao permitido pelo Código Florestal, legislação aprovada no Congresso Nacional. A ordem dos fatores aqui altera o produto. Antes de equacionar o desmatamento ilegal fica impossível condenar a supressão vegetal devidamente autorizada pelo Poder Público.

Infelizmente não conseguimos ainda enfrentar o desmatamento ilegal. Imagens de satélite são capazes de identificar desmatamentos mínimos diariamente. Foi construída importante base de dados territoriais que na teoria possibilitaria identificar se a área é pública ou privada, e o responsável pela área. Alarmes poderiam ser automáticos. Infelizmente a fiscalização não tem a agilidade para efetuar a operação policial quando necessária. Enfrentar a criminalidade exige estratégia e gestão.

As falhas dos serviços públicos, e não são de hoje, destroem a credibilidade do país. Ao não conseguirmos efetivar o aprovado no Congresso Nacional deixamos a sociedade sob a pressão de acusações não necessariamente verdadeiras. Sucumbimos às pressões externas sendo obrigados a se ajustar com certificações privadas diferentes e que vão além da certificação oficial, o fiel cumprimento da lei.

"Não adianta insistir na divulgação de dados sobre os desmatamentos ilegais e legais em conjunto. São fatos políticos distintos. Equacionada a criminalidade, o debate técnico sobre a questão ambiental da cobertura vegetal pode e precisa acontecer"

No debate no Congresso Nacional, 13 anos atrás, que levou à aprovação do Código Florestal, foi criada uma autodeclaração dos proprietários do que seria seu Cadastro Ambiental Rural (CAR). Nele o proprietário apresenta o perímetro da sua área, as áreas com e sem vegetação preservada, as obrigações previstas na legislação de áreas de preservação permanente (APP) e de reserva legal (RL) obrigatória. Incluiu também a possibilidade do proprietário, que não estivesse com todas as obrigações determinadas pela nova legislação, se adequar e promover a regularização do imóvel dentro de um novo prazo.

A análise dos CAR exige uma ação dos poderes público maior do que se imaginava e o atraso é gritante. O hercúleo trabalho dos proprietários, que atendendo a obrigação legal apresentaram mais de 6 milhões de cadastros, continua sem análise apresentando ainda elevado número de erros e fraudes. O que se apresentava como instrumento de comprovação da elevada cobertura vegetal existente no país, não conseguiu ainda obter a necessária credibilidade, permitindo que os desvios, em menor número, prejudiquem o todo.

A estratégia de aproveitamento da importante base de dados dos CAR nasceu errada, e continua errada. O básico, ponto de partida, é que o perímetro esteja correto, sem superposições com outras áreas particulares, além de estarem fora de florestas públicas não destinadas, unidades de conservação de domínio público e reservas ambientais. O cadastro desses perímetros tem informação chave para a fiscalização. Atualização desse cadastro precisaria ter prioridade para sua utilização no combate à criminalidade.

Analisar e negociar individualmente a regularização dos milhões de cadastros exige um esforço dos serviços públicos que já se mostrou superior à capacidade dentro do espaço de tempo necessário. Não conseguiram. Passou da hora de alterar a estratégia. O que realmente precisamos com urgência é combater o desmatamento ilegal. Regularizar APP e mesmo RL são importantes, porém podem aguardar a lentidão das análises individuais dos serviços públicos. O crime não.

Para uma maior rapidez desse processo é essencial limpar de imediato os CAR que apresentem fraudes, corrigir perímetros, atualizar os dados e endereços dos proprietários responsáveis. Uma base cadastral atualizada permitiria automatizar a identificação dos desmatamentos com o auxílio de ferramentas de tecnologia de informação e georreferenciamento. Desmatou hoje, o CPF do responsável é notificado a se apresentar e se justificar. Não existindo responsável privado a força policial seria acionada. Não se justifica uma base de dados territoriais tão relevante não merecer um mínimo de ação em operações que podem mesmo ser em grande parte automatizadas.

Também para o pequeno produtor a regularização é essencial. Pequenos desmatamentos de muitos se multiplicam em um grande problema. O Incra precisa colocar ordem no processo de regularização fundiária. Somente no Pará, o Estado da COP30, existem 3 Superintendências do Incra com milhares de assentamentos. Desobediência civil também emite carbono. O essencial aqui novamente é o perímetro e seu responsável legal fundiário na construção da regularidade ambiental.

Enfrentar a criminalidade do desmatamento é prioridade. O mínimo que se exige é o cadastro dos perímetros e seus responsáveis validados. Não existe desculpa para os poderes públicos não realizarem isso de imediato. Análise e cumprimento das obrigações de APP e RL virão na sequência. Se mostrou equivocado pretender fazer tudo junto. Estratégia, fiscalização e polícia é responsabilidade dos poderes públicos, porém quem paga a conta é a sociedade.

Não adianta insistir na divulgação de dados sobre os desmatamentos ilegais e legais em conjunto. São fatos políticos distintos. Equacionada a criminalidade, o debate técnico sobre a questão ambiental da cobertura vegetal pode e precisa acontecer.

Pedro de Camargo Neto foi presidente da Sociedade Rural Brasileira e secretário do Ministério da Agricultura e Pecuária.

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-apocalipse-do-cerrado.ghtml

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