VOLTAR

O apagão ambiental do setor elétrico brasileiro: os peixes furam a rede

Estadão - https://politica.estadao.com.br/
Autor: Marcelo Barbosa Araujo, Fernando de S. Coelho
26 de Set de 2021

Diante da maior crise hídrica dos últimos 91 anos, a escassez de chuva acende os holofotes para anunciar o drama do apagão. De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), algumas hidrelétricas já estão quase operando na zona 4, a "zona de lama" dos reservatórios, como a de Ilha Solteira, no Rio Paraná. Triste teatro anunciado num país onde chuva e geração de energia caminham juntas. Segundo dados do Balanço Energético Nacional de 2021, divulgado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), cerca de 65% da nossa energia elétrica é gerada por aproveitamento hidráulico.

REDAÇÃO

26 de setembro de 2021 | 11h55

Marcelo Barbosa Araujo, Engenheiro Eletricista (Poli-USP) e Bacharel em Direito (FD-USP). Graduando em Gestão de Políticas Públicas (EACH-USP). Pesquisador do Lab.Gov da EACH-USP

Fernando de S. Coelho, Doutor e Mestre em Administração Pública (FGV-SP) e Bacharel em Economia (FEARP-USP). Professor de Gestão de Políticas Públicas e Coordenador do Lab.Gov da EACH-USP

Diante da maior crise hídrica dos últimos 91 anos, a escassez de chuva acende os holofotes para anunciar o drama do apagão. De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), algumas hidrelétricas já estão quase operando na zona 4, a "zona de lama" dos reservatórios, como a de Ilha Solteira, no Rio Paraná. Triste teatro anunciado num país onde chuva e geração de energia caminham juntas. Segundo dados do Balanço Energético Nacional de 2021, divulgado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), cerca de 65% da nossa energia elétrica é gerada por aproveitamento hidráulico.

PUBLICIDADE

Neste momento delicado, o Governo Federal, dono da EPE, se limita a sobretaxar a energia consumida reeditando a bandeira tarifária extra, a bandeira da "Escassez Hídrica". Pagaremos, em média, 7% a mais pela energia! O Tribunal de Contas da União (TCU) questiona desde 2018 a efetividade desta bandeirada que não desperta nos consumidores a necessidade de consumo consciente, como alardeia o Governo. A medida é melhor compreendida pelo setor elétrico, que se beneficia da bandeirada para compensar perdas da escassez hídrica e antecipar receitas.

Para os não negacionistas do aquecimento global, a escassez de chuva é agravada pela falta de manejo e de uso sustentável dos recursos naturais. Direto ao ponto, todo agente que degrada o meio ambiente, independentemente de intenção ou necessidade, contribui para as prolongadas estiagens. Com foco na gestão ambiental, o setor elétrico participa desta sombria realidade da falta de chuva simultaneamente como algoz e vítima. O setor coleciona casos de destrato ambiental que se somam e se avolumam ao longo dos anos. Sem adentrar no mérito, pois não se trata de individualizar responsáveis, um caso ilustra a questão.

Em 2008, início do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), foram leiloadas e concedidas a consórcios distintos as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, ambas no rio Madeira em Rondônia. Considerando que Jirau está a montante, a cerca de 110 km da usina Santo Antônio, o potencial de aproveitamento hidrelétrico em Santo Antônio é parcialmente capturado por Jirau. Para contornar esta redução causada por Jirau, o consórcio Santo Antônio obteve, após o leilão, autorização para elevar a cota (altura limite de operação) de seu reservatório de 70,5 para 71,3 m.

Defendendo seus interesses, o consórcio Santo Antônio argumenta que a licença de operação está condicionada à reprodução e preservação dos peixes da região. Logo, elevar a cota manteria a vazão projetada do sistema, evitando riscos à transposição e desova de peixes e, também, danos às turbinas. Ocorre que, em cadeia reflexa, elevar Santo Antônio diminui a altura da queda d'água aproveitável por Jirau.

Assim e de longa data, os consórcios disputam o potencial do rio Madeira confinado numa delicada equação econômico-financeira do negócio. É um cabo de guerra legítimo e necessário para propiciar confiança de investimentos e segurança jurídica no Brasil, sem dúvida. Mas, sendo o potencial do rio finito e pré-calculado, esta disputa travada em ambiente não cooperativo é estritamente alocativa/distributiva entre as quase-rendas administradas em cada consórcio.

A despeito do vencedor, nesta batalha de Pirro contabilizam-se perdas e perdedores. De fato, o relevo da região indica que na época de cheia a elevação da cota em 0,8 m encobre área adicional de 3% do Parque Nacional Mapinguari. Este evidente impacto antrópico fragiliza o ambiente amazônico e desagrega o modo de vida da população ribeirinha, de maioria indígena. Historicamente, a construção de barragens imensas e os embates técnico-políticos em torno da operação de usinas não são exceção no país. Tanto a criação do Movimento dos Atingidos por Barragens em 1979, como a sua atuação combativa que perdura até hoje, falam por si.

Como assertiva a ser defendida neste artigo de opinião, esta realidade conflituosa tem origem na estrutura organizacional e na dinâmica do setor elétrico brasileiro, que falha ao não salvaguardar o licenciamento ambiental de interferências deletérias ao uso e manejo sustentável. Edificando tal asserção, compor demandas díspares e conflitantes em torno do trinômio desenvolvimento-conservação-preservação requer do setor uma organização sistêmica capaz de lidar com a complexidade inerente da realidade, que realize ações voltadas a orquestrar interesses e necessidades interdependentes, variáveis no tempo e no espaço.

Idealmente, o licenciamento ambiental deveria ser alçado à condição de arranjo institucional para todos os fins de fato e de direito e ocupar lugar próprio, corporificado, dentro da estrutura do setor elétrico. Hoje, o licenciamento é disciplinado como um procedimento técnico-jurídico permanente conduzido por diversos interessados/envolvidos.

Neste sentido, o Projeto de Lei do Senado n.168/2018 (ainda em discussão na Casa) intenta positivar uma Lei Geral de Licenciamento Ambiental (marco regulatório que vinculará a todos os níveis da federação) para conferir maior segurança jurídica, eficiência e celeridade ao tema. Embora não integre atualmente um código jurídico unificado, a teoria institucionalista advoga que o licenciamento é uma verdadeira instituição, visto que normatiza um procedimento (estável, em tese) e condutas a serem seguidas por todos os stakeholders. E, ao corporificar uma instituição, o licenciamento fica predisposto a ser alvo de mudança político-institucional.

Ocorre que, no longo aguardo da tramitação do PLS n.168/2018, o licenciamento ambiental vive em constante fricção e crise de identidade. Até a implantação e início de operação das usinas, o licenciamento integra a espinha dorsal do empreendimento e produz norma cogente para todos, comportando-se virtualmente como se fosse um arranjo institucional. Porém, após o início da operação a situação é outra.

O licenciamento se despe de sua pretensa posição como integrante da estrutura organizacional do setor e segue alijado como um (mero) procedimento permanente, flexível e flexibilizado que reúne agentes e atores específicos, os quais são determinados conforme as características do empreendimento para o atingimento daqueles condicionantes ambientais impostos antes da operação iniciar. Na prática, o licenciamento vive (ou sobrevive) ao longo da operação como um "arranjo procedimental" não ocupante de posição certa e definida na organização do setor elétrico. Isto o faz menos resistente a pressões de espectro não ambiental, talvez por conveniência.

Neste tema e para defesa da ideia-força deste texto, convém rememorar a atual organização do setor elétrico e o papel do Estado Brasileiro. O Programa Nacional de Desestatização articulou o setor como uma extensa rede de política pública capilarizada, composta por entes públicos, privados e sociedade civil. No bojo da reforma do Estado brasileiro, o Executivo Federal criou a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em 1996, consolidando um modelo fundado em regulação e coordenação em matéria de política energética que já se desenhava anos antes.

Desde então, o setor se organiza como uma rede mista e policêntrica, pautada pela interação positivista/formalista que separa competências e responsabilidades entre os agentes. Numa espécie de associativismo patrocinado conjuntamente pelo Estado e pelo capital privado, o setor compõe interesses nos níveis nacional e subnacional e nos eixos vertical e horizontal.

A rede é mista porque mantém um núcleo centralizador estrategista atuando em paralelo ao arcabouço regulatório descentralizado. Ocupando o núcleo, a União detém como prerrogativa e política de Estado a responsabilidade pela condução da política energética nacional, prática que remonta à datada Era Vargas. No mérito, dois fatores contribuem para isto: os imperativos estratégicos e de segurança nacional e a necessidade de suprir energia para todo o território, o que impõe redes de geração e transmissão integrativas, unindo fronteiras supra e subnacionais entre agentes participantes.

Resumidamente, no nível estratégico-gerencial o planejamento do setor é conduzido por uma rede vertical coordenada pelo Executivo Federal, que separa as atribuições do órgão regulador, do operador nacional do sistema, do comitê gestor, da empresa de pesquisa energética e de outros agentes, todos sob a tutela do Poder concedente centralizado no Ministério de Minas e Energia.

A seu turno e em razão de eficiência, escala e capacidade requeridas no nível técnico-operacional, as atividades de geração, comercialização (administrada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE), transmissão e distribuição de energia são descentralizadas e desconcentradas. Uma extensa rede interorganizacional horizontalizada participa destas atividades, atribuídas a empresas públicas e privadas independentes que atuam de forma mediada pelos diversos órgãos e entidades do Poder concedente.

Argumenta-se que este modelo misto enxuga a participação direta do Estado na operação e nos investimentos, possibilitando ao corpo burocrático atuar com maior empenho nas atividades de planejamento, regulação e coordenação. A prática, porém, destoa do argumento no que respeita ao meio ambiente. Leiloar uma usina para, depois, permitir a elevação do reservatório na tentativa de manter a equação econômico-financeira do negócio perturba o desempenho conjunto e coordenado das atividades citadas e, por extensão, todo o compromisso firmado nas três licenças ambientais previstas na legislação (prévia, de instalação e de operação).

No cerne da questão, esta configuração mista favorece cenários de conflito agente-principal. A assimetria de informação explorada e capitalizada pelos consórcios fragiliza a capacidade estatal em coordenar diálogos, firmar pactos e ajustar compromissos permanentes em função dos interesses e necessidades ambientais.

Em torno do licenciamento se estabelecem audiências públicas, fóruns (informais) e uma arena permanente onde interesses econômicos, financeiros, legais, ambientais, de engenharia e diversos outros confluem e são objeto de deliberação, escrutínio e composição. Todavia, considerar o licenciamento como um "arranjo procedimental", condicionado ao ajustamento controlado de condutas de maneira pulverizada e compartilhada pelos diversos atores e agentes dentro desta complexa rede de política pública em que se estrutura o setor elétrico, não vem demonstrando ser modelo acertado ao atingimento de resultados satisfatórios e consistentes.

O caso Jirau/Santo Antônio é eloquente para alertar que o licenciamento é sensível e cede a interesses não ambientais e tem servido reiteradamente como instrumento para acomodar tanto falhas de mercado quanto falhas governamentais, em franca degeneração de sua finalidade essencial.

A realidade mostra ser de efetividade limitada o Estado Brasileiro erguer instituições e segregar competências entre agentes dentro de uma estrutura organizacional mista e complexa. Isto porque a atual configuração do licenciamento ambiental funciona como um cavalo de Troia que abre um flanco de frouxidão e ruptura, de dentro para fora, das garantias e seguranças que a estrutura concebida para o setor deveria ser capaz de proporcionar.

Esta afirmação decorre do fato do licenciamento ser, quase inexoravelmente, judicializado por carecer de salvaguardas estruturantes intraorganizacionais que deveriam ser patrocinadas pelo Estado. Há muita diferença considerar o licenciamento como arranjo institucional legalmente constituído ou como um (mero) procedimento técnico-jurídico. Não se trata de preciosismo acadêmico ou retórica vazia.

Assumindo, ab initio, que o licenciamento tende a ser judicializado, os consórcios usam com perspicácia a estatística a seu favor. Esta conduta legítima dos consórcios transforma a judicialização ambiental em parte visceral da intrincada equação econômico-financeira que rege os empreendimentos em energia. Isto abre um indigesto precedente de reacomodação do embate técnico-político onde, em regra, o Estado cede à pressão de interesses econômico-financeiros travestidos como interesses ambientais.

Em suma, os agentes privados do setor elétrico são parte de uma estrutura organizacional articulada e capitaneada pelo Estado Brasileiro incapaz de usar e manejar adequadamente os recursos hídricos. O setor é, assim, algoz e vítima da falta de chuvas. Salta aos olhos que a capacidade estatal para o licenciamento ambiental verte, feito água, dos meandros desta estrutura organizacional dedicada à política energética. Os peixes se articulam, cada um a seu modo e em seus espaços próprios, para furar a rede de política pública.

Evitar a reprodução do comportamento oportunista destes peixes é papel do Estado, na qualidade de coordenador-regulador. Em respeito ao meio ambiente, à população ribeirinha e ao desenvolvimento humano sustentável, urge corporificar e conferir mais assertividade ao licenciamento ambiental. Antes da próxima cheia do rio Madeira é preciso remendar e fortalecer a rede.

https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/o-apa…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.