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Novo ciclo de grandes hidrelétricas

O Globo, Economia, p. 49-50
Autor: KELMAN, Jerson
09 de Dez de 2007

Novo ciclo de grandes hidrelétricas
Depois de 13 anos, leilão do Rio Madeira inicia megaprojetos mais ecológicos, mas com energia cara

Gustavo Paul e Mônica Tavares

Quatro anos depois de lançar o projeto de duas grandes usinas no Rio Madeira, em Rondônia, o governo vai finalmente começar a transformação desse sonho em eletricidade. Será realizado amanhã, na sede da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em Brasília, o leilão da primeira delas: a de Santo Antônio, que representa o início de um novo ciclo da energia hidráulica brasileira. A partir de agora, usinas "ecologicamente mais corretas", sem os grandes lagos que inundam milhares de quilômetros de fauna e flora, serão prioridade, segundo especialistas. A razão é simples: elas terão de se instalar na Região Amazônica, a última fronteira hidrelétrica do país. Dessa forma, o Complexo do Madeira constitui-se, também, em um grande teste.

Essa nova fronteira, porém, mudará o perfil de preço da energia hidrelétrica, usualmente mais barata do que as demais. A energia amazônica será necessariamente mais cara. Primeiro porque as usinas são distantes das grandes cidades e indústrias da região Centro-Sul. Outra razão é que, como não contam com as grandes áreas inundadas, não têm como garantir o fluxo de água nas turbinas em época de seca.

- Os projetos na Amazônia terão de seguir uma lógica diferente. Haverá diminuição da energia potencial das usinas, pois os rios têm períodos mais cheios e outros mais vazios. Além disso, o custo da transmissão será mais elevado - explicou o professor Ivan Camargo, do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade de Brasília.

Outras fontes serão necessárias
Além disso, Santo Antônio dá o pontapé inicial no primeiro empreendimento de grande porte no país em 13 anos - Xingó (SE) ficou pronta em 1994. Outra novidade é a consolidação da parceria entre governo e iniciativa privada para tocar a obra. Sob essa perspectiva, significa ainda o retorno em peso do Estado aos megaempreendimentos de energia elétrica.

Considero o Madeira um marco - resume o presidente da estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim.

A entrada das hidrelétricas do Madeira é emblemática para o futuro energético brasileiro. Com 70% de sua energia gerada pela força das águas, o Brasil só explorou 30% desse potencial. E é justamente na área em que o terreno do Planalto Central se transforma em planície amazônica que está o maior potencial hidrelétrico brasileiro. Não há espaço nas demais regiões para grandes empreendimentos, capazes de atender de uma só tacada ao crescimento da demanda do país.

Segundo analistas, Sul, Sudeste e Nordeste poderão contribuir apenas com usinas médias e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs).

Mas, por enquanto, a Região Norte é uma promessa. Só existem ali mais três grandes projetos de usinas. Jirau, também no Madeira, é a irmã siamesa de Santo Antônio. Sua licitação, marcada inicialmente para março, foi transferida para maio de 2008, e é uma das vedetes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Outra é Belo Monte, no Pará, que se arrasta há quase cinco anos e ainda aguarda licença para construção, empacada por razões ambientais. A terceira é Marabá, no Rio Tocantins, cujos estudos ambientais estão apenas começando.

A possibilidade de construção de grandes usinas na região ainda depende de estudos feitos pela EPE. Sete bacias estão sendo inventariadas para que se saiba se é possível a geração de até 28 mil MW - o equivalente a 25% do que o país produz hoje. Apenas o Rio Teles Pires, em Mato Grosso, já foi inventariado, e agora está na segunda fase de estudos. Ainda não se sabe, portanto, que grandes usinas podem surgir ou onde elas estarão.

Risco de apagão se modelo falhar
Por isso, paralelamente a esse mapeamento, os técnicos dizem que o Brasil terá que investir em outras fontes de energia, como a biomassa (a partir de bagaço de cana, dejetos etc.), a térmica (a mais poluente) e a nuclear (além da retomada de Angra 3, há estudos para a construção de outras nove usinas até 2030).

A concretização das demais obras em área amazônica dependerá do sucesso técnico e ambiental das usinas do Madeira. Construídas sob uma nova perspectiva tecnológica, a da energia gerada apenas pela velocidade da água, sem grandes reservatórios, as futuras usinas só serão viáveis se tiverem o menor impacto ambiental possível.

- Essas usinas podem tirar a virgindade da Amazônia, mostrando que é viável explorar energia de maneira sustentável - diz Mário Menel, presidente da Abiape, entidade que reúne auto-produtores de energia.

Além disso, Santo Antônio é a evidência de que, sem o capital privado, não haverá como fazer da floresta uma geradora de energia. O professor Nivalde Castro, do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da UFRJ, lembra que, até os anos 80, as estatais respondiam pelas obras das usinas do país. Depois, o setor privado foi o motor das obras no governo de Fernando Henrique Cardoso. Agora, o modelo é misto, o que, em sua opinião, tende a ser o definitivo:
- Ele consolida um modelo de parceria estratégica entre o público e o privado. E ele tem de dar certo, senão vai ter apagão.

Estatais sairão vencedoras da disputa, não importa o resultado
Subsidiária da Eletrobrás terá até 49% do capital da companhia que tocará projeto

Gustavo Paul

O leilão da usina hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, já tem um vencedor conhecido, muito antes de o leiloeiro bater o martelo virtual.

Será o governo federal, na forma do grupo Eletrobrás, que está presente nos três consórcios em disputa, por meio das subsidiárias Eletrosul, Furnas e Chesf.

Para os analistas do setor, há ainda um favorito entre os grupos que lutam para ter o direito de construir a maior hidrelétrica brasileira dos últimos 13 anos.

Trata-se do consórcio Madeira Energia, capitaneado pela Construtora Norberto Odebrecht e as estatais Furnas e Cemig, de Minas Gerais. Ainda assim, os observadores concordam que será um leilão bastante disputado.

Pela primeira vez, desde os anos 80, o Executivo federal dará o tom às megaobras do setor elétrico. Para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva será uma vitória. Sem recursos para bancar todos os empreendimentos do setor e pressionado pelo risco de falta de energia a médio prazo, a solução encontrada foi o modelo misto: as estatais poderão ter até 49% do capital da empresa que tocará o negócio. Assim, dizem os analistas, o governo não se afasta das decisões, preserva a estratégia de fortalecimento do Estado e afasta o risco de parecer estar privatizando o setor elétrico.

- A hidrelétrica de Santo Antônio representa a volta das estatais ao setor elétrico e aos grandes empreendimentos - diz o consultor Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Estudos em Infra-Estrutura.

Ganha o leilão quem apresentar menor tarifa
O Brasil conta com empreendimentos que geram 102.453 megawatts (MW), dos quais 75% saem de usinas hidrelétricas. O potencial hídrico também é a força motriz de 78,5% das unidades de geração em construção - embora represente, hoje, apenas um terço dos 21.032 MW que serão produzidos por usinas já liberadas para serem construídas (outorgadas).

O consórcio da Odebrecht é a maior aposta do setor. Afinal, foram eles quem fizeram os estudos de inventário e viabilidade técnica para a obra e têm essa vantagem em relação aos concorrentes. Especula-se que esse capital será suficiente para ajudá-los a fazer uma previsão de custo menor para o projeto.

Ganhará o leilão quem apresentar a menor tarifa de energia, suficiente para financiar o investimento por 30 anos. Para isso, é preciso calcular a obra a um preço mais em conta, abaixo dos R$ 9,2 bilhões previstos.

- Eles, mais que ninguém, conhecem o projeto em seus detalhes e por isso têm mais capacidade de levar o preço das tarifas para baixo. Além disso, a Cemig já tem grande experiência com as turbinas bulbo (nova tecnologia usada) - diz o economista Diego Nunez, analista de energia do Banco Brascan.

Valor estipulado para tarifa máxima é considerado baixo
Mas, como o governo já estipulou um valor considerado baixo para a tarifa máxima (R$ 122,00 o megawatt), os competidores terão pouco espaço para reduzi-la, diz Nunez. Por isso, valerá a engenharia financeira montada por cada grupo e sua estratégia no leilão.

Essa é a principal vantagem do consórcio Energia Sustentável do Brasil, formado por Suez Energy South America e Eletrosul. Os analistas apontam que o grupo Suez, da França, tem bastante dinheiro em caixa e precisa buscar grandes investimentos mundo afora. Nesse cenário, o consórcio Ceisa, que tem a Construtora Camargo Correa, a Endesa, a Chesf e a CPFL, surge como azarão.

Sem Amazônia, energia é poluente

Corpo a Corpo

Jerson Kelman

O diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, comemora a licitação e adverte que, sem essas usinas, o país terá de buscar energias mais poluentes.

O Globo: Vai acabar a era das grandes hidrelétricas?

Jerson Kelman: Não vai, desde que os brasileiros tenham bom senso. Ainda temos muitos rios com potencial hidráulico não aproveitado.

Na realidade só aproveitamos menos de 30% desse potencial.

Onde estão os 70% restantes?

Kelman: Estão basicamente na margem direita do rio Amazonas. Aí tem um monte de rios.

Como é o potencial das demais regiões?

Kelman: No Sul e Sudeste, o que existirão são as PCHs (pequenas centrais hidrelétricas). No Nordeste, sobra quase nada.

Por isso, o leilão de Santo Antônio é emblemático?

Kelman: É o resgate das grandes usinas hidrelétricas brasileiras. É alvissareiro que estejamos retomando essas construções.

Qual a opção do Brasil às hidrelétricas?

Kelman: A curto prazo não temos como contar com essas grandes hidrelétricas. As que estão em estudo podem até ser licitadas em 2009, mas só ficarão prontas no meio da próxima década. Até lá pode-se trabalhar também com biomassa e PCHs. Essas pequenas também devem ser estimuladas, pois são ambientalmente aceitas e estão mais próximas dos centros (urbanos).

Qual é o risco que se corre?

Kelman: Aqueles que têm de decidir se o empreendimento hidrelétrico deve ser construído ou não devem pensar nos impactos locais e regionais, mas devem pensar também nesse impacto em nível nacional. Se não forem construídas as usinas, teremos racionamento e, portanto, um grave problema social. Empregos deixarão de ser criados. Na dimensão ambiental, estaremos construindo usinas a carvão ou a óleo, que têm impactos na escala ambiental muito piores. (Gustavo Paul)

Greenpeace: há outras alternativas

O governo não terá vida fácil para instalar mais hidrelétricas na Região Amazônica nos próximos anos. Os ambientalistas dificilmente se convencerão da necessidade de construção de usinas em pleno santuário ecológico, ainda que não haja grandes áreas inundadas. Segundo o coordenador do programa de energia do Greenpeace, Ricardo Baitelo, há alternativas viáveis para garantir o abastecimento de energia no país, sem precisar construir hidrelétricas.
- Sem dúvida será processo difícil e haverá muita briga contra a construção das usinas na Amazônia. Trata-se de uma região complexa, frágil, composta por várias unidades de conservação ambiental - avisa Baitelo.
O pensamento dos ambientalistas é expresso em documentos como o relatório "Revolução Energética", divulgado pelo Greenpeace em fevereiro. Sua conclusão é que o país pode crescer até 2050 impulsionado por fontes renováveis de energia, como eólica e solar, e eliminar as fontes sujas (petróleo, carvão e nuclear).

Para os empresários, o risco ambientalista persiste e será um entrave à construção de várias unidades espalhadas pelo país. O presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Salles, alerta que a legislação não foi alterada para dar agilidade ao licenciamento ambiental:
- Os grupos de pressão continuarão atuando, e os obstáculos permanecerão. Por isso, precisamos ficar alertas para cada nova obra que vier a ser licitada. (G. P.)

O Globo, 09/12/2007, Economia, p. 49-50

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