VOLTAR

Novas prioridades

Valor Econômico, Especial, p. F1
15 de Dez de 2017

Novas prioridades

Roseli Loturco

No Brasil, mais de 80% da população vive em centros urbanos desestruturados. Eles refletem a ineficiência da infraestrutura criada para suportar o intenso desenvolvimento das metrópoles no século XX: pequenos grupos de interesse foram privilegiados e necessidades coletivas - no que se refere a mobilidade, saneamento, habitação, energia, tratamento de água e resíduos, parques, áreas de lazer e meio ambiente -- ficaram em segundo plano. Na avaliação de urbanistas, as desigualdades estruturais das cidades brasileiras só serão minimizadas com a distribuição mais igualitária dos recursos públicos, a partir de estudos técnicos que indiquem as demandas prioritárias para o conjunto da população.
São Paulo, a maior metrópole do país, experimentou um crescimento populacional de 27.000% entre 1.900 e o ano 2.000, passando de 230 mil habitantes para 11,5 milhões - hoje são 12 milhões. Considerada toda a região metropolitana, o total atingiu quase 20 milhões de pessoas. No mesmo intervalo, o perímetro territorial avançou 40.000%. O mesmo ocorreu em outras capitais como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre que, apesar de terem crescido exponencialmente, não implantaram políticas de infraestrutura urbana adequadas às novas realidades.
Os desajustes se deram em várias frentes. Enquanto capitais no mundo contornaram distorções do passado, recuperando rios e transformando-os em canais de lazer e de transporte, muitas metrópoles brasileiras canalizaram córregos e rios, matando seus afluentes e deixando de tratar rejeitos de esgoto
neles despejados diariamente. Hoje, 41% de todo o esgoto coletado na Região Metropolitana da Grande São Paulo fica sem tratamento, segundo dados da Sabesp, companhia de saneamento do Estado.
O sistema de mobilidade, apontado pelos urbanistas como um dos pontos mais críticos a serem resolvidos, foi projetado com foco no transporte individual, em detrimento do coletivo. Grandes avenidas, marginais, viadutos e elevados foram construídos. Em seus entornos surgiram, em muitos casos, áreas deterioradas.
Que princípios fundamentais devem nortear as novas políticas públicas urbanísticas? "A resposta parece óbvia, mas é preciso partir de leitura clara das necessidades. Hoje, não se parte das necessidades, mas sim das ofertas", afirma a urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).
Um exemplo de ação discricionária e equivocada, diz ela, foi a intervenção feita no Complexo do Alemão, no Rio, com a construção de um teleférico que consumiu investimento de R$ 1 bilhão em um lugar onde não há saneamento básico.
"Removeram quatro mil famílias, só metade foi realojada e o teleférico está sem uso", afirma a urbanista, que reclama que os projetos de infraestrutura das cidades não são pensados no longo prazo, mas na lógica dos mandatos de quatro anos. "Nada que seja estrutural pode ser resolvido em quatro anos".
Outro ponto crítico, em sua opinião, é que os planos diretores, com algumas exceções, têm mais caráter de zoneamento de uso e ocupação do solo do que de planejamento de infraestrutura do município.
Com cidades pensadas para automóveis e planejadas para bairros centrais, mais caros, a expansão de áreas periféricas e conjuntos habitacionais não foi, na maioria das vezes, articulada tendo em vista o sistema de transporte coletivo e de empregos. "Toda a expansão Leste promovida pela Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab) em São Paulo foi feita dentro da lógica da segregação", afirma Nabil Bonduki, professor titular de planejamento urbano da USP e relator do último Plano Diretor da cidade de São Paulo.
Na opinião do urbanista, a implantação de programas que atendem só a uma parcela da população é equivocada, pois deixa a cidade informal crescer, sem fiscalização dos loteamentos clandestinos e das favelas. "Existe lógica nesse planejamento, mas ela é excludente e perversa", diz Bonduki.
O Plano Diretor da cidade de São Paulo de 2014 propõe ajustes e redimensionamentos de prioridades. Um deles diz respeito ao transporte coletivo e o adensamento construtivo e populacional nas faixas de transporte de massa - metrô, trem e corredores de ônibus - o que permitiria que os modais fossem mais utilizados, desestimulando o uso do automóvel e melhorando a mobilidade. E, além disso, promovendo habitação nos centros de emprego.
A implantação e preservação de sistemas hídricos ambientais também são objetivos a serem perseguidos. A construção de usinas de reciclagem de resíduos, que ainda operam em pequenas iniciativas nas grandes cidades produtoras de lixo, deveria ser mais disseminada em todas as regiões do país. "Já na questão do saneamento, o marco regulatório de 2007 estabelece a necessidade de planos para a sua implementação e regulação. Já o marco da mobilidade é de 2012, mas depende da organização dos municípios no cumprimento dessas leis", afirma Joisa Campanher Dutra Saraiva, diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV - Ceri).
Joisa lembra que a tentativa de promover privatizações das companhias estaduais de saneamento praticamente naufragou.
"Das 18 candidatas iniciais, mais de 16 já desistiram. O desafio não é pequeno. No Brasil, se investe menos de 1,8% do PIB nacional em infraestrutura", pondera.
Apesar de passarem por dificuldades estruturantes similares, existem questões que atingem diferentemente os 5,5 mil municípios brasileiros. "O déficit habitacional, que é mais grave nos grandes centro urbanos, é de 30% nessas regiões, com pessoas que vivem em condições indignas ou não têm moradia", aponta o urbanista Carlos Leite, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e sócio da Stuchi & Leite Projetos e Consultoria em Desenvolvimento Urbano.
Nesse sentido, o que se discute globalmente como possível solução seria a criação de cidades mais compactas e densas, com menos dependência de veículo individual motorizado e maior facilidade para oferecer transporte coletivo eficiente. "Investindo também em ciclovias, o que implicaria menos recursos em energia, tratamento de água, esgoto e outros aparelhos públicos", afirma Leite.

Valor Econômico, 15/12/2017, Especial, p. F1

http://www.valor.com.br/brasil/5228227/novas-prioridades#

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.